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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O que são as “alternativas”?


Paulo Tunhas  

5/2/2015, 8:59
FUTURO DA GRÉCIA

Pedir uma liberdade que a configuração da Europa interdita e querer continuar a pertencer a essa Europa, não é só querer comer o bolo e, também, guardá-lo. 
É algo igualmente pueril mas mais perigoso.

Dia sim, dia sim, quem quer que seja que emita algumas dúvidas sobre os bons resultados das inconstantes, variáveis e caóticas propostas do Syriza nas suas negociações com a União Europeia, vê-se acusado de toda a espécie de turpitudes. 
Duas acusações são recorrentes: a de se cometer o logro de pensar que não há alternativas, e, mais emocionalmente, a de se ser cruelmente indiferente ao sofrimento alheio. 
Teria algumas coisas lindas a dizer sobre esta última acusação, mas não as digo, porque não me apetece comentar os delírios de superioridade moral que a fundam e que são sempre uma coisa muito triste de ver. 
Quanto à questão das “alternativas”, ela é susceptível de uma discussão racional, que excede, de resto, o caso actual da Grécia. 
Para ser compreendido por quem anda sempre com as “alternativas” na boca, vou cometer o absurdo risco do mais pedante didactismo. 
Que Deus me proteja.

Começo até pelo princípio. 
Há quem defenda que todas as acções humanas obedecem, à semelhança de como supostamente se passam as coisas da natureza (não entro em detalhes na matéria), a uma necessidade absoluta. 
E há quem imagine, ao contrário, que tudo se encontra submetido ao acaso. 
Nenhuma destas doutrinas parece particularmente verosímil. 
E alguns espíritos ilustres conceberam, por isso, visões mais subtis. 
No contexto geral de uma necessidade que é a da natureza, há lugar para a contingência nos negócios humanos. 
Por isso, entre outras coisas, o futuro é contingente: pode ser de uma maneira ou de outra. A contingência não é meramente a consequência da ignorância humana. 
Faz parte da nossa realidade. 
Em jargão filosófico: possui uma consistência ontológica.

Claro que queremos, por assim dizer, domesticar essa contingência. 
As próprias sociedades fazem-no espontaneamente desenvolvendo tendências que se manifestam nela, que são historicamente determináveis e se cristalizam em certas configurações sociais, para usar a expressão de um sociólogo célebre. 
Mas, dada a complexidade da sociedade, a contingência não é, de direito, eliminável, embora seja possível limitar de certa maneira o seu escopo. 
O que vale para cada sociedade, vale igualmente na relação entre os vários Estados. Também aí se procura agir de modo a mitigar a contingência, isto é, de modo a evitar que a contingência se transforme em risco e que o risco se torne temível e o pior se venha a verificar.

Um dos modos de mitigar a contingência inventados pela sociedade foram os processos da objectivação do risco, que permitem controlar um pouco o que ele pode ter de ameaçador. Das companhias seguradoras a certos aspectos valiosos do Estado-Providência, é disso que se trata. 
Mas tudo, da vida pessoal à vida das sociedades, se encontra infiltrado por uma dimensão de risco não eliminável. 
Banalmente, é preciso ter sorte, até nas nossas decisões morais. 
Por muitos esforços que façamos, encontramo-nos sempre face ao desconhecido. 
Por isso, o risco, nomeadamente o risco da desagregação das sociedades políticas, é um tema perene da filosofia política.

E é aqui que entra a deliberação. 
Deliberar, se a deliberação se concluir, como deve, numa acção, é procurar determinar. Desejamos algo, deliberamos sobre o modo mais eficaz de o obter, e finalmente escolhemos, tomamos uma decisão, e agimos. 
A deliberação dá-se sempre em contextos onde há indeterminação, não em matérias onde tudo é necessário. 
E dirige-se ao futuro, bem entendido, e àquilo que nele depende de nós. 
Não deliberamos (excluo casos de perturbação mental) sobre coisas que somos incapazes de modificar. 
Este último aspecto é importante. 
O que podemos modificar é aquilo que um determinado quadro – uma determinada configuração, para repetir a palavra de há pouco – nos permite. 
E, é claro, as modificações afectam, pouco a pouco, o próprio quadro. 
Como num caleidoscópio, as configurações mudam. 
Com a diferença que não basta agitar: a coisa é geralmente mais lenta.

A capacidade deliberativa é quase um outro nome da liberdade. 
E, se quiserem, da soberania, tanto individual quanto colectiva. 
Um Estado é tanto mais soberano, como um indivíduo é tanto mais soberano, quanto maior for a sua capacidade para deliberar sobre questões substantivas, quer dizer, decisões que afectem verdadeiramente a sua vida. 
A deliberação é, sem dúvida, abertura de futuros, possibilidade de determinar à nossa maneira o que se encontra indeterminado, o que se vê afectado de contingência. 
Mas é importante repetir que essa deliberação só se pode dar no quadro daquilo que depende de nós.

E é aqui que entra, de novo, a Grécia. 
A Grécia entrou, por vontade própria, numa configuração dominada pela criação do euro. Não discuto a bondade dessa configuração. 
Por mim, até penso, desde há já bastante tempo, que tal criação se revelou um erro, que, a par de certos benefícios, engendrou constrições terríveis que estão na raiz de muitos dos nossos actuais problemas. 
Mas isso aqui não interessa. 
O que interessa é que a Grécia lá entrou e, tal como Portugal, perdeu grande parte da sua capacidade de deliberação colectiva (e os gregos, tal como os portugueses, de deliberação pessoal), isto é: perdeu grande parte da sua liberdade e da sua soberania.

Reivindicar uma liberdade que a configuração actual dos Estados europeus lhe interdita, e querer ao mesmo tempo continuar a pertencer a essa configuração, não é só querer comer o bolo e, ao mesmo tempo, guardá-lo. 
É outra coisa, não menos pueril mas certamente mais perigosa. 
É saltar por cima do espaço da deliberação, que obriga a uma determinação prévia dos possíveis, e optar por uma decisão que escapa a esse exercício prévio.

Há, de facto, sempre alternativas. 
E há-as mesmo passíveis de deliberação efectiva em configurações tão constringentes como a do euro. 
Por exemplo, a União Europeia bem que poderia, a pouco e pouco, folgar os laços que nos unem a todos, e que apertam demais, para nos permitir continuar juntos. 
Mas essas alternativas são escassas e mínimas. 
As verdadeiras alternativas substantivas são susceptíveis apenas de se apresentarem como puras decisões, com a irracionalidade própria de todas as puras decisões, isto é, daquelas que omitem voluntariamente toda a consideração dos possíveis. 
Ora, o que seria bom é que os teóricos das “alternativas” – que se ficam mais, de resto, pela menção dessa sua possibilidade do que pela enunciação dos seus detalhes e dos meios de as pôr em prática – dissessem claramente que é esse decisionismo radical que perfilham. 
E, já agora, que se pusessem a pensar na introdução do risco que defendem, risco até muito maior para os gregos do que para a União Europeia. 
Um risco que se dará sem protecção alguma e que terá de certeza consequências muito mais terríveis do que as da chamada austeridade.  
Dito de outra maneira: que, em grosso, a conversa das “alternativas” é um apelo à irracionalidade política.

Quando vejo o resultado das eleições gregas, ou as manifestações do “Podemos” em Espanha, o que sinto é medo, por causa dessa vontade de decidir sem a mediação de qualquer deliberação que tenha em conta os possíveis. 
Em Portugal, não tenho medo do “Juntos Podemos”, e até aprecio a sublime originalidade na escolha do nome. 
De resto, não sei se existe, se ainda vai existir ou se já deixou de existir. 
Seguir as aventuras diárias da extrema-esquerda é uma actividade extenuante. 
Mas tenho medo de algum PS, propenso a estes delírios, e até de António Costa, que mentalmente afagou o Syriza com o seu imaterial e quase permanente sorriso.

Já agora, e com pouco a ver com isto: porque raio tantos políticos crêem provocar confiança em nós exibindo um sorriso perpétuo? 
Em mim, pelo menos, tem o efeito inverso. 
Marcelo Rebelo de Sousa, pelo menos, ri-se. 
Parece-me melhor.

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