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sábado, 7 de fevereiro de 2015

Como o Ocidente perdeu Vladimir Putin

GIDEON RACHMAN
FINANCIAL TIMES
00:00 - 7 fEVEREIRO DE 2015
Ao fim de inúmeras horas de reuniões nos últimos seis meses e de muitas chamadas telefónicas, mais de 40 para sermos precisos, Angela Merkel preparou-se para a derradeira tentativa.


Já passava das dez da noite quando a chanceler alemã entrou na sala de conferências do hotel Hilton em Brisbane, Austrália. 
Tinha como interlocutor Vladimir Putin, o implacável presidente russo, que passou cerca de duas horas a debitar um chorrilho de ressentimentos.

O Ocidente clamou vitória na Guerra Fria; enganou Moscovo ao expandir a União Europeia e a Nato até à fronteira russa; ignorou as regras internacionais para poder aplicar políticas imprudentes no Iraque, Afeganistão e Líbia, e assim por diante. 
Uma fonte próxima da chanceler afirma que Merkel colocou novamente a tónica na questão da Ucrânia, onde separatistas apoiados por Moscovo se envolveram num conflito sanguinário contra o governo de Kiev, que conta com o apoio das nações ocidentais.

Desde o início da crise que Angela Merkel se esforça por entender as posições e argumentos de Putin, e descobrir quais as suas verdadeiras intenções para poder, quiçá, chegar a algum tipo de acordo ou entendimento. 
Quando, por fim, se decidiu a avançar com uma solução, Merkel ficou chocada. 
Para Putin, Kiev tem de lidar com os rebeldes da mesma maneira que ele lidou com os separatistas chechenos: comprando-os com dinheiro vivo e autonomia.

Putin é um verdadeiro mestre na arte da desestabilização: este cinturão negro de judo sabe perfeitamente como pode desequilibrar o adversário, alternando gestos amistosos e olhares ameaçadores. 
O presidente russo tem surpreendido os líderes ocidentais desde que a crise na Ucrânia começou - a maior ameaça à segurança da Europa desde o fim da Guerra Fria. 
De facto, embora saibam que Putin quer restaurar o poder da Rússia e manter a Ucrânia na sua esfera de influência, não fazem ideia como tenciona atingir os seus objectivos.

Quando a reunião terminou, por volta das duas da manhã, o ambiente estava particularmente tenso. 
No dia seguinte, em Sidney, a chanceler alemã retomou o tom cauteloso que lhe é habitual. "Quem diria que 25 anos depois da queda do Muro de Berlim poderia acontecer algo assim no coração da Europa...?". 
Acrescentou que as incursões de Putin na Ucrânia "puseram em causa a paz e a ordem europeias", e deixou um aviso: além da Ucrânia, existe o risco de a Rússia vir também a ameaçar a Geórgia ou os Balcãs.

A história de uma traição

O encontro entre os dois líderes na Austrália foi um ponto de viragem. 
Ao fim de um ano de crise, o Ocidente percebeu que correra atrás de uma quimera ao acreditar que a Rússia seguia o caminho da convergência com a Europa e o resto do mundo ocidental. 
Agora, pelo contrário, "tentamos identificar as diferenças", diz um alto funcionário alemão. Após o fiasco da diplomacia nos últimos meses, as duas partes encontram-se à beira de uma nova guerra fria. 
Não houve mais encontros entre Merkel e Putin desde Brisbane, apesar de falarem pontualmente ao telefone.

As novas ofensivas dos rebeldes apoiados pela Rússia no Leste da Ucrânia deitaram por terra as poucas esperanças colocadas no acordo de Minsk, o cessar-fogo assinado em Setembro. 
O futuro da Ucrânia, país industrializado e rico em termos agrícolas, e dos seus 45 milhões de habitantes depende da gestão de equilíbrios, que qualquer escalada no conflito pode vir a pôr em causa.

Do ponto de vista ucraniano, esta é a história de uma traição. 
Durante as manifestações no início de 2014 - que contribuíram para a destituição do governo pró-russo de Viktor Yanukovich -, tornou-se no primeiro país da Europa a assistir à morte de manifestantes empunhando bandeiras da UE. 
Em Kiev, muitos acreditam que o Ocidente abandonou a Ucrânia.

Apesar da UE e dos EUA não terem conseguido trazer a paz à região nem levar Putin a mudar de ideias, já somam alguns sucessos com especial destaque para a unidade em torno de um pacote de sanções à Rússia e a assinatura do tratado entre Kiev e a UE. 
Essa unidade vai ser testada nos próximos meses, mais concretamente em Junho, quando vencer o prazo das sanções económicas a Moscovo, cuja renovação implica um novo consenso entre os países da União.

Até agora, as sanções funcionaram como um "acelerador" - utilizando a expressão de um alto funcionário americano - da queda dos preços do petróleo, que empurrou a Rússia para uma crise económica profunda. 
A desvalorização do rublo, a recessão e a escalada da inflação têm constituído um desafio para Moscovo, que continua a financiar subrepticiamente a guerra na Ucrânia. 
O Kremlin insiste na sua narrativa dizendo que não há soldados russos no terreno apesar das provas em contrário.

Obama escolhe ficar em segundo plano

Tal como na crise da zona euro, Merkel colocou a Alemanha numa posição de liderança nos assuntos internacionais, o que acontece pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Nas palavras da chanceler, a Ucrânia vai testar a determinação do Ocidente em resolver um problema que ameaça a paz europeia. 
Um diplomata europeu frisou que "Merkel assumiu o comando da situação e nós ficámos muito satisfeitos com isso". 
Não são os únicos. 
"Os EUA também ficaram muito satisfeitos com o papel de liderança da Alemanha. 
Mais. 
A administração considera que a chanceler é o melhor interlocutor de Vladimir Putin no Ocidente", sublinha um ex-diplomata americano.

Merkel via Putin como um parceiro difícil com quem, apesar de tudo, podia fazer negócios. Porém, a crise na Ucrânia fê-la mudar de opinião. 
A chanceler percebeu que o presidente russo mentia quando negou qualquer envolvimento directo das tropas russas na anexação da Crimeia e, mais tarde, na invasão da Ucrânia. Em público, Merkel nunca acusou Putin de mentir, "mas em privado não se cansa de dizer aos outros líderes da UE que é um mentiroso nato", diz um diplomata europeu.

Manter a unidade entre a UE e os EUA é outro desafio igualmente delicado, depois das fricções provocadas pela guerra no Iraque há mais de uma década. 
Inicialmente, as sanções da UE eram mais tímidas do que as norte-americanas, apesar de sincronizadas, mas um acontecimento ocorrido em meados de Julho de 2014 ajudou a atenuar a crispação: a queda do MH17.

Um momento unificador

Quando o avião da Malaysia Airlines foi abatido, virou-se uma página nas relações do Ocidente com a Rússia. 
A opinião pública ocidental despertou brutalmente para a realidade: o conflito no leste da Ucrânia dera lugar a uma guerra capaz de pôr fim à vida de civis inocentes a centenas ou milhares de quilómetros do seu epicentro. 
O incidente não devia ter sido recebido com surpresa. 
Afinal, o cessar-fogo de dez dias anunciado por Poroshenko fora sucessivamente quebrado até ficar sem efeito a 1 de Julho de 2014. 
Poucos dias depois, as forças ucranianas recuperaram Slavyansk, o bastião militar dos rebeldes pró-russos.

Moscovo começou a enviar armamento pesado através da fronteira terrestre, incluindo mísseis antiaéreos com o objectivo de enfraquecer a força aérea ucraniana. 
Alguns diplomatas ocidentais acharam que o incidente do MH17 podia ser uma boa oportunidade para Putin abandonar o conflito sem perder totalmente a face. 
"Para nossa surpresa, Moscovo continuou a armar os rebeldes. 
Não recuou", realça um ex-ministro europeu dos Negócios Estrangeiros. 
"A chanceler achou que era fundamental enviar um sinal claro depois de um avião civil ter sido abatido por um míssil", explica Philip Missfelder, porta-voz da União Democrata-Cristão (CDU) para a política externa.

No dia 19 de Julho, Merkel foi o primeiro líder ocidental a dirigir a palavra ao presidente russo, exigindo que os separatistas ajudassem a recuperar os corpos das vítimas do MH17 e colaborassem na investigação. 
Perante os protestos de Putin - insistiu uma vez mais que não tinha qualquer controlo sobre os rebeldes -, a chanceler limitou-se a alertar para as consequências económicas da inacção de Moscovo.

Fora do Kremlin ninguém sabe ao certo se Putin podia ter tido uma atitude diferente daquela que tomou, mas sabe-se que a indignação provocada pelo incidente com o MH17 abriu caminho a um momento unificador para o Ocidente. 
A UE e os EUA articularam-se tendo em vista um objectivo comum: impor sanções económicas a diversos sectores de actividade da Rússia, bancos e petrolíferas estatais. Tudo isto somado à queda inesperada dos preços do petróleo agravou ainda mais a crise financeira em que a Rússia já estava mergulhada.

O Ocidente continua, contudo, em busca de respostas: quais são os objectivos de Putin? Planeia recuperar Novorossiya, o território no Mar Negro conquistado por Catarina a Grande, que se estende de Donetsk a Odessa? 
Está decidido a dividir a Nato? 
Seja qual for a sua meta, uma coisa ficou clara em Agosto passado: Putin está determinado a "não perder" a Ucrânia.


Tradução de Ana Pina

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