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domingo, 19 de janeiro de 2014

Fogo e gelo nas ruas de Kiev


Ocupantes
da Praça da Independência, abrigados atrás das barricadas e protegendo-se como podem do frio, criam uma cidade alternativa com a sua própria imprensa e o seu serviço de ordem


BRAÇO DE FERRO. Desta vez Moscovo tenta comprar a lealdade ucraniana, não com o fecho da torneira do gás natural mas com o seu fornecimento mais barato. Nada que intimide os manifestantes de Kiev, como constatou a reportagem do Expresso

Nas últimas semanas, todos os dias ao fim da tarde, Julia Yatsenko marca presença em Maídan, nome pela qual é conhecida a Praça da Indepen­dência, no coração de Kiev.

Esta contabilista de 28 anos, nada e criada na capital, orgu­lha-se da determinação ucraniana contra o Presidente Viktor Ianukovich.

Sentada junto a uma fogueira que ajuda a superar o rigoroso inverno ucraniano. Julia expli­ca que tudo começou com a decisão presidencial de rejeitar o acordo com a União Europeia (EU).

“Foi a gota de água que nos trouxe à rua. Não nos faltam problemas sociais, económicos e políticos. Problemas que o Presidente pouco ou nada faz para resolver”. Uma opinião imediatamente partilhada por uma dezena de outros à volta da fogueiras.
Duas ucranianas junto a uma das barricadas que interditam a Praça da independência às forças policiais

Desde 21 de Novembro, quan­do Ianukovich trocou o tratado comercial com a EU por um reforço da relação comercial e política com Moscovo, Maídan tornou-se palco de um dos maiores protestos da década.

Centenas de pessoas vieram pa­ra a rua contestar a, aparentemente inesperada, decisão presi­dencial. Nos dias que se seguiram, incentivados pelas pala­vras da ex-primeira-ministra e ri­val política de Ianukovich, Yulia Tymoshenko (a cumprir uma pena de prisão de sete anos por ale­gada corrupção) o movimento cresceu e a multidão em Maídan superou as 100 mil pessoas.

Numa tentativa de dispersar os manifestantes que continuavam a chegar de toda a parte do país, as forças policiais avançaram e houve batalha campal. Indigna­do com a violência policial, o po­vo acampou na praça e acabou por ocupar os paços do concelho e outros edifícios públicos.

Os jogos diplomáticos

Vejamos o filme dos acontecimentos das últimas semanas. Re­presentantes da EU em Bruxelas têm-se mostrado dispostos a voltar à mesa das negociações com Kiev e acusado Vladimir Putin e a Rússia de “pressão inaceitável” sobre o Governo ucraniano.

A 29 de Novembro, numa cimeira com a UE na capital lituana, Vilnius, lanukovich recusa oficialmente assinar o tratado proposto por Bruxelas. Na noite seguinte, a polícia faz uma se­gunda tentativa para desalojar os manifestantes.

O nível de violência desperta a atenção de governos e media de todo o mundo, falando-se numa segunda Revolução Laranja (mo­vimento de 2005 que levou à re­petição de eleições ganhas per um candidato pró russo por indícios de manipulação e à inver­são dos resultados numa poste­rior votação).

Ao amanhecer, 350 mil pes­soas juntaram-se em Maídan, e após novos confrontos, a praça tornou-se num bastião anti-Ianukocich. Edíficios oficiais passa­ram a sedes dos movimentos de oposição. Nos acessos à praça, debaixo de um forte nevão, nas­ciam barricadas de madeira, fer­ro, tijolos e pneus, guarnecidas por manifestantes aguerridos.

A praça da Liberdade

Esta situação dura há semanas e a reportagem do Expresso foi encontrar ativistas de capacete e bastão a controlar as estreitas vias de acesso à praça. Lá den­tro há tendss de campanha e, em cozinhas comunitárias preparam-se refeições para os milhares de ocupantes.

Ao centro, num enorme palco com ecrãs gigantes, há diaria­mente concertos de artistas locais bem como discursos de lide­res da oposição, de ativistas e de delegações diplomáticas estrangeiras, como foi o caso do senador norte-americano John McCain, que aqui manifestou o seu apoio aos manifestantes.

Trajado com roupa tradicional das montanhas dos Cárpatos, Sergey um veterano do Exército Vermelho que combateu no Afeganistão, controla quem entra e sai da praça.

“Aqui vem gente de todo o lado, de todas as idades, classes sociais e profissões”, explica o ex-soldado enquanto vai avisando quem chega de cigarro na mão de que “aqui não é permitido fumar”.
Questionado sobre quem financia a bem organizada operação levada a cabo pelos ativistas. Sergey explica que há muita gente que não está fisicamente presen­te  na praça, mas se move nos bastidores.

“Temos gente a recolher dona­tivos que são usados para com­prar alimentos, roupa, madeira e tudo mais que faça falta a quem aqui pernoite. Há, também, pes­soas influentes, como empresá­rios e políticos, que nos ajudam monetariamente para que este protesto continue até que o Presi­dente tenha a decência de se de­mitir”, conclui Sergey.

Rublos contra protestos

Viktor Ianukovich e o seu Governo sobreviveram a uma moção de confiança no Parlamento e tentam ganhar tempo para en­contrar uma solução para a cri­se política e económica. Nos últi­mos 15 dias o banco central foi forçado a intervir para defender a cotação da moeda nacional, a Hryvnia.

Ianukovich lançou uma opera­ção diplomática que envolveu uma visita à China, onde terá conseguido apoios financeiros de seis mil milhões de euros.

Reuniu também com Vladimir Putin que terá seduzido o líder ucraniano com a garantia de que Moscovo comprará 10 mil milhões de euros de dívida soberana e ainda fará um desconto de um terço no preço do gás na­tural fornecido pela Rússia.

Promessas que, segundo os Presidentes de ambos os países, libertam a Ucrânia de um risco imediato de bancarrota. Putin tinha já avisado o Ocidente para não interferir na vizinha Ucrânia, e muitos veem este acordo (apresentado como alternativa à aproximação comercial à UE) como um recado do Presidente russo aos europeus e americanos; Moscovo ainda tem peso junto dos países da ex-URSS.



“Se o Presidente pensa que o negócio com a Rússia vai satisfazer o povo, está muito enganado. O número de manifestantes tem diminuído. Mas seremos muitos a ficar aqui até que ele explique o que ofereceu a Putin para garantir o negócio”, afirma JUlia que, mais uma vez, está de volta à praça.

“O povo quer mudança e ninguém está disposto a esperar por 2015 (data das eleições presidenciais) para Inukovich ser substituído. Temos um Presidente com mais poder do que o de qualquer outro país”, explica, ao referir-se às alterações constitucionais que Ianukovich é acusado de ter elaborado para lhe garantir mais poder.

Para Julia os ucranianos não podem ter o Presidente agarrado à cadeira muito mais tempo. “Faça chuva ou vento, enquanto houver Ianukovich, hei-se vir a Maídan todos os dias até a nossa vontade ser ouvida.


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