RAQUEL
MARTINS 20/01/2014 – 07:33
José Vieira da Silva, ex-ministro do PS e o
rosto da reforma da Segurança Social de 2006, critica a estratégia seguida pelo
Governo e diz que “poucas medidas têm uma natureza tão recessiva como o corte
de pensões”
A primeira vez que se aprovou um
corte nas pensões em pagamento, por via da Contribuição Extraordinária de
Solidariedade (CES), foi num governo do PS. Foi o primeiro passo para as
medidas que se seguiram, nomeadamente a convergência chumbada pelo Tribunal
Constitucional (TC)?
Não
estamos a falar das mesmas coisas. O que estava previsto em 2011 tinha a ver
com uma contribuição excepcional aos rendimentos, incluindo os das pensões. Uma
coisa bem diferente era a chamada lei da convergência, que implicava uma
alteração da fórmula de cálculo de pensões que já tinham sido atribuídas.
Considera aceitáveis as
alterações à CES que o Governo agora propôs em alternativa?
Com esta
alteração o Governo está a tentar fazer passar a ideia de que também os
pensionistas deveriam ser incluídos no esforço de consolidação das contas
públicas, como se não estivessem. É difícil encontrar um grupo social em
Portugal que tenha sido atingido de forma mais significativa. Esta política
está a gerar uma degradação, com uma dureza e uma intensidade que nunca existiu
no nosso país, das condições de vida num sector com menos capacidade de
adaptação.
Neste momento temos mais
prestações para pagar, mais desemprego e menos pessoas a contribuir. Neste que também contribua para a sustentabilidade, como defende o Governo,
ou isso pode alcançar-se sem atingir os actuais pensionistas?
Há um esforço por parte do Governo e dos seus apoiantes para reforçar a ideia de que a raiz do
problema está nas pensões. As questões da sustentabilidade do sistema de
pensões não são muito diferentes da sustentabilidade do sistema de saúde, de
educação, de segurança. O que acontece, em particular com o sistema de pensões,
tem a ver com o facto de hoje termos uma economia que está a produzir aos
níveis de há dez anos atrás. Ora é difícil uma economia a produzir, criar
riqueza e a gerar emprego ao nível de há dez anos atrás, responder às
necessidades de hoje. Depois temos as questões demográficas: a natalidade
decresceu e, com consequências mais imediatas, temos a emigração. Não creio que
exista nenhuma solução para os problemas agudizados por este recuo histórico,
que não passe pelo crescimento económico. Sem que se volte a criar riqueza e
emprego, dificilmente nos poderemos aproximar do reequilíbrio das contas da
Segurança Social. Claro que isso não acontece num estalar de dedos.
Ao cortar nas pensões não se está também a comprometer o relançamento
da economia?
Poucas medidas têm uma natureza tão recessiva como o corte das pensões.
Não apenas porque muitos dos pensionistas têm uma elevada propensão ao consumo,
como num quadro de desagregação do nosso potencial produtivo, as pensões
compensam os rendimentos que se perdem no mercado de trabalho. Se insistirmos
em encontrar aí uma receita fácil estamos a agravar o problema da economia. Não
há aqui um milagre de alternativas. O esforço que está a ser feito pelos
empresários e pelos trabalhadores e por todos os que se mobilizam para explorar
as oportunidades dos mercados externos, tem limitações.
Mas entre o momento em que estamos e o momento em que a economia há-de
retomar, é necessário fazer ajustamentos no sistema de pensões?
A medida do aumento
da idade da reforma para os 66 anos, tal como foi tomada, é uma medida
puramente orçamental de curto prazo. Em 2006, mudou-se estruturalmente
algumas componentes do sistema e criou-se o factor de sustentabilidade a partir daí.
Não nego que este aumento da idade da reforma possa ter uma espécie de
despacho: não se pagam pensões novas em 2014 e para isso mexe-se no factor de
sustentabilidade e impede-se as pessoas de saírem, suportando o custo do
aumento da idade da reforma. Tudo isto é feito com uma enorme precipitação.
Esta medida acrescenta pouco e os custos em termos de credibilidade e de
credibilização do sistema serão maiores do que os ganhos.
Acha que há
uma estratégia por parte do Governo de descredibilizar o sistema?
Não sei se é estratégia ou incompetência. Que o têm conseguido, têm.
Fala-se muito que o sistema é pouco equitativo? É verdade?
Muito se diz sobre o nosso sistema de pensões... A ideia de que as
pessoas contribuíram, com as regras que o Estado fixou, para a sua pensão é uma
ideia elementar, certa e correcta. Há aqui um contrato, as pessoas contribuíram
com o que o Estado lhes pediu e estavam a receber aquilo que o Estado definiu.
Essa é uma ideia absolutamente essencial. Se há mérito no acórdão do TC [que
chumbou o corte de 10% nas pensões acima de 600 euros em pagamento] é ter
tomado uma decisão com base no princípio da confiança. O TC fez mais pela
defesa do estado de direito com aquela decisão do que muitas declarações nesse
sentido. A defesa do valor das pensões, já depois de terem sido sujeitas a uma
forte pressão fiscal, deveria ser um aspecto central na condução da política
portuguesa neste processo de ajustamento. Devia ser uma trincheira pelo seu
valor civilizacional, mas também pelo seu impacto económico. Quando cortamos as
pensões, estamos a abdicar de toda a ambição de contribuir para uma sociedade
equilibrada. Tem sido demasiado fácil a tentação de utilizar aquela despesa.
Reconhece que é preciso repensar estruturalmente o sistema ou ele é
adequado e temos de resolver o problema de outra forma?
Não creio que seja razoável ou viável pensar
em grandes mudanças estruturais num momento em que temos necessidades de
emergência. A única coisa de que se houve falar é do plafonamento. As pessoas
deviam pensar porque é que, estando o plafonamento há tantos anos na agenda
política portuguesa, ele nunca foi concretizado. Uma reforma desta natureza não
pode ser feita com para isso e não há condições financeiras para reduzir as
receitas da Segurança Social.
Vários
especialistas e até alguns sindicatos falam na necessidade de diversificar as
fontes de financiamento do sistema. Como é que isso se faz?
Sou conservador nesse domínio. Temos que distinguir o sistema na
dimensão contributiva e não contributiva. Há quem fale noutras variáveis que
não o salário, eu próprio já defendi essa ideia. O que se ouve mais vezes falar
é que as empresas devem pagar não sobre os salários, mas pela riqueza que
criam. Não creio que seja um bom sinal dizer que paga mais a empresa que cria
mais riqueza. Se cria mais riqueza tem um papel de arrastamento na economia que
vai gerar salários noutros sítios. Pode haver melhorias e o PS chegou a propor
que a taxa social única fosse distinta em função da natureza dos contratos. É
uma medida justa, mas difícil de aplicar na situação de crise actual.
Falou na necessidade de distinguir as prestações contributivas das não
contributivas. As não contributivas deviam estar sujeitas a uma condição de
recursos?
Para o futuro não tenho nada contra isso. Seria vantajoso que
tivéssemos todas as prestações não contributivas sujeitas a condição de
recursos, que sejam pagas a quem delas necessita. Mas isso também pressupõe que
elas sejam utilizadas de forma activa e não deixadas mais ou menos esquecidas. O
Governo dá como exemplo da sua sensibilidade social o aumento das pensões
mínimas, mas nada faz para valorizar os instrumentos eficazes na redução da
pobreza extrema. Se há instrumento que é eficaz a reduzir a pobreza entre os
idosos é o complemento solidário para os idosos. Quantas vezes ouviu o Governo
promover esse direito? Vez nenhuma, ela lá continua cada vez com menos
recursos.
O Governo vai criar um grupo de trabalho para propor uma reforma do
sistema de pensões. Qual a sua expectativa?
O memorando não fala em nenhuma reforma da Segurança Social. E não
fala porque na altura era reconhecido que era um sistema mais sólido do que a
maioria dos que existiam no espaço da União Europeia. Agora, para responder a
uma decisão do TC, vai-se apresentar uma reforma. Tenho pouca expectativa.
Comissão de inquérito do Parlamento Europeu (PE). Por que razão não
foi convidado o ex-ministro das Finanças, Teixeira dos Santos?
Não faço ideia.
Qual a sua
expectativa em relação a esta auditoria?
A minha principal expectativa já foi cumprida. É a primeira vez que o
PE se envolve neste tema. Julgo que era muito importante que o PE desse conta
do que é hoje uma evidência: estão-se a aprofundar assimetrias na União Europeia e o grupo que está a sofrer
mais duramente com isso é o
grupo dos países sujeitos a processos de ajustamento, seja com resgate ou sem
resgate.
Esta
auditoria poderá dar um contributo para o eventual programa cautelar?
Os relatórios do PE são sempre muito marcados pela sua concepção política.
Talvez seja útil para o chamado pôs-troika.
Portugal
terá um programa cautelar?
A situação de Portugal é ainda de grande fragilidade e com muitas
incertezas. Todos os países sob stress financeiro têm visto baixar as taxas de
juro nos mercados secundários. Um conhecido economista, Paul Krugman, chamou a
isso o efeito [Mário] Draghi. Quer isto dizer que é da acção, da palavra e da
intervenção do Banco Central Europeu que têm resultado os ganhos mais
significativos na credibilização da dívida pública.
Isso é positivo?
É bom, no sentido em que aponta o caminho. A Europa caracterizou-se por chegar sempre tarde e com poucos meios às
crises que se foram sucedendo a partir de 2010. Com a excepção das contas
externas, todos os outros indicadores pioraram e ainda assim as taxas de juro
têm vindo a baixar. A explicação é o efeito Draghi. É aí que continuará a estar
a explicação de muito do que irá acontecer. Sem uma intervenção das autoridades
europeias será muito difícil o regresso de Portugal aos mercados.
O PS está a preparar o programa eleitoral. O que é possível fazer de
diferente?
Várias coisas são possíveis. Uma delas é ter uma posição em relação à
Europa diferente da que o Governo português tem tido, de alinhamento com a
posição dos credores absolutamente
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