Vitor Gaspar: “Cada Estado da zona do euro tem de
ser responsável pelas consequências das políticas que segue”
ENTREVISTA
TERESA DE SOUSA 17/02/2014
- 07:17
Em entrevista exclusiva
ao PÚBLICO, o antigo ministro das Finanças diz ter sido um negociador
bem-sucedido e considera que “as dimensões humanas e sociais do programa de
ajustamento foram sempre tidas em conta. “A punição nunca se aplicou a
Portugal”
Sete
meses depois de ter abandonado o Governo, Vítor Gaspar aceita tornar pública a
sua visão da crise em Portugal e na Europa. No livro de Maria João Avillez
agora publicado, e que é lançado esta terça-feira, no Centro Cultural de Belém,
não há fase da sua vida intelectual e política que fique de fora, permitindo um
conhecimento mais profundo do homem que teve nas mãos durante dois anos o duro
programa de austeridade que tivemos que cumprir. A Europa e o programa de
ajustamento do país foram os temas centrais desta entrevista, que não podia ser
sobre tudo. Mas também aí não há a mais ligeira brecha no seu pensamento.
Sugeriu que começássemos pela citação, que faz no livro,
do grande historiador oitocentista Oliveira Martins e que, no seu entender,
define ainda hoje o nosso desafio enquanto país. Ele refere que temos de acumular
recursos para sermos um país autónomo. Por que é que vai buscar esta ideia para
compreender a crise que estamos a atravessar?
A ideia não é
entender a crise, mas entender o ponto de vista português face à crise. O que Oliveira
Martins diz, num curto ensaio que acho absolutamente brilhante, é que Portugal
está a enfrentar pela terceira vez em 250 anos uma questão existencial. Nas
palavras dele, e estou a parafrasear, Portugal enfrentava a questão de saber se
tem recursos
suficientes para
viver como país autónomo dentro das suas fronteiras continentais europeias. Essa
questão existencial volta a colocar-se agora, de uma forma ligeiramente
diferente. A crise da qual Oliveira Martins falava era a crise de 1892. A crise
que enfrentamos agora é a primeira crise financeira da área do euro, que se
manifestou, ela própria, dentro da crise financeira global.
Qual é a questão que
se coloca a Portugal neste contexto? É saber se temos a vontade política, a
capacidade social e cultural para nos afirmarmos como Estado autónomo e
desenvolvido numa economia global muito concorrencial, e como membro pleno na
área do euro e da União Europeia (UE). É uma questão existencial muito
semelhante à que foi colocada por Joaquim Pedro Oliveira Martins.
A Europa mudou. Há hoje um país que volta a ser central
e que goza de uma espécie de “unipolaridade” europeia. É em face desta Europa
que está a emergir que nos temos de situar. Como ministro das Finanças, aceitou
a visão alemã desta crise. Porquê?
Vários
Estados-membros não aproveitaram a participação na área do euro para adaptarem a
forma de funcionamento das suas economias às exigências dessa participação.
Isto é, vários Estados-membros não conseguiram executar reformas estruturais
suficientemente profundas para a exigência de pertencer ao euro. Mais: em alguns
deles esta debilidade foi agravada pela existência de desequilíbrios que têm a
ver com excesso de endividamento: nas famílias, nas empresas e no próprio
sector público. No funcionamento da Europa, existe, na minha leitura, um ponto politicamente
fundamental, que é o primado da dimensão nacional da política. Esse princípio significa,
basicamente, que cada Estado-membro da área do euro tem de ser responsável
pelas consequências das políticas que segue. Por isso, o Tratado de
Estabilidade, Coordenação e Governação (“Tratado Orçamental”) e as regras de disciplina
orçamental que estão nos chamados Six-Pack e Two-Pack [um conjunto de leis que passam
a determinar os equilíbrios macroeconómicos da zona euro] são tão importantes.
Sem um princípio de responsabilização efectiva pela sustentabilidade das finanças
públicas em cada Estado-membro, não é possível sustentar a área do euro. Do
lado europeu, verificou-se também que as regras fundamentais que estavam
acordadas no Tratado de Maastricht e no Pacto de Estabilidade e Crescimento
(PEC) não foram cumpridas.
Pela Alemanha e pela França.
Logo em 2003, a
Alemanha e a França estiveram no centro desse episódio e verificou-se também que
a construção institucional da área do euro não estava desenhada de forma a
garantir a sua robustez em condições de crise. Daí a necessidade de se avançar
para a união bancária. Tenho defendido que é preciso ir ainda mais longe e
construir uma verdadeira união financeira.
Vitor Gaspar: " Em tempos de crise, a previsão económica é particularmente difícil"
Um diplomata alemão, citado pela Der Spiegel punha as coisas assim: a Alemanha não pode desperdiçar
esta crise para reformular a união monetária à sua imagem e semelhança. São
eles que o admitem e que estão em condições de o impor. Ora, as coisas são mais
complicadas do que a questão financeira. Têm uma dimensão social, económica e
política.
Julgo que o que
acaba de dizer sobre a Alemanha está errado. Em primeiro lugar, a ideia de
encarar uma crise como oportunidade é uma ideia generalizada. O primeiro chefe
de Gabinete de Obama, Rahm Emanuel, tem uma frase muito conhecida: “Não podemos
permitir que uma boa crise seja desperdiçada.” É uma frase óptima. Muitas
vezes, em Portugal, se falou também da necessidade de resolver alguns problemas
estruturais profundos da economia portuguesa, que têm persistido durante
décadas, precisamente num momento de crise. Porque, naturalmente, as mudanças
mais profundas são motivadas por crises. Além disso, a ideia de que a crise é muito
mais do que financeira e que a construção europeia é fundamentalmente um
projecto político, é uma percepção muito forte na Alemanha. Quando, na década
de 80, comecei a participar em negociações europeias, um dos países em que o
debate político sobre a integração europeia era mais forte era, justamente, a Alemanha.
Ainda agora é.
A posição mais comum
na Alemanha era que à unificação monetária tinha de corresponder uma unificação
política. A
disponibilidade para
avançar para soluções mais profundas em termos de integração política tem vindo
mais da Alemanha do que de outros países. De entre algumas coisas que disse e
que me pareceram menos correctas, parece-me particularmente datada a ideia
implícita de que a dimensão financeira da crise seria destacada pela Alemanha e
que outros teriam uma visão mais ampla.
Talvez não me tenha feito entender. É verdade que, em Maastricht,
Helmut Kohl queria ia muito mais longe em termos
de união política e François Mitterrand não quis. O que
lhe queria dizer é que esta crise veio alterar o equilíbrio de poder
interno da União Europeia, dando à Alemanha um papel que
ela, até agora, nunca tinha tido. Estou a apresentar um facto.
Julgo que está fazer
muito mais do que isso. Uma das perspectivas que aprendi com John Maynard Keynes
é que, num processo de ajustamento internacional, há uma profunda assimetria
entre o que podem fazer os países credores e o que podem fazer os devedores. Quando
olhamos para a história da integração monetária europeia, temos essa assimetria
entre países deficitários e superavitários logo no mecanismo cambial do Sistema
Monetário Europeu (SME) e voltamos a ter agora, com a união monetária. Ora,
durante a década de 80, o tipo de argumento que se está a invocar agora sobre a
hegemonia alemã e a assimetria do processo de ajustamento era invocado
precisamente a respeito do funcionamento do mecanismo cambial. Também nesse
mecanismo, a âncora do sistema era o marco, a credibilidade era a do Bundesbank
e eram os países com moeda mais fraca que suportavam o fardo do ajustamento.
Esteve muitos anos fora, trabalhando em instituições europeias
fundamentais para a nossa vida. Voltou porque pensava que essa capacidade de entendimento
da forma como a Europa funciona era útil para o país.
Voltei para Portugal
porque gosto de viver cá.
Ocupou durante dois anos a pasta mais importante do
Governo. Quando se foi embora, considerou que a sua credibilidade tinha sido
posta em causa por causa das metas não-cumpridas do défice. Tivemos de fazer em
três anos
aquilo que se deveria ter feito em 10. E, ainda por
cima, com escassa capacidade de projectar um futuro que justificasse os sacrifícios.
Sem qualquer ofensa, o Vítor Gaspar foi olhado como o quarto dos Três
Mosqueteiros [da troika].
Como se viu nesse papel?
Há pelo menos quatro
coisas muito diferentes na sua pergunta. Com o devido respeito, a questão de me
encarar como o quarto elemento da troika é simplesmente insultuosa.
Mas foi uma ideia bastante generalizada na opinião
pública.
Recuso completamente
esse papel. O meu papel é o oposto. Tive a honra de representar Portugal nessas
negociações. A troika estava sentada do outro lado da mesa. As relações
com as equipas da troika foram sempre boas, base fundamental para melhor defender
os interesses de Portugal.
O segundo aspecto em
que, com o devido respeito, também não está correcta, é relativamente à questão
que levanto na minha carta de demissão relativamente à minha própria
credibilidade.
Diz explicitamente isso.
Não, digo coisa
diferente: o não cumprimento das metas originais – repito, originais – do
programa minou a minha credibilidade. A Teresa falou
em incumprimento repetido. Não houve sequer incumprimento, de um ponto de vista
formal. Porque as metas iniciais do programa foram renegociadas antes do
momento em que o seu incumprimento se
colocaria.
Isto é, no momento em que os vários números do défice foram constatados, eles
estavam conformes aos limites quantitativos do programa em vigor no momento da
verificação.
A
negociação foi sempre feita atempadamente.
Então por que é que se foi embora?
Porque,
do ponto de vista interno, escolhi dar uma grande visibilidade política aos
limites iniciais [do défice] fixados pelo programa. Podia não o ter feito. Mas
fi-lo por escolha política e quando constatei que não era possível cumprir
aqueles limites, era natural que eu assumisse as consequências políticas.
Mas essas revisões da meta do défice
deveram-se a uma coisa que não estava prevista no programa inicial, que era a
recessão generalizada na Europa.
O factor
de que fala é importante. A crise global, no momento da aplicação do programa
português, está a passar pela fase aguda das crises da dívida soberana na zona euro.
E esse período vai de Junho de 2011 até Julho de 2012.
Com a intervenção do presidente do BCE.
As
declarações do presidente do BCE em Londres [quando Mário Draghi afirma que o
BCE fará tudo o que está ao seu alcance para salvar o euro] que, por sua vez,
vêm a seguir à decisão do Conselho Europeu de avançar com o aprofundamento da união
económica e monetária. Mas é nesse período entre 2011 e 2012 que a área do euro
e a Europa são o epicentro da crise económica global. E essa evolução foi
substancialmente mais gravosa do que estava previsto.
É também
verdade que Portugal não se conformou com o que estava previsto no programa de
ajustamento, o que também aconteceu noutros programas. Em momentos de crise, a
previsão económica é particularmente difícil e, consequentemente, não é de
esperar que os programas possam ser executados exactamente como foram
desenhados.
Os resgates à Grécia, Irlanda e Portugal foram
desenhados pela primeira vez para países sem moeda própria. Ora, enquanto nós
tentávamos disciplinar as contas e comer o pão que o diabo amassou, as instituições
credoras discutiamanimadamente por cima das nossas cabeças se o programa estava
certo ou errado e admitiam que tinham errado nas previsões para o desemprego.
É um debate que não leva em consideração o lado humano
da aplicação do programa.
Acho que o que está
a dizer é falso. Em primeiro lugar, as dimensões humanas e sociais do programa de
ajustamento foram sempre tidas em conta, com ênfase para o fenómeno do
desemprego. A minha maior preocupação tem sido o desemprego jovem e o desemprego
de longa duração.
O desemprego subiu
para níveis muito elevados, atingiu um máximo de 17,7 no primeiro trimestre de
2013, com o desemprego jovem em 42,1 por cento. Estes números são muito importantes
do ponto de vista económico, social e individual. Os custos são elevados e
prolongados no tempo. Contudo, não é verdade que Portugal tenha tido uma evolução
destes indicadores mais gravosa do que a de um país como a Espanha, que teve um
programa apenas para o sector financeiro.
E, de resto, um dos
aspectos mais positivos da viragem em 2013 foi a queda do desemprego e do
desemprego jovem para 15,3 por cento e 35,7 por cento, respectivamente, no
final do ano, decisiva, não é específico dos programas de ajustamento. Agora repare,
foi dito e reafirmado que os programas avaliados trimestralmente, em particular
o português, foram adaptados às circunstâncias
E foram mesmo?
E foram mesmo. Julgo
ter sido um negociador bem-sucedido em nome dos interesses nacionais, precisamente
porque foi possível ajustar duas vezes, e muito consideravelmente, os limites
do défice e da dívida sem que tenha havido a menor perturbação nas nossas relações
com os credores oficiais e com os mercados financeiros.
Falta
ainda a questão do tempo
§
Tivemos dez anos
para nos ajustarmos.
Passámos basicamente
esses dez anos em situação de défice excessivo e excesso de despesa financiada a
crédito
§
Falta ainda a
questão do tempo que nos foi concedido. Um ajustamento
em três anos que deveria ter sido em 10.
Colocada
dessa forma, a questão permite olharmos para Portugal em dois horizontes de
tempo.
A
necessidade de ajustarmos do ponto de vista das políticas estruturais e da
alteração do regime de finanças públicas era absolutamente clara logo em 1998.
A crise da área do euro começa a manifestar-se de forma específica no final de
2009, ou seja, no fim da primeira década da nossa participação. Tivemos dez
anos para nos ajustarmos. Passámos basicamente esses dez anos em situação de
défice excessivo e excesso de despesa financiada a crédito. Se virmos os resultados
da alteração estrutural do nosso regime de finanças públicas, verificamos que
não fizemos a mudança que era necessária. Como também não fizemos a mudança
necessária em políticas estruturais que permitissem continuar a melhorar a
competitividade da economia portuguesa e garantissem a flexibilidade no mercado
do produto e no mercado de trabalho.
Em todas
essas dimensões, não conseguimos adaptar-nos às exigências da área do euro. O resultado
foi um crescimento
real dos
mais baixos da área do euro e uma quebra brutal face aos valores do crescimento
em Portugal na segunda metade do século XX. E mais: no momento em que se
verifica a crise global, não só não reconhecemos que estamos num momento de
crise e numa posição vulnerável, mas achamos, pelo contrário, que estávamos em
posição de seguir uma política keynesiana clássica de combate da recessão, com a
expansão do sector público.
Isso
conduziu a que, no início de 2010, os mercados financeiros internacionais
tenham deixado de nos financiar. Isso acontece na Primavera de 2010.
... Com a Grécia...
Imediatamente
antes do pedido de resgate grego. É esse o momento decisivo para nós. A partir
do momento em que entrámos nesse ciclo, a possibilidade de ajustamento gradual
e racional estava fechada. E estava fechada porque actuámos mal no período de
participação no euro e da própria crise global.
Está sempre a repetir uma frase – “os nossos
credores internacionais” –, insistindo que nos estão a ajudar. Nunca leva em
conta que os nossos parceiros europeus também nos ajudam no seu interesse
próprio, nomeadamente a Alemanha.
Devia haver um discurso mais “europeu”
nestas questões da ajuda...
A
posição de que estamos a falar, segundo a qual o ajustamento nacional é uma
componente importante do processo, não é uma posição exclusivamente alemã. Não
conheço nenhum país que conteste esta posição, que está traduzida no quadro
orçamental aprovado por todos os Estados membros no decurso desta crise.
Ninguém pode defender isso, mas o caminho
foi sempre visto como não tendo discussão nem alternativa. Independentemente das
consequências no terreno.
Não.
Isso é falso como caracterização das opções do país como membro do euro. Como vimos,
o país podia ter ajustado na primeira década do euro.
O problema é que não ajustou...
Certo.
Quando podia ajustar, não ajustou. Mas então como é que é?
Está hoje a fazê-lo em condições muito
difíceis.
E então?
E então, a UE não é uma instituição
internacional como as outras. Já quase nos esquecemos, porque está tudo mais ou
menos calmo, mas a mensagem da punição aos perdulários era o que ouvíamos dia
após dia.
A
punição nunca se aplicou a Portugal.
Nunca?
Se
compararmos Portugal, por exemplo, com a Espanha e a Itália, verificamos que a
evolução macroeconómica do nosso país – por exemplo, a actividade económica – é
da ordem de grandeza desses dois países. Não tem nada a ver com a Grécia.
A Grécia aceitou o programa de forma
reticente.
Exactamente.
E nós não. A redução da actividade económica na Grécia foi três vezes maior do
que em Portugal. Os custos do desemprego, incluindo o jovem e de longa duração,
não têm qualquer semelhança com os de Portugal. A situação e as perspectivas
para a Grécia e para Portugal não têm qualquer comparação. Como dizia a Joaquim
Pedro Oliveira Martins, quando se está numa crise financeira, é crucial ter um entendimento
com os credores.
Isto
aplica-se hoje como se aplicava no século XIX. Os nossos credores não são os
nossos parceiros.
O FMI não é, mas é a UE.
Quando
destaco os credores, estou a pensar na necessidade de assegurar o financiamento
normal do Tesouro e da economia portuguesa nos mercados privados. São mercados
globais onde outras regiões geográficas têm um peso muito importante.
Em
qualquer caso, digo-lhe que beneficiámos da solidariedade europeia de várias
maneiras.
Desde
logo, entre a queda súbita de financiamento na Primavera de 2010 e o nosso pedido
de ajuda internacional, o financiamento da economia portuguesa foi basicamente canalizado
pelo sistema bancário português que se financiou junto do Euro-sistema. Depois
tivemos ajuda oficial, sem a qual teria sido impossível honrarmos os nossos compromissos
desde o Verão de 2011.
A minha observação, insisto, tem a ver com o
facto dos nossos parceiros do Norte terem um interesse próprio na
sustentabilidade do euro. Na Alemanha, há cálculos feitos pelo Ministério das
Finanças e por instituições privadas que
mostram como, ao contrário do que é contado
aos alemães, Berlim pagou pouco e beneficiou muito com a nossa crise.
Há
interesses nacionais e há o primado da dimensão nacional da política e isso
aplica-se a Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e também à Alemanha, à Áustria, à
Finlândia, etc. A dimensão nacional da política aplica-se a todos os Estados da
UE. Há o reconhecimento do interesse europeu numa solução para esta crise e
essa solução é um bem comum europeu, que é de todos.
Saiu há sete meses, quando muita gente
previa uma espiral recessiva. Hoje, verifica-se que isso não aconteceu e que a
economia começa a dar um ligeiro ar da sua graça. Isto deixa-o confortado com
as suas posições?
Acho
interessante referir que, no momento em que saio, a 1 de Julho, está a acabar o
segundo trimestre de 2013, o primeiro a registar um crescimento em cadeia
positivo (1,1 por cento). O crescimento acumulado desde o fim do primeiro
trimestre foi de quase 2 por cento. No segundo trimestre, talvez se recorde,
eu, ainda como ministro, falei da
viragem
para o investimento. Não foi uma perspectiva com grande aceitação, mas
revelou-se completamente correcta. O que temos verificado foi que, depois de
eliminado o desequilíbrio financeiro externo, a procura interna começou a
comprimir mais devagar e, como nós temos tido sempre um aumento muito forte das
exportações, isso puxou a economia de uma forma que parece compatível com um ajustamento
bem-sucedido. No último trimestre de 2013, ao forte contributo das exportações
junta-se um contributo, agora também positivo, da procura interna.
A nível europeu, a retoma ainda é débil,
sobretudo quando comparada com os EUA e o Reino Unido. O risco de deflação de
que agora toda a gente volta a falar, como é que o vê?
Deixe-me
tentar responder-lhe com ordem. A questão do risco de deflação ou de inflação é
sempre discutida no âmbito do mandato que tem um banco central em geral, e o
BCE em particular, que é a manutenção da estabilidade dos preços. E a
manutenção da estabilidade dos preços no médio prazo é, de acordo com um
consenso em todo mundo, encarada como uma inflação baixa e estável. Mais
precisamente: uma inflação de médio prazo de cerca de 2 por cento.
É essa precisamente a meta europeia.
Exactamente.
Mas a Europa, nesse aspecto, foi pioneira a nível global. A definição de 2 por
cento como norma para a estabilidade dos preços é adoptada pelos Estados Unidos
durante a presidência de Ben Bernanke [na Reserva Federal]. A ênfase na
estabilidade dos preços implica que existe um balanço entre os riscos de inflação
e de deflação.
É este balanço que o BCE tem de garantir?
É esse
balanço que todos os bancos centrais têm de garantir. A questão tem relevância
presente para o BCE. O quadro em que se discute agora o risco de deflação na
Europa pode ser sumariado com base nas previsões que foram divulgadas
recentemente pelo FMI. O fundo dizia, relativamente à economia mundial, que as perspectivas
estavam a melhorar, com uma revisão ligeira em alta das previsões de
crescimento, havendo condições para que a recuperação nas economias avançadas,
que incluem a área do euro, compense algum abrandamento do crescimento nas economias
emergentes.
É este o
momento de responder à sua pergunta. A deflação é um risco que deve ser evitado
porque é tendencialmente
desestabilizador
e há uma potencial relação entre deflação e espiral recessiva, na medida em que
há a possibilidade de
a deflação
se transformar em deflação esperada, adiando as decisões de fazer despesa. E a
deflação torna mais difícil a gestão de níveis de endividamento elevados.
A Europa escolheu uma determinada via para
combater as consequências económicas da crise financeira global. Os EUA
escolheram outra via. De resto, em todas as reuniões do G20, há este confronto permanente
entre Obama e a chanceler alemã sobre qual é a melhor receita. Aparentemente, o
modelo americano está a dar mais resultado. Como olha para isto?
Eu julgo
que é comum na imprensa exagerar as diferenças e subvalorizar alguns aspectos comuns.
Um dos aspectos que me parecem mais notáveis nesta crise global é a cooperação
entre os bancos centrais. Desde 2007, tem existido um grau de cooperação e uma
convergência de políticas sem precedentes.
§
incerteza sobre a Europa
no início dos anos 80 era enorme.
(...) Um dos
aspectos em que Mário Soares aparece como político de visão está precisamente associado
a este debate
§
Gosta de comparar esta crise com a de 83-84.
Mas há diferenças, para além do prof. Ernâni Lopes, que todos estimamos, ter um
ar muito mais assustador do que o seu.
Mário Soares deu-lhe todo o apoio político.
O país tinha um objectivo: entrar na CEE.
Agora estamos a fazer este ajustamento para
ficarmos no euro. Mas, à nossa frente, só vemos incertezas e não sabemos como
vai a Europa sair desta crise. Declarou-se no livro um “optimista céptico” em
relação à Europa. O que quer dizer com isso?
Adoro a
sua pergunta. No início da década de 80 a Europa estava a viver a sua
euro-esclerose.
Mas deu a volta com o Mercado Interno...
Muito
mais tarde. A incerteza sobre a Europa no início dos anos 80 era enorme. E não
parecia ser um projecto particularmente inspirador. A incerteza que existe hoje,
existia também nessa altura, provavelmente numa versão ainda
mais
pessimista.
Mas significava o regresso à Europa. Era um
destino...
Temos a
grande vantagem de saber como é que essa história acabou. Nessa altura, estava toda
a gente a reflectir sobre as vantagens e os custos da participação. Um dos
aspectos em que Mário Soares aparece como político de visão está precisamente
associado a esse debate. A única razão que nos leva hoje a ver essa decisão como
trivial é porque já faz parte da História. Mas não foi nada trivial na altura.
Lembro-me de ver uma publicação oficial do Ministério das Finanças cujo título era
qualquer coisa do tipo “Adesão: Custos Certos, Benefícios Incertos”.
Hoje, vejo a
situação actual exactamente da mesma maneira.
Temos de fazer
agora, como tivemos de fazer na década de 80, uma opção sobre o lugar de
Portugal no mundo. E, do meu ponto de vista, a opção que devemos tomar é a de
querer ser um país desenvolvido, aberto, competitivo na economia global e capaz
de se afirmar como membro pleno da área do euro e da União Europeia. Num certo
sentido, não seria possível ter um paralelo mais perfeito entre 1984 e 2014.
Como é que explica às pessoas que esta Europa ainda vale
a pena?
Como explicaria em
1984. A explicação parte de mobilizar as forças positivas da Europa, que são
fortíssimas. Basta pensar que com a crise gravíssima e os desafios seríssimos
que a Europa está a enfrentar, no passado dia 1 de Janeiro o euro integrou mais
um país e, no outro extremo da Europa, na Ucrânia, a Europa ainda é um poderoso
denominador comum das forças democráticas, como antes tinha sido em Atenas,
Lisboa, Madrid, Budapeste, Praga, Varsóvia e
Berlim.
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