publicado
em 3 Jan 2014 - 05:00
Fustigada pela crise, a velha Europa vende tudo e está em período de saldos para grandes fortunas da China e do Médio Oriente
Castigada pelo regime
de dietas que lhe foram impostas pela austeridade, a velha Europa, desesperada
por fazer uns cobres e reanimar a gula dos mercados, começa a apelar cada vez
mais às fortunas que, no estrangeiro, sempre sonharam afundar nela os dentes.
Com o seu fabuloso catálogo amadurecido pela glória de séculos, castelos e
outros edifícios históricos, paisagens idílicas, ilhas encantadoras e (para
muitos, o grande prémio) a cidadania, o velho continente está hoje em saldos.
Para um cidadão se
dizer do mundo não pode faltar-lhe a liberdade de circular à lagardère pelos territórios que compõem o espaço da União
Europeia, e quem queira deleitar-se com os requintes que o Velho Mundo foi
apurando, e desde que tenha milhões no banco, só tem de consultar o catálogo e
pagar o preço certo. Começa a haver muito por onde escolher e 2014 promete ser
um bom ano para a satisfação destes desejos.
A cidadania maltesa,
e, por conseguinte, o passaporte da UE, custa 1,15 milhões de euros. Com ela
vem a oportunidade de investir numa villa em tempos pertencente a um distinto
cardeal italiano como residência permanente. E, para umas escapadas de Inverno
com o aquecido conforto dos contos de fadas, há uma larga oferta de castelos na
Polónia. Mas para reinar como nos bons velhos tempos vale a pena esperar pelo
Verão depois de pagar 8,5 milhões de euros por todo um arquipélago grego. Nem
os velhos deuses poderiam com os actuais titãs do capitalismo.
O grande leilão
europeu, que ouviu o soar da corneta no momento em que os governos se viram
forçados pela crise económica a arranjar à pressa esquemas para ir tapando os
buracos nos seus cada vez mais limitados orçamentos, atingiu contornos que
seriam há uns anos inimagináveis, com o património dos estados-membros alinhado
para chamar os cobiçosos olhos estrangeiros.
Mas uma reacção
enfurecida dos povos europeus começa a ganhar expressão, com os governos e os
cidadãos a entrarem em confronto em relação a quem cabe, no fim, decidir sobre
a disposição de valores que se confundem com a história e a cultura de uma
nação.
CONTESTAÇÃO Ao contrário do que
por cá se tem passado com o programa de concessão de vistos gold a investidores
estrangeiros, da responsabilidade do vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, a
concessão do passaporte maltês está a provocar clamor público e obrigou
entretanto o governo a repensar os seus planos. Em Itália, os residentes da
Sardenha indignaram-se com o anúncio da venda de uma ilha a um empresário
neozelandês e não se calaram enquanto não deram cabo do negócio.
Mesmo quando os
governos conseguem superar, silenciar ou, por outros meios, dar a volta à
oposição política que se levanta quando tentam desfazer-se das pratas da
família, os especialistas lembram que se levantam uma série de problemas
relativos a direitos de propriedade quando estes entretém a hipótese de alienar
pedaços do território nacional.
Se
até ao momento não se registou uma grande vaga no sentido da privatização na
Europa do pós-crise, alguns cabeçalhos têm causado arrepios quanto à venda de
património do Estado, sobretudo no país que se viu mais exposto à necrofagia
capitalista, a Grécia.
Em
Maio, um mês antes de abdicar a favor do filho, o emir do Qatar, Hamad bin
Khalifa Al Thani, comprou seis ilhas no mar Jónico - as quais já estavam em
mãos privadas - por 8,5 milhões de euros. O negócio foi considerado uma
pechincha para o emir, que planeia construir um luxuoso retiro para as suas
três mulheres e 24 filhos.
Já
as autoridades italianas, ansiosas por encher os cofres com a venda de um par
de ilhas, podem não ter tanta sorte com os seus cidadãos. Em Outubro, o
neozelandês Michael Harte deu 2,9 milhões de euros pela ilha Budelli - um
parque nacional com os contornos ornados por praias de areias douradas, ao
largo da costa da Sardenha. O empresário jurou que ia preservá-lo, mas os
ambientalistas indignaram-se.
Recolheram 85 mil
assinaturas exigindo a anulação do negócio e agora o governo considera a
possibilidade de devolver o dinheiro para reintegrar a ilha.
A
Itália pode vir a enfrentar obstáculos semelhantes com dezenas de outras
propriedades históricas que tinha planeado pôr à venda. A austeridade obrigou a
cortes profundos nas despesas de manutenção de várias propriedades do Estado,
deixando muitas ao abandono ou a necessitar de obras de conservação. Em relação
às grandes jóias da sua coroa turística, como o Coliseu de Roma ou a Ponte de
Rialto, em Veneza, a ideia do governo foi permitir que empresas do ramo da moda
as usassem como fundo para os seus filmes publicitários.
Já
relativamente aos monumentos ou locais menos ilustres, foi necessária uma
abordagem diferente. O Local - uma página online italiana que cobre em inglês a
actualidade italiana - informou no mês passado que cerca de 50 destas
propriedades deverão ser leiloadas com vista a colectar 500 milhões
de euros para aliviar a dívida nacional. Entre elas inclui-se o castelo
onde os actores Tom Cruise e Katie Holmes deram o nó, um antiga colónia
prisional e Villa Mirabellino, uma antiga residência de um cardeal da Lombardia
do século XVIII.
Enquanto
o governo italiano argumenta que estas vendas são a única maneira de preservar
monumentos históricos da completa ruína, os críticos mostram-se horrorizados
com a perspectiva de verem tesouros nacionais cair em mãos privadas, e os
residentes têm-se organizado e lançado campanhas determinadas a frustrar a
venda de propriedades como a Villa Mirabellino.
VISTOS GOLD E OUTROS Além de Portugal e
Malta, há vários outros países europeus que estão a oferecer a cidadania a
estrangeiros que invistam grandes somas no país, mas a maioria impõe como
requisito alguns anos de residência.
Anunciado
em Novembro, o programa de Malta prescindiu deste requisito pedindo apenas aos
aspirantes à nacionalidade que desembolsassem 650 mil euros, num esquema que o
primeiro-ministro, Joseph Muscat, defendeu como uma manobra inteligente para
arrecadar para os cofres do Estado cerca de 30 milhões de euros por ano.
Os
malteses não foram na conversa do primeiro-ministro e manifestaram indignação
geral face à intenção. Esta acabou por ser temporariamente engavetada antes de
ser ressuscitada há uns dias com uma revisão das suas condições. Ficou mais
caro o passaporte, subindo para 1,15 milhões de euros, com a obrigação de 500
mil serem investidos em imóveis, títulos ou acções na ilha. A questão é que,
mesmo que a lei siga em frente, os novos malteses devem considerar bem antes de
pagarem pelos sonhos de uma vida à europeu uma vez que o Partido Nacionalista
(oposição) já deixou claro que, chegando ao governo, não descarta a
possibilidade de revogar as novas cidadanias.
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