Vítor
Gaspar e Passos Coelho na posse de Maria Luís Albuquerque
Recensão
Miguel Gaspar
Victor Gaspar é um speech act, um acto de
linguagem e é isso que liga o economista que é e o político que foi
Vítor Gaspar por
Maria João Avillez é
um livro sobre um homem e a sua circunstância – uma entrevista de vida que nos
situa quanto à circunstância de quem Vítor Gaspar foi, antes de ser Vítor Gaspar,
o ministro das Finanças.
Mas o que procuramos
neste livro é o homem para além dessa circunstância, para tentar compreender o
que o torna
diferente e o que fica
dele após ter sido ministro das Finanças na pior altura possível.
Vítor Gaspar, o
entrevistado de Maria João Avillez, não é muito diferente de Vítor Gaspar o
ministro. A maneira de falar,
lenta e pausada, a
densidade argumentativa, a racionalização absoluta que funciona ao mesmo tempo
como uma defesa e uma forma de controlo. Gaspar é um speech act, um acto
de linguagem, e é isso, essa postura, que liga o economista que é e o político
que foi.
E Gaspar, o
entrevistado, é um pouco o espelho de Gaspar, o ministro. A um não se lhe arranca
uma palavra a mais, tal como ao outro não se arrancava um cêntimo. Gaspar, o
ministro, apresenta-se no livro como aquele que tinha por missão aplicar à
risca o memorando da troika. Como se fosse um ser desprovido de ideias
próprias que no Terreiro do Paço prolongaria a postura do funcionário zeloso
que fora em Frankfurt e em Bruxelas. Naturalmente, o livro quer dizer-nos outra
coisa. Na longa revisitação ao seu pouco conhecido passado de negociador europeu,
nos anos de Maastricht,
Gaspar explana
longamente o seu pensamento económico sobre a Europa e sobre o país.
Mas afinal quem é
aqui Gaspar, o político? Falamos de um homem de uma geração que vê a revolução
de 1974 acontecer mas que nunca se deixará seduzir pela política. Escolhe a
vida académica e é sempre com sobranceria académica que percorrerá os corredores
do poder. Define-se como “um espectador da política”. Um tipo da geração que viveu
Abril mas era demasiado jovem para se deixar cativar pela militância. Sinal
particular: foi uma vez à Festa do Avante!, ouvir Chico Buarque cantar.
De Ernâni Lopes a
Sousa Franco, todos os grandes ministros das Finanças portugueses foram homens
que tinham o poder (e o apoio de um primeiro-ministro) para dizer não às
fantasias que crescem como cerejas na cabeça de quem vive à volta da mesa do
orçamento.
Se é esse o primeiro
critério para definir um ministro das Finanças, Gaspar foi exemplar nessa
resiliência.
Fala de política
como um fenómeno impossível de domesticar, mas do qual a teoria económica,
racional e precisa, não pode alhear-se.
Gaspar o economista, é um pouco um economista imaterial; responde como
um filósofo racionalista, sem impulsos e procurando argumentações racionais
perfeitas e irrefutáveis. Do alto desse edifício, seguro por convicções inabaláveis,
o que mais teme é o imprevisível. Sabe que pensar implica compreender onde
estão
os limites do
conhecimento. O que receia é o que está para lá dessa fronteira. O imprevisível
era, por exemplo, como impedir o Estado de gastar dinheiro caoticamente.
Ou eram os números
do desemprego que desafiavam a lógica do modelo do ajustamento – e seria o
desajustamento dos números que invocaria como razão para sair
E imprevisível era
também a política que no discurso de Gaspar é um pouco como a boa e a má moeda
de um célebre
artigo de Cavaco
Silva. Não, Gaspar não despreza a política.
A Europa é uma
construção política, a liderança política de um primeiro-ministro, Passos Coelho,
foi decisiva para enfrentar o ajustamento. E depois, claro, há o político
paradigmático, que se move por interesses de curto prazo e que pode ser
analisado como se fosse uma espécie biológica específica. Esse político paradigmático
é Paulo Portas, a Némesis de Vítor Gaspar.
Portas
irrevogavelmente ficou, Gaspar irrevogavelmente saiu.
Mas se há algo que
Gaspar quer deixar irrevogavelmente impresso na mente do leitor (sem nunca o dizer)
é que ele ganhou e Portas perdeu. Porque Maria Luís Albuquerque ficou e as
políticas que ele defendeu continuaram e as políticas que o Portas que ficou no
Governo defendia queria não vingaram. O título de viceprimeiro-ministro é uma
vitória de Pirro, o caso de um homem despojado do seu poder e a quem foi
entregue um espelho e um
palácio onde ele,
paradoxalmente, aparece investido de grande poder.
E o que fica finalmente
para a posteridade de Gaspar, o que fica dele para além da sua circunstância,
na circunstância
futura? Agora que o
ar do tempo mudou, parece que queremos esquecer o homem das más notícias porque
ele marcou de mais os anos mais negros do ajustamento. Com os seus modos e o
seu desassombro, Gaspar foi durante dois anos um mito da política portuguesa.
Mas é como se esse mito morasse no passado e este livro esbarrasse nessa
evidência de que aquele foi um tempo que passou. Há circunstâncias que não se
repetem e estamos demasiado próximos desta para a compreendermos de facto. Há
neste livro sobretudo um relato de um combate que ficará na história, feito por
um dos seus protagonistas, mas sobre o qual tudo está longe de estar dito.
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