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sábado, 29 de setembro de 2018

Portugal-Angola: uma parceria estratégica sem futuro



OPINIÃO
M. Fátima Bonifácio
29 de Setembro de 2018, 6:41

Esta ladainha da irmandade entre a ex-colónia e a ex-metrópole chega a parecer-me infantil.

M. Fátima BonifácioNo PÚBLICO de sábado, 22 de Setembro, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, brindou-nos com uma página inteira de propaganda sobre o auspicioso futuro das relações luso-angolanas. 
O texto, que já não é o primeiro deste tipo com que o ministro brinda os portugueses, exala um optimismo ainda mais exuberante do que os anteriores, e exibe também uma ambição grandieloquente e festiva proclamada com uma segurança reforçada. 
A substância é escassa, sem dúvida, como convém a todas as propagandas, especialmente a política. 
Não dá para citar, porque não há espaço para transcrever os longos trechos de abstracções e pura retórica com que o ministro pretende engodar-nos a respeito do futuro glorioso e deslumbrante das relações Portugal-Angola. 
Sim, nota-se que, neste domínio, houve uma ligeira alteração atmosférica. 
Donde provém e o que promete?

Estaremos todos lembrados de que no ano passado as relações entre Lisboa e Luanda azedaram pesadamente. 
Entre outras coisas, houve viagens ministeriais unilateralmente adiadas pela parte angolana, sem que o Governo português desse qualquer explicação perceptível e aceitável ou convincente. 
O mal-estar culminou com a deslocação do nosso chefe de Estado à cerimónia da tomada de posse de João Lourenço como novo Presidente eleito angolano em 25 de Setembro de 2017. 
Com Marcelo Rebelo de Sousa estavam mais uns 20 chefes de Estado, nomeados um a um. Marcelo “foi assobiado esta manhã em Luanda [...] mas também [recebido] com o aplauso mais vigoroso (Visão, 26.9.17). 
Os milhares de pessoas que assistiam à solenidade estavam, portanto, divididas. Interpelado sobre o sucedido, António Costa respondeu sem um estremecimento de olhos: “é manifesto que as relações entre Portugal e Angola estão óptimas.” 
Já Marcelo considerou-as “vivas”, uma expressão feliz, já que autoriza todas as interpretações, porque até ao segundo em que se morre, realmente está-se vivo.

Quem não esteve dividido foi o Presidente João Lourenço, que no discurso de posse anunciou a lista de países que Angola privilegiaria nas suas relações externas: “Angola dará primazia a importantes parceiros, tais como os EUA, a China, a Rússia, o Brasil, a Índia, o Japão, a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália, o Reino Unido, a Coreia do Sul e outros não menos importantes, desde que respeitem a nossa soberania.” 
A omissão de Portugal, ainda por cima geograficamente mesmo ao lado da Espanha, foi estrondosa. 
Conclusão: Portugal seria uma parceria “não menos importante”, mas desrespeitava a soberania angolana. 
Porquê?

Porque a Justiça portuguesa acusara o todo-poderoso ex-vice presidente de Angola, Manuel Vicente, de corrupção praticada em solo nacional, e teimava em julgá-lo em tribunais portugueses, no âmbito da Operação Fizz. 
Luanda exigia julgá-lo num tribunal angolano e, portanto, exigia que o processo de Manuel Vicente fosse separado e transferido para a ex-colónia. 
O argumento dos angolanos era comovedor: teria Portugal o topete de desconfiar da probidade e isenção da Justiça angolana?! 
Mas que desaforo! 
Que falta de respeito! 
Acontece que, ainda sob proposta do então Presidente Dos Santos, o Parlamento angolano aprovara uma amnistia para “todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015, excepto os crimes de sangue” (PÚBLICO, 6.1.18). 
Uma generosidade bonita: 11 de Novembro era o dia de aniversário da independência de Angola, em 1975.

Ora o julgamento de Manuel Vicente em Lisboa estava previsto para 22 de Janeiro de 2018! Foi preciso atrasá-lo e andar rápido. 
Em 23-26 de Janeiro, em Davos, António Costa encontra-se com João Lourenço e ambos discutiram o caso “que a todos incomoda” (Lusa, 24.1.18). 
O MNE angolano, Manuel Augusto, já declarara à imprensa que não queria “briga” mas não fugiria dela “para defender a soberania e a dignidade do país” (PÚBLICO, 6.1.18). 
O julgamento de Manuel Vicente nunca andou para a frente, e em Maio passado o Tribunal da Relação de Lisboa deu luz verde para que o dito processo fosse despachado para Angola. 
O Estado português vergou a cerviz. 
Valeu a pena? 
Não parece.

Nos princípios de Junho deste ano, Boris Johnson, o então ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, anunciou e saudou o pedido de Angola para aderir ao Commonwealth britânico. João Lourenço, o Presidente angolano, explicou plácida e pedagogicamente: “Angola está cercada, não por países lusófonos, mas por países francófonos e anglófonos. 
Portanto não se admirem que estejamos a pedir agora a adesão à francofonia e que daqui a uns dias estejamos também a pedir a adesão à Commonwealth.” (Negócios, 6.6.18).

Lourenço foi clarinho como água corrente – como deve ser. 
Mas Portugal teima e repisa que portugueses e angolanos estão “unidos por uma relação fraternal” (Marcelo Rebelo de Sousa, 25.9.17). 
Esta ladainha da irmandade entre a ex-colónia e a ex-metrópole chega a parecer-me infantil: os Estados não orientam as suas relações com terceiros segundo critérios afectivos, mas sim segundo os seus interesses. 
O resto é conversa. 
Santos Silva, jubilante, fala de uma “interligação entre as duas sociedades” que se vem aprofundando muito para além “da espuma dos dias e dos humores das lideranças”. 
Pelo meio do seu longo arrazoado vácuo e retórico, não encontro nada de concreto, de substantivo que permita sequer remotamente escrever sob a égide de um título tão imoderado: “Portugal e Angola, uma parceria estratégica para o futuro”. 
Portugal não tem sido capaz de se projectar num mundo globalizado, a não ser como parte integrante da UE. 
E Angola, para se projectar no mundo globalizado, não precisa da ajuda de um pequeno país que, por si, sem a União Europeia, é destituído de significância.

É por coisas destas que sobre o afinco português em cativar os angolanos, bem como em se agarrar à CPLP, paira sempre uma desconfiança fundada sobre as negociatas escondidas por trás da nuvem de fumo com que as autoridades portuguesas se esforçam por nos embair.

Historiadora

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