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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

PORTUGUESES NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO - INVESTIGAÇÃO





INVESTIGAÇÃO

Portugueses nos campos de concentração

A pergunta surgiu depois de uma visita a Auschwitz: seria possível que, de todos os prisioneiros que por ali passaram, de tantos países, nenhum fosse português? Em 2013, fomos à procura da resposta. Durante nove meses, vasculhámos arquivos, analisámos listas de transporte e registos de baptismo, percorremos Portugal e visitámos campos de concentração, bases de dados e familiares de vítimas em França, Alemanha e Polónia. A resposta está dada: houve muitos portugueses enviados para os campos de concentração nazis.
TRABALHO FINANCIADO NO ÂMBITO DO PROJECTO PÚBLICO MAIS
INVESTIGAÇÃO  -  I  PARTE
A história nunca contada dos portugueses nos campos de concentração
A pergunta surgiu depois de uma visita a Auschwitz: seria possível que, de todos os prisioneiros que por ali passaram, de tantos países, nenhum fosse português? 
Em 2013, fomos à procura da resposta. 
Durante nove meses, vasculhámos arquivos, analisámos listas de transporte e registos de baptismo, percorremos Portugal e visitámos campos de concentração, bases de dados e familiares de vítimas em França, Alemanha e Polónia. 
A resposta está dada: houve muitos portugueses enviados para os campos de concentração nazis.

O Comboio partiu às 6h15. 
Era o dia 25 de Junho de 1942 e no seu interior apinhavam-se mil homens. 
Todos judeus. 
Tinham passado os últimos meses no campo de internamento de Pithiviers, a 87 quilómetros a Sul de Paris, mas agora chegara a ordem de partida. 
O destino, desconhecido para os passageiros do comboio n.º 813, era o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. 
A bordo ia Michael Fresco, um judeu português, nascido em Lisboa, a 15 de Setembro de 1911. 
Enquanto Michael era deportado para Auschwitz, Luiz Ferreira, um funileiro da região de Guimarães, emigrado em Lyon, já tinha sido “apanhado” pelo regime colaboracionista francês, por causa da sua filiação no Partido Comunista e da acção clandestina contra os ocupantes nazis. 
Maria Barbosa, natural de Ponte de Lima e também emigrada em Lyon, estava longe de saber que, dois anos mais tarde, em 1944, estaria a iniciar a sua viagem em direcção ao campo de concentração de Ravensbrück. 
Já Casimiro Martins, um algarvio que partira para os Pirenéus franceses, para se juntar a um irmão e trabalhar na construção civil, não podia ainda imaginar que dali a dois anos e meio seria uma das vítimas mortais do campo de concentração de Neuengamme. 
Portugal manteve a neutralidade durante a guerra que devastou a Europa entre 1939 e 1945, mas os portugueses não saíram incólumes do conflito. 
Dezenas foram transportados para os campos de concentração e alguns morreram lá. 
Um destino ignorado pelo seu país, esquecido por membros das suas famílias, desconhecido dos portugueses. 
Quase 70 anos depois do fim da guerra, as suas histórias são, finalmente, contadas.

Michael Fresco morreu com 30 anos, apenas por ser judeu. 
O “Michael Strogoff”, alcunha pela qual era carinhosamente tratado em família, nas tardes de reunião que os Fresco gostavam de partilhar com os primos, em Lisboa, abandonara Portugal para se instalar na cidade francesa de Nantes, como comerciante. 
Foi aí que o seu futuro foi definitivamente interrompido. 
Para trás, deixava uma vida lisboeta que parece doce e alegre, nas palavras dos descendentes da família. 
Alberto Fresco, 65 anos, filho de uma prima de Michael, nunca conheceu este parente distante, mas lembra-se de ouvir a mãe, Rebeca, falar dele. 
“A família juntava-se toda e havia grandes brincadeiras. 
A minha mãe contava que o Michael era uma pessoa muito extrovertida, muito jovial, de tal modo que ele tinha uma alcunha, um petit nom entre os membros da família. 
Era conhecido como o Michael Strogoff. 
Estava-se numa época em que os livros do Júlio Verne eram muito apreciados e eu lembro-me sempre de ouvir falar do Michael como sendo o Michael Strogoff, o correio do czar.” Uma sobrinha-neta de Michael, que prefere não ser identificada, também se lembra bem de ouvir a avó, Raquel, falar do irmão perdido na guerra. 
“Eu adorava que a minha avó contasse histórias de família e ela falava muitas vezes do Michael, com grande tristeza. 
Contava como tinha sido deportado e morrera em vagões de gado”, diz.

Certificado de morte de Michael Fresco, em Auschwitz

A Comunidade Israelita de Lisboa ainda guarda o “Termo de Nascimento” de Michael Joseph Fresco, um dos seis filhos de Nissim e Sultana Fresco, dois judeus turcos de Constantinopla que se haviam fixado em Lisboa, no final do século XIX. 
Dos seis irmãos — Alberto, Miriam, Rebeca (que haveria de mudar o nome para Raquel depois de casar com um português de uma família profundamente católica), Vitória, Michael e Ventura —, Michael é o único cuja morte nos campos de concentração nazis está confirmada.

Apesar de a deportação e morte de Michael em Auschwitz ser algo de que Alberto se recorda de ouvir falar desde criança, não sabe precisar quando é que o primo emigrou para França, nem se se casou, se teve filhos ou em que condições é que foi preso.

A neta de Raquel lembra-se de a avó contar que o irmão casara e que fora denunciado aos alemães “por um cunhado francês”. 
Alberto diz que essa é “uma história” que também já ouviu, mas que nunca foi confirmada. Pode ter acontecido que, à semelhança de outros passageiros do comboio n.º 813, Michael Fresco tenha respondido voluntariamente à convocatória para apresentação às autoridades feita a todos os judeus estrangeiros residentes em França, a 14 de Maio de 1941, pelo regime de Vichy, e que ficaria conhecida como a rafle du billet vert.

Do que não há dúvidas é que Michael Fresco residia no Quai d’Orléans, n.º 11, em Nantes, antes de ser detido. 
Os nazis eram meticulosos nos registos que faziam dos prisioneiros e o certificado que atesta a morte do português em Auschwitz escapou à destruição organizada de todos os registos, pelos alemães, nos últimos meses da guerra. 
Além da morada de Michael, o documento indica que ele morreu às 15h20 do dia 24 de Julho de 1942, menos de um mês depois de chegar ao campo que, por esta altura, já se expandira para os terrenos em Birkenau e se tornara numa verdadeira máquina organizada de matar. 
Para aqueles que não eram imediatamente seleccionados para as câmaras de gás, a esperança de vida era de poucos meses, 
Graças ao trabalho escravo que eram obrigados a suportar, à subnutrição ou às experiências médicas ali desenvolvidas.

No caso de Michael, a causa de morte apontada pelos nazis é hidropisia cardíaca. 
Rebecca Boehing, directora do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, avisa que estas “certidões de óbito” devem ser olhadas com reserva. 
“Muitos dos nossos documentos foram criados pelas autoridades nazis, por isso se os nazis dizem: ‘o seu avô morreu de um ataque cardíaco, numa situação normal…’ 
Bom, não havia nada de normal em estar num campo de concentração, por isso é preciso contextualizar. 
Talvez tenha havido um ataque cardíaco, mas o que se passou? 
Que esforço foi feito antes?”, questiona.

Esta norte-americana, historiadora na Universidade de Maryland, Baltimore County, dirige o ITS desde Janeiro de 2013. 
Criado ainda antes do final da guerra, em 1943, pelos Aliados, o ITS congrega toda a documentação relativa aos campos de concentração. 
Estão ali fichas de nomes, listas de entrada ou de transferência dos campos, os Livros dos Mortos, em que se registavam as vítimas, as fichas de avaliação médica e as relações dos bens que os prisioneiros transportavam, cartões de identificação e, até, listas de pessoas com piolhos em determinado campo, que pormenorizam quantos piolhos foram encontrados em cada uma no dia em causa (os piolhos eram os principais transmissores de tifo, uma das doenças que mais assolaram os campos de concentração).

O ITS guarda cerca de 30 milhões de documentos relativos aos prisioneiros dos campos, aos homens e mulheres submetidos a trabalhos forçados durante o regime nazi e aos sobreviventes, que passaram pelos chamados Campos de Deslocados. 
Em Outubro de 2013, os seus arquivos foram classificados pela UNESCO como Memória do Mundo, pelo “valor excepcional e importância para a humanidade, pelo seu contributo para o conhecimento do impacto da guerra nas pessoas”.

Apesar da sua longa existência, o ITS só se abriu ao público em 2007. 
Até aí, apenas as vítimas directas do nazismo ou os seus familiares podiam aceder à informação guardada em três edifícios na pequena cidade no centro da Alemanha, Bad Arolsen. 
A digitalização de um elevado número de documentos e o alargamento dos objectivos do ITS, que passaram a incluir o acesso à pesquisa académica ou jornalística, disponibilizaram um manancial de informação de um valor inestimável. 
Permitiu, por exemplo, que se tornasse muito fácil responder a uma pergunta que até há pouco tempo não se fazia: houve portugueses nos campos de concentração?

Campo de Auschwitz II

Luiz, o militante

Nos arquivos do ITS os dados sobre Luiz Ferreira são abundantes. 
Só com a leitura dos documentos produzidos pelo regime de Adolf Hitler fica-se a saber que Luiz nasceu a 18 de Outubro de 1902, em “Braga, Província do Minho”. 
Que os seus pais se chamavam Lourenço (Laurent é a forma como aparece escrito nas fichas) e Joana Ferreira (Jeanine, de acordo com os documentos alemães), “nascida Oliveira”. 
Descobre-se também que Luiz foi internado no campo de concentração de Buchenwald como prisioneiro político, com o número 69369, e que era solteiro e sem filhos.

As características físicas do português, anotadas na sua ficha do campo, indicam que media 1,58 metros, pesava 61 quilos, era “louro”, “esguio”, de olhos castanhos e não tinha todos os dentes. 
Além disso, falava “francês, português e espanhol”. 
Já a ficha médica indica que ele tivera um acidente em 1925, que lhe deixara a mão esquerda danificada e que, em 1937, sofrera uma fractura na parte inferior da coxa direita, classificada como “ferimento de guerra”, o que apontava para a sua presença na Guerra Civil de Espanha (1936-1939). 
O nome de Luiz Ferreira aparece ainda numa lista de oito sobreviventes portugueses do campo de Buchenwald, feita pelos Aliados após a libertação.

Apesar de toda esta informação, Luiz continuava a ser apenas um conjunto de dados inseridos pelos nazis em documentos oficiais. 
Mas a Revista 2 encontrou, nos livros de baptismo do distrito de Braga, o registo no qual o Padre Joaquim Rodrigues da Silva certificava ter “baptizado solenemente”, na igreja de S. Paio de Figueiredo, em Guimarães, um menino chamado Luiz, que nascera naquela freguesia “às oito horas da manhã do dia dezoito do mês de Outubro do ano de mil novecentos e dois, filho legítimo de Lourenço Ferreira Martins, jornaleiro, natural desta freguesia e de Joanna de Oliveira, tendeira de cotim e natural da freguesia de S. Martinho de Leitões, deste concelho de Guimarães”.

Luiz nasceu nove meses depois de os pais terem protagonizado o primeiro casamento do ano em Figueiredo, a 9 de Janeiro de 1902, e haveria de ser o mais velho dos seis filhos do casal. 
O pai especializou-se como funileiro e viu a vida melhorar, fazendo vários acrescentos à casa que entretanto adquiriu em Airão, Santa Maria, para onde a família se mudou. 
Hoje, a velha casa ainda existe, em ruínas, abandonada às silvas, e há pelo menos uma sobrinha de Luiz, filha da sua irmã mais nova, Ana da Glória, que continua a morar em Airão. 
Mas é em Joane, Vila Nova de Famalicão, que encontramos Amélia Martins, a sobrinha favorita de Luiz, com 62 anos e uma colecção de memórias do tio. 
Amélia foi quem mais se aproximou do tio, quando ele, comunista, regressou ao religioso e conservador Minho do pré-25 de Abril. 
Nos anos seguintes, Amélia nunca parou de trocar correspondência com ele, de o visitar em França e até de o acompanhar em eventos do Partido Comunista francês. 
Quando morreu, foi a Amélia que Luiz confiou a responsabilidade de cumprir os seus desejos. 
E é ela quem guarda os seus livros relacionados com a II Guerra Mundial.

Luiz Ferreira numa fotografia da colecção familiar

Amélia recebe-nos com essa pilha de livros e também com um álbum de fotografias do tio, dedicado a este conflito e à Guerra Civil de Espanha. 
Entre os volumes que Amélia trouxe de casa de Luiz, em Lyon, depois da morte deste, aos 89 anos, há um livro chamado La Déportation, feito pela Fédération Nationale des Déportés et Internés Résistants et Patriotes, que contém a inscrição, em francês: “Impresso especialmente para Louis Ferrera Martins Deportado em Buchenwald.” 
Neste livro, Luiz introduziu folhas pautadas, escritas à mão e dirigidas a Amélia, com o objectivo de a ajudar a compreender melhor as imagens a preto e branco que ocupam quase todas as páginas. 
Estas pequenas notas, cheias dos erros naturais de quem pouco fora à escola e abandonara o país há décadas, são um documento precioso para preencher as lacunas deixadas pelos documentos nazis e pelas memórias de Amélia.

“O meu tio foi uma pessoa que cumpriu bem a vida, porque entendeu tudo muito bem, apesar de todo o sofrimento. 
Cumpriu o papel dele no mundo. 
Penso que não era daquelas pessoas que chega ao fim e diz: ‘a minha vida foi uma perda de tempo’. 
Ele não podia dizer isso. 
Ele tinha a ideia de que tinha feito tudo o que podia”, conta Amélia, enquanto vai correndo os olhos e os dedos pelas fotografias espalhadas pela mesa.

Segundo Amélia, o filho mais velho de Lourenço e Joana chegou a estar emigrado com o pai em Inglaterra e em França, antes de um desentendimento entre ambos o ter levado a permanecer neste país. 
“Acho que o meu tio tinha algumas queixas do meu avô, já quando trabalhavam aqui, e lá as dificuldades acentuaram-se. 
Acabou por deixar o pai e desaparecer, já com vinte e tal anos. 
O meu avô teve de regressar sozinho, que ele nunca mais deu notícias. 
A minha avó perguntava, queria saber do filho, e o meu avô dizia ‘o rapaz fugiu’. 
Nada a fazer”, conta. 
Os pais de Luiz haveriam de morrer — ela com 83 anos e ele com 95 — sem terem mais notícias do filho. 
Sem fazerem a mínima ideia se estava morto ou vivo e, muito menos, que passara quase cinco anos em prisões francesas e em campos de concentração nazis.

Luiz começou a sua vida em França, sozinho, não se sabe exactamente em que ano, mas em 1932, conforme escreveu numa das notas deixadas à sobrinha, “já militava” no Partido Comunista Francês. 
Foi sindicalista até morrer, em 1991. 
Em 1936, partiu como voluntário para a Guerra Civil de Espanha e por lá ficou até 1938, usando o nome de código Simon. 
Nas notas que deixou a Amélia, uma foi colocada junto à fotografia do Coronel Fabien (Pierre Georges), morto em 1944 na frente da Alsácia, com a indicação: “Foi combatente comigo na 12.ª Brigada (Madrid 1938).”

Luiz integrou o Batalhão André Marty, liderado pelo comunista Fernand Belino e, quando ambos estavam já detidos na Prisão Central de Eysses, em França, o português é um dos prisioneiros que lhe oferece, a 7 de Novembro de 1943, um caderno, ostentando na capa um desenho de um voluntário das Brigadas Internacionais e um texto (com a assinatura, entre outras, de Luiz Ferreira) em que se pode ler: “Ao nosso camarada Belino este pequeno livro-recordação em que escreverá as datas memoráveis da nossa luta depois da formação em Eysses da nossa Amicale das B.I.; como testemunho da nossa fraternidade e dos serviços que ele prestou como oficial do Batalhão André Marty.”

Nas notas manuscritas inseridas no livro La Déportation, Luiz refere: “Desde 1940 a Resistência se organiza. 
Eu fui apanhado a 15 de Outubro de 1940. 
Outros seguiram o mesmo combate.” 
Junto a uma fotografia da Prisão Central de Eysses, o português escreveu: “Foi uma das minhas várias cadeias em França, antes de ser deportado [para] Buchenwald.”

A entrada dos comunistas no combate aos nazis não foi imediata. 
Nos primeiros meses de guerra, em consequência da assinatura do pacto germano-soviético de não-agressão em vésperas do conflito, muitos comunistas franceses recusaram-se a combater abertamente os alemães. 
O tempo acabaria por mudar as regras do jogo. 
Amélia não sabe as circunstâncias exactas em que o tio foi preso, mas o que ele lhe contou ao longo dos anos de convívio ajuda-a a resumir numa frase o percurso de Luiz: “Quando houve a invasão da França, [os comunistas] juntaram-se à Resistência francesa e foi aí que ele foi levado como deportado para a Alemanha.”

De facto, a deportação de Luiz Ferreira só iria acontecer no dia 31 de Julho de 1944, depois de quatro anos de prisão e de um período de internamento, eventualmente no campo de Noé, iniciado a 19 de Fevereiro desse ano, conforme se pode ler no seu Cartão de Deportado Resistente, que Amélia ainda guarda. 
A 31 de Julho, Luiz era um dos 1191 passageiros de um comboio que saiu de Toulouse em direcção ao campo de concentração de Buchenwald. 
E não era o único português.

De acordo com as listas de transportes reconstruídas pela Fundação para a Memória da Deportação quatro outros portugueses seguiam no mesmo transporte — Cândido Ferreira, 22 anos, de Famalicão; António Ribeiro, 49 anos, da Beira Alta, casado e com oito filhos; Aníbal dos Santos, 60 anos, de Bragança, casado e com quatro filhos; e Venâncio Dias, nascido a 14 de Maio de 1904 ou 1914, em S. Vicente, Vila Verde. 
Dos cinco homens enviados naquele dia para Buchenwald, quatro constam da lista de portugueses que sobreviveram à passagem pelo campo. 
Nessa lista não está, contudo, o nome de Cândido Ferreira.

Monumento às vítimas de Buchenwald, na Alemanha

Cândido foi internado em Buchenwald como prisioneiro político, apesar de na sua ficha constar que fora preso a 2 de Julho de 1943, em Roumazières, e condenado a um ano de cadeia por roubo. 
Com 1,62, cabelo negro e olhos castanhos, o português acabaria por morrer em Buchenwald, às 13h15 do dia 24 de Fevereiro de 1945. 
A razão (provavelmente forjada) foi gastrenterite. 
Menos de dois meses depois, a 11 de Abril, o campo era libertado por tropas norte-americanas.

Entretanto, como os outros prisioneiros, Luiz passara fome — Amélia diz que ele pesava 45 quilos no final da guerra —, perdera amigos e fora transferido para o subcampo de Schönebeck, onde a fábrica Junkers produzia peças para aviões. 
Destino idêntico ao de milhares de prisioneiros nos últimos anos de guerra, em que os alemães tentavam a todo o custo alimentar a indústria de armamento. 
Amélia diz que ele contava “muitas coisas do campo”, mas hoje o nervosismo faz-lhe fugir a memória, deixando-lhe apenas alguns fragmentos do que o tio lhe dissera. 
“Uma vez comeram um gato. 
Havia uma senhora casada com um guarda que tinha um gatinho. 
Eles estavam cheios de fome, caçaram o gato e comeram-no. 
Outras vezes dizia-me que, não tendo mais nada para comer, comiam pão com sal. 
Ele dizia ‘e até nos habituamos a comer aquilo e gostávamos’. 
Era pão com sal, não havia mais nada”, recorda. 
A outra coisa que Luiz repetia, quando via filmes que pretendiam retratar o Holocausto, diz Amélia, é que a realidade fora “muito pior”.

Nas notas que deixou à sobrinha, Luiz recorda o transporte (“os vagões estavam marcados, cavalos — 8, homens — 40, chegamos a estar 120 em cada carruagem”) e vários aspectos da vida no campo, incluindo o momento em que lá entrou, no início de Agosto de 1944 (“A chegada aos campos — chicote e cães para morder as pessoa”); a desinfecção (junto a uma foto de Auschwitz escreveu: “quando cheguei a Buchenwald (…) também nos introduziram numa sala de banhos muito parecida, mas como nessa altura precisavam de gente para trabalhar, escapamos”); os barracões (“Chalits [estrados] de 4 andares, em cada separação 5 lugares, mas em Agosto de 44, que estávamos 70 mil em Buchenwald, em vez de 5 pessoas nos colocaram 10 entre cada separação. 
Então, já vês, como sardinhas, à direita como à esquerda, tinhas sempre um par de pés diante do nariz, mas com a fome que tínhamos não se sentia o perfume”); ou as atrocidades cometidas contra os prisioneiros. 
(“Nesta página vês um quebra-luz e outros objectos todos feitos de pele humana. Ilse Koch era a esposa do comandante do campo de Buchenwald. 
Quando ela via num prisioneiro uma bonita tatuagem logo o mandava matar para confeccionar objectos de casa.”)

Apesar da gravidade dos factos que descreve, o Luiz “alegre” e “muito divertido”, que “até contava anedotas”, de que Amélia se recorda, parece saltar destas linhas. 
O mesmo acontece quando relata a sua libertação, depois de integrar uma das várias e muito mortíferas marchas a que os alemães forçaram os prisioneiros, à medida que os Aliados se aproximavam. 
“Depois de 27 dias de marcha Schönebeck, Berlim, Sachsenhausen (Parchim) aqui os soviéticos encontraram os americanos e fomos libertados. 
Para mim era o último dia. 
Se tinha de andar mais um dia também tinha direito a um tiro na cabeça. 
Era a sorte de todos os que não podiam andar mais”, escreveu. 
O Cartão de Deportado Resistente de Luiz Ferreira indica que a sua libertação aconteceu a 13 de Maio de 1945.

Só 21 anos mais tarde, em 1966, pouco depois da morte do pai, é que ele regressaria a Airão, onde os irmãos o encontraram, montado numa bicicleta, a regressar de uma visita ao túmulo dos pais, de amigos e de uma antiga namorada. 
Apesar de ter tido vários relacionamentos, nunca casou e a família não lhe conhece filhos.

Um enorme silêncio

Se Luiz Ferreira não tivesse regressado a Portugal e voltado a conviver com a família, o mais provável é que a sua história se tivesse perdido ou não passasse de fragmentos em documentos nazis. 
No ITS, Renate Bröker, que há 20 anos ajuda a reunir famílias ou a desenhar as histórias perdidas dos que morreram nos campos de concentração, garante nunca ter tido um pedido de informação vindo de ou sobre Portugal. 
Susanne Urban, directora do Departamento de História e Educação do ITS desde 2009, confirma a quase inexistência de contactos portugueses em busca de dados sobre cidadãos nacionais. 
“Penso que é porque as pessoas não conhecem o ITS em Portugal e porque este tópico em particular, da perseguição de portugueses pelos nazis, não é muito conhecido.” 
A directora do ITS, Rebecca Boheing, tem a mesma opinião: “As pessoas muitas vezes pensam, ‘bom, Portugal não esteve directamente envolvido na guerra, por isso é claro que não há vítimas portuguesas’. 
Mas as pessoas movimentavam-se muito e Portugal, claro, tem o seu próprio passado difícil. 
As pessoas procuraram refúgio noutros países e, por vezes, acabaram numa situação ainda mais difícil.”

A reduzida pesquisa sobre prisioneiros portugueses testemunhada pelo ITS é também corroborada por investigadores portugueses, que trabalham matérias muito próximas deste tema, como a emigração portuguesa em França ou a relação de Portugal com a II Guerra Mundial. 
Um deles é a historiadora Cristina Clímaco, com estudos publicados sobre o internamento de opositores de Salazar nos campos do sudoeste de França, no tempo de guerra. 
“Não há nada trabalhado sobre portugueses nos campos de concentração ou envolvidos com a Resistência. 
Há muitas coisas que se dizem, mas não há nada trabalhado”, admite. 
O historiador Fernando Rosas tentou, recentemente, obter uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia para investigar “os portugueses mortos nos campos de concentração”, mas a recusa do projecto levou-o, e à sua equipa, a alargar o âmbito da pesquisa para “o trabalho forçado de portugueses” no regime nazi, na tentativa de conseguir uma bolsa de uma entidade alemã. 
O historiador tem esperança de que esta candidatura seja aprovada em breve, mas ainda aguarda uma resposta. 
“Não há nenhum trabalho sobre os portugueses mortos nos campos de concentração e a nossa equipa, nas buscas preliminares que fez, já conseguiu detectar 70”, garante.

Fernando Rosas não tem dificuldade em encontrar razões para a falta de estudos sobre a presença de portugueses nos campos de concentração ou no trabalho forçado. “Imediatamente a seguir à guerra não se falou no assunto pelo facto de Salazar desejar ocultar a realidade. 
A postura oficial do Governo é que Portugal não tinha nada a ver com a guerra, sobretudo no que respeitava à Alemanha, e houve portugueses que fizeram também trabalho a favor da Alemanha. 
Era embaraçoso. 
Além disso, a história contemporânea só começou a ser trabalhada a partir dos anos 80. Há muita coisa por fazer. 
Sobre os refugiados judeus em Portugal, por exemplo, já há muito trabalho feito, sobre isto não, até porque não havia forma de lá chegar”, diz.

Já havia quem tivesse levantado um pouco o véu sobre o assunto. 
No livro Portugueses no Holocausto, publicado em 2012, Esther Mucznik fala do caso de Michael Fresco e indica o nome de alguns portugueses enviados para os campos de concentração, constatando: “A França forneceu o maior contingente de portugueses para a Resistência. 
É uma história desconhecida mas que merecia ser contada.” 
Também em Salazar, Portugal e o Holocausto, publicado no ano passado, as historiadoras Irene Flunser Pimentel e Cláudia Ninhos (que integra agora a candidatura de Fernando Rosas) recuperam uma história parcialmente contada pelo jornal O Século, em 1945, e que aponta para que o português Inácio Augusto Anta, chegado a França via Guerra Civil de Espanha, tenha morrido no campo de concentração de Sachsenhausen.

Ainda assim, o silêncio sobre este tema imperou nas décadas que se seguiram ao fim do conflito. 
E, mesmo durante a guerra, enquanto dezenas de portugueses residentes em França eram enfiados em campos de internamento (como acontecia com os franceses ou residentes de outras nacionalidades no país) e, posteriormente, deportados para os campos de concentração, a correspondência entre o Governo português e as legações nacionais em Paris e, depois do Armistício, em Vichy revelam o que parece ser um total alheamento da situação. 
Entre 1939 e Maio de 1945, os telegramas trocados entre as duas entidades referem-se, várias vezes, à questão dos judeus que procuram obter papéis portugueses ou ao interesse francês em que Portugal envie para aquele país mais trabalhadores, sobretudo para a agricultura, com a França a insistir na concretização de um acordo nesse sentido. 
Também há referência, logo após a invasão da França, em 1940, a portugueses que “estão sem trabalho e na miséria”, pelo que pretendem “regressar imediatamente a Portugal” (telegrama de 6 de Agosto de 1940, enviado da Legação de Vichy).

Reconstituição do interior de uma das barracas de Birkenau, onde os prisioneiros eram amontoados

A “requisição” de mão-de-obra portuguesa pelos alemães também é tratada, em várias comunicações entre Lisboa e França, ao longo do ano de 1942, com o Governo de Salazar a insistir sistematicamente com a Alemanha para que este “trabalho obrigatório”, imposto pelos alemães a uma quota de residentes nos países ocupados, deixe de fora os portugueses, por serem cidadãos de um país neutro. 
Um pedido que os alemães fingem acatar, mas que, como é evidente num telegrama enviado a 29 de Abril de 1944, da Legação Portuguesa em Vichy para Lisboa, nunca cumpriu inteiramente: “Tendo sido informado pelos consulados Lyon e Toulouse de que a polícia alemã procede à prisão de operários portugueses domiciliados zona francesa do sul, em vista de incorporá-los no trabalho obrigatório, dirigi uma nota à Embaixada da Alemanha, salientando ilegalidade tal procedimento, pedindo libertação portugueses incorporados e cessão requisições.” 
Quase um mês depois, a 20 de Maio de 1944, a legação envia novo telegrama, denunciando “novas requisições e prisões” e indicando: “[…] 
Hoje mesmo acabo de ter notícia de prisões de portugueses recentemente verificadas sem motivo justificado.”

É provável que alguns destes portugueses tenham terminado em campos de concentração nazi, mas a única referência directa na correspondência diplomática entre Lisboa e Paris/Vichy à deportação de portugueses para a Alemanha acontece a 26 de Maio de 1944, num telegrama enviado de Vichy, às 18h44: “Autoridades alemãs prenderam português Luiz Júlio e Acácio Pereira
O primeiro nascido a 2 Setembro 1905 dirige uma exploração da sociedade anónima ‘Bagnaclarina’ onde se encontra há 13 anos e preso em Bagnac por autoridades alemãs a 12 Maio último, foi levado para Montanpan e em seguida Alemanha. 
O segundo, contramestre da empresa ‘Souchal’ foi preso pelas SS às 5h da madrugada seu domicílio e conduzido para Agen. 
Entreguei nota embaixada alemã reclamando contra detenção e pedindo libertação.” 
No mesmo dia, o Ministério dos Negócios Estrangeiros responde, indicando: “[…] 
Não ser caso renovar instruções dadas em França pois comando já depois total ocupação insistira mais uma vez por cumprimento ordem sentido proibição alistamento forçado trabalho súbditos países neutros e tais ordens não podiam deixar ser conhecidas e cumpridas.” 
O telegrama diz ainda que os alemães solicitaram elementos de identificação dos portugueses afectados para “remediar mal onde o tenha havido”.

Não volta a existir qualquer referência a estes dois portugueses e a verdade é que pelo menos no caso de Acácio Pereira não houve lugar a qualquer tentativa de “remediar” o mal feito. 
Nascido a 8 de Novembro de 1913, em Odivelas, o português residia na pequena localidade de Lacapelle Biron, quando foi detido, durante uma incursão alemã, na madrugada de 21 de Maio de 1944, levado a cabo pela violenta divisão SS Das Reich (que, dias depois, a 10 de Junho, haveria de massacrar homens, mulheres e crianças de Oradour-sur-Glane, queimando toda a aldeia). 
Os alemães prenderam os homens com idades compreendidas entre os 18 e 60 anos. Várias aldeias em volta foram alvo destas incursões, designadas por “rafles”, e que partiriam, alegadamente, de denúncias sobre actividade da Resistência. 
Terá sido também no âmbito de um desses ataques que Luiz Júlio foi detido, a 12 de Maio, em Bagnac-sur-Célé. 
Aqui, os alemães detiveram 40 homens, em Lacapelle Biron, pelo menos 47. 
Entre eles, Acácio Pereira, mas também outros dois portugueses: André ou Mário de Sousa (nos documentos nazis o português está identificado como Ahleno, e na página da Amicale que se refere ao caso de Lacapelle Biron, aparece como André de Sousa e Mário de Sousa, em situações diferentes), nascido a 17 de Maio de 1905, casado, com dois filhos e analfabeto; e Joaquim Sequeira, nascido a 7 de Agosto de 1911, em Lalim, Lamego, casado, com um filho, e que também não sabia ler ou escrever.

Os três portugueses e os outros homens das redondezas foram metidos em camiões e enviados para a prisão de Agen. 
Acácio, André, Mário e Joaquim seriam depois deportados para o campo de concentração de Dachau, num comboio que saiu da estação de Compiègne a 18 de Junho de 1944, com 2143 passageiros, incluindo um outro português, Manuel Pires, nascido a 5 de Junho de 1905. 
Ao contrário dos três portugueses de Lacapelle Biron, detidos menos de um mês antes, Manuel Pires, com quatro filhos, de “raça ariana”, com “olhos azuis”, já tinha sido capturado pelos nazis a 29 de Novembro de 1943, por razões que se desconhecem. 
Os quatro portugueses deste transporte haveriam de sobreviver à guerra. 
Os três habitantes de Lacapelle Biron regressaram mesmo à localidade do departamento de Lot-et-Garonne e têm os seus nomes inscritos no monumento que recorda os deportados locais.

Os casos de Michael, Luiz e Acácio parecem resumir as razões pelas quais muitos portugueses se viram encarcerados nos campos de morte que o regime de Adolf Hitler implantou na Europa Central — eram judeus, participavam de alguma forma em redes de Resistência ou foram apanhados nas “rafles” alemãs. 
Os criminosos de delito comum, os homossexuais ou as pessoas consideradas “associais” poderiam encontrar o mesmo destino, mas a verdade é que, com a excepção de Michael Fresco, todos os casos de portugueses encontrados pela Revista 2 nos arquivos do ITS ou nas listas dos transportes que deixaram a França têm sempre a mesma indicação: “Prisioneiro Político”.

Susanne Urban, do ITS, explica que os portadores do triângulo vermelho, indicativo da sua condição de preso político, não tinham tratamento preferencial. 
“Eles eram levados para os campos supostamente para serem reeducados, para serem reformados e depois eram usados como escravos. ~
Era muito comum serem transferidos várias vezes. 
Se uma fábrica era bombardeada, transferiam-na para o subsolo ou para outro lado”, diz.

1944 é o ano em que mais portugueses são enviados para os campos de concentração e muitos deles seguem em comboios que deixam o grande campo de internamento e de trânsito de Compiègne, logo nos primeiros meses do ano. 
Os quatro comboios que deixaram Compiègne em Janeiro de 1944 levavam sempre portugueses entre os passageiros.

Os terrenos do antigo campo de Buchenwald foram transformados num memorial

Os três primeiros, com partida a 17, 22 e 27 desse mês, todos com destino a Buchenwald, transportavam mais de 5500 passageiros, incluindo sete portugueses. 
Sobre alguns deles pouco mais se sabe do que o local e data de nascimento, o percurso nos campos de concentração e se sobreviveram ou não à guerra. 
É assim com João Faria de Sá, 33 anos, de Famalicão; Manuel Alves, 33 anos, de Vila Verde; Júlio Laranjo, 24 anos, de São Tiago (ou Santiago); Prosper Colomar, 44 anos, de Lisboa; e Duarte da Paixão, 28 anos, de Torre do Terrenho, Trancoso. 
Mas, noutros casos, as fichas recuperadas dos campos de concentração contêm pormenores que lhes dão outra intensidade.

Há, por exemplo, o caso de Augusto José Rodrigues, 22 anos, de Cascais. 
Este homem, solteiro, de olhos verdes, vivia com a família em Marselha, e chega a Buchenwald sem o dedo indicador da mão esquerda. 
Ali, é enviado para a zona designada por “Pequeno Campo”, onde as condições de vida conseguiam ser ainda mais desumanas do que no resto do complexo. 
Por que foi enviado para lá? 
Não se sabe, mas a fama do local ditaria a sorte de Augusto, que morreu no bloco 58 do “Pequeno Campo”, a 2 de Março de 1944. 
Os nazis dizem que sucumbiu a uma tuberculose.

Outro caso estranho é o de Emílio Pereira. 
O minhoto, natural de Prado, Santa Maria, em Vila Verde, é detido com 33 anos e a sua ficha de prisioneiro é, de todas as que a Revista 2 consultou no ITS, a única que inclui a fotografia do detido. 
O rosto duro de Emílio ainda nos mira, de frente, tal como era quando chegou a Buchenwald, há 70 anos. 
Este pedreiro com 1,63 metros, moreno, fora preso a 11 de Dezembro de 1943 e chega ao campo com a indicação de ser um prisioneiro político. 
O curioso acerca de Emílio é o seu historial médico, que aparentemente o encaminharia directamente para a morte, por ser “dispensável”, e que nos remete para um homem que deveria ser um verdadeiro osso duro de roer.

Segundo a ficha médica feita pelos nazis, Emílio teve malária em 1923; em 1943 sofreu um acidente que lhe fracturou o crânio e lhe deixou uma cicatriz profunda, na cabeça, uma fractura no braço esquerdo e contusões na pélvis; foi operado ao fígado; sofria “três a quatro ataques de epilepsia por mês”; e era amblíope. 
Como é que ele se conseguiu manter vivo e não foi imediatamente enviado para a morte com este historial é um absoluto mistério, mas a verdade é que o português aparece na lista dos sobreviventes portugueses de Buchenwald.

Dos sete portugueses que deixaram a França em Janeiro de 1944, um deles tem uma forte ligação com um transporte que há-de sair também de Compiègne, no dia 31 desse mês. Maurice d’Azevedo, de 19 anos, pertencia a uma família portuguesa profundamente envolvida com a Resistência. 
Não se sabe se o jovem sobreviveu à guerra, mas a sua mãe, deportada no último dia do mês, haveria de regressar.

Maria d’Azevedo era uma das duas portuguesas a bordo do comboio de mulheres que deixou a França em direcção ao campo de Ravensbruck. 
A outra era Maria Barbosa
As suas histórias serão contadas na próxima edição da Revista 2.     

Emílio Pereira foi deportado para o campo de Buchenwald, como atesta a sua ficha de prisioneiro


INVESTIGAÇÃO  -  II  PARTE
Eram seis menos dez quando o relógio de Paulo parou em Neuengamme
Nesta segunda parte da investigação do PÚBLICO sobre os portugueses enviados para os campos de concentração, contamos quem foram as mulheres que também não escaparam às perseguições nazis. 
Revelamos como a história de Casimiro foi resgatada pelo sobrinho francês e como o algarvio faz hoje parte da memória de uma pequena aldeia nos Pirenéus. 
E como o International Tracing Service ainda aguarda que algum familiar de Paulo reclame o que ele deixou para trás.

François Vallon conheceu Maria Barbosa em 1962, no restaurante de Lyon onde ela trabalhava. 
François tinha 28 anos, Mariette, como era tratada em França, 40. 
“Ela trabalhava na cozinha, mas às vezes servia à mesa. 
O primeiro contacto que tivemos foi por causa do meu nome: ela disse-me que eu tinha o mesmo nome do irmão dela, desaparecido após a deportação para a Alemanha.” 
François, hoje com 80 anos, está sentado na sala da sua casa, a poucos quilómetros da pequena localidade de Port-Sainte-Marie, no Sudoeste de França. 
O cemitério onde repousa Maria Barbosa, com quem se casou em Novembro de 1964, fica a poucas dezenas de metros da habitação, no topo de uma subida acentuada, que François percorre amiúde, desde que a portuguesa morreu, em 2008. 
Na campa, o marido de Mariette colocou duas placas: uma que identifica a mulher como “antiga deportada”; outra dedicada ao irmão dela, Francisco Barbosa da Costa, com a indicação “morto durante a deportação”.

Os irmãos Barbosa, Mariette e Francisco, chegaram a França ainda crianças, acompanhados por uma irmã mais velha, Rosa, e pelos pais, João Barbosa e Diolinda de Magalhães. 
Os três filhos do casal Barbosa tinham nascido em Vilar das Almas, Ponte de Lima, onde a família residia antes de se instalar na região de Lyon, em França. 
Aí, João e Diolinda teriam ainda mais dois filhos.

Mariette, nascida a 23 de Fevereiro de 1922, tinha apenas 17 anos quando a guerra rebentou, mas em 1944 a jovem portuguesa de 22 anos, que residia, então, em Saint-Fons, estava já envolvida no combate ao nazismo. 
“Não sei [se ela era politizada]. 
Certamente um pouco. 
Em 1944, ela vivia maritalmente com um homem e ele, sim, era envolvido politicamente”, recorda François Vallon.

A portuguesa foi detida a 10 de Janeiro de 1944, durante uma operação desenvolvida pela Milícia francesa, uma organização ao estilo da Gestapo alemã e que funcionava em articulação com ela. 
François guarda ainda a página de um jornal local francês, cuja data e o nome desconhece, na qual é descrita a operação que levou à detenção daquela que haveria de ser a sua mulher.

Naquela segunda-feira à noite, pelas 20h, Mariette estava numa casa conhecida como Pommerol, alugada por Edmond Partouche, resistente do maquis da localidade de Azergues, ligado à rede resistente comunista Francs-Tireurs et Partisans Français (FTPF). Segundo o artigo, Mariette integraria uma outra rede, baptizada com o nome do primeiro resistente de Lyon condenado à guilhotina pelo regime de Vichy, em 1943, Émile Bertrand. René Fernandez, um jovem de 18 anos que se ia encontrar com o grupo, apercebeu-se da movimentação da Milícia na rua onde se encontravam os amigos e ainda os tentou avisar, mas acabou por ser assassinado.

No interior da casa estavam Mariette Barbosa, Antoine Garcia e Daniel Agnes. 
Antoine é ferido num braço e consegue fugir, mas Mariette e Daniel são presos. 
“A minha mulher dizia sempre que a pessoa que foi presa com ela estava ali por acaso. 
Era um amigo de pessoas que pertenciam à Resistência, conhecia-os, queria vê-los, mas acabou detido”, relata François Vallon.

O cartão de deportada de Maria Barbosa

Para a jovem portuguesa, começava uma jornada de sofrimento que, ao longo dos anos, sempre teve relutância em recordar, como conta o marido: “Ela evitava falar e, quando via os documentários na televisão, dizia sempre: ‘Estão longe da verdade.’ 
Mesmo em Ravensbrück, mas sobretudo em Bergen-Belsen. 
Este era um campo que existiu durante muito tempo, mas no fim da guerra eles tentaram colocar ali toda a gente e era mais um lugar onde se morria. 
Ela explicou-me coisas… 
Que [os prisioneiros] eram obrigados a transportar os cadáveres e que, às vezes, as mãos ou os braços deles lhes ficavam nas mãos, por causa do elevado estado de decomposição.”

Depois da rusga em Saint-Fons, Mariette esteve detida na prisão Montluc, em Lyon, até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro. 
Do pouco que Mariette lhe contou, François acreditava que a mulher tinha estado apenas nos campos de concentração de Ravensbrück e Bergen-Belsen, mas a verdade é que os arquivos do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, que guardam todos os documentos sobre os campos de concentração nazis, têm vários registos que apontam para a presença de Mariette também no campo de Neuengamme, onde lhe atribuíram o número de prisioneira 5575. 
Não é de estranhar que tal tenha acontecido, uma vez que, como conta o investigador Pierre-Emmanuel Dufayel, em Un convoi de femmes, o livro que escreveu, dedicado ao transporte em que Mariette foi deportada: “Perto de 70% das mulheres que deixaram Compiègne a 31 de Janeiro foram transferidas ou empregadas num comando satélite. 
De Hamburgo à Checoslováquia, as ‘27.000’ seleccionadas para o trabalho foram dispersas por 17 campos diferentes.”

É provável, por isso, que Mariette tenha sido transferida para um dos subcampos de Neuengamme e que, com a ordem de evacuação destes comandos, a 24 de Março de 1945, tenha sido enviada para Bergen-Belsen, onde, segundo o marido, chegou a contrair tifo, uma das doenças que ali grassavam.

Por esta altura, Bergen-Belsen estava transformado num verdadeiro campo de morte, com os prisioneiros abandonados à sua sorte. 
Inicialmente construído para ser um campo de prisioneiros de guerra, Bergen-Belsen recebe, nos últimos meses do conflito, milhares de prisioneiros de outros campos. 
Os alemães desistem de tentar lidar com a ausência de comida e as epidemias e deixam de entrar no campo, que se transforma num terreno em que os vivos convivem com os mortos tombados no solo e onde, como noutros campos, há relatos de canibalismo entre os prisioneiros esfomeados. 
O estado de grande parte dos detidos era de tal modo deplorável que a chegada dos britânicos, a 15 de Abril, e as medidas de emergência implementadas nas semanas seguintes não foram suficientes para impedir que mais de 13 mil pessoas morressem após a libertação. 
Mariette, contudo, sobreviveu. 
O seu nome consta numa lista de “repatriadas francesas” feita pelos próprios prisioneiros, com a indicação de que foi retirada do campo a 17 de Maio, “por camião”. 
A portuguesa chegaria ao Hotel Lutetia, em Paris — que desde a libertação da cidade funcionou como um centro de repatriamento para prisioneiros de guerra e dos campos de concentração e deslocados —, a 24 de Maio.

Para Mariette, a guerra não tinha, contudo, ficado para trás. 
A família não a recebeu de braços abertos e acabou acolhida por desconhecidos. 
“Ela contou-me uma coisa que a marcou, quando voltou a ver os pais. 
O seu pai fez uma reflexão pouco simpática. 
Ele disse-lhe: ‘Deixaste-te apanhar’, como se fosse um jogo de polícia e ladrão”, conta François Vallon. 
Maria descobriu, então, que o seu irmão Francisco também fora deportado e que, ao contrário dela, não regressara.

A portuguesa nunca saberia que o irmão estivera ao mesmo tempo que ela em Bergen-Belsen e que morrera lá. 
Em 1947, o Ministério dos Antigos Combatentes e Vítimas de Guerra emitiu um “Acto de Desaparecimento” referente a Francisco, confirmando que ele fora detido e internado a 27 de Fevereiro de 1944 em Lyon e que “não existiu qualquer outra informação [sobre ele] depois de 27 de Junho de 1944”. 
Sem saber a razão da detenção do irmão, apesar de suspeitar de que ele se envolvera, de alguma forma, com a Resistência após a sua própria detenção, talvez na tentativa de saber o que lhe acontecera, Mariette vai continuar a procurar respostas sobre Francisco ao longo de toda a vida, incentivada, em grande parte, pelo marido, que lutou para que também ela tivesse acesso a todos os direitos concedidos aos Deportados Resistentes. 
Os pais e restantes irmãos de Francisco teriam, aparentemente, aceitado que ele não iria voltar. 
“Eles falavam muito pouco e o François [Francisco] foi rapidamente esquecido pelos outros membros da família. 
Ela dizia-me: ‘Eu também, se não tivesse regressado, teria sido esquecida rapidamente’”, recorda François Vallon.

Só em 2008 é que o ITS fez chegar a Port-Sainte-Marie os dados que permitiam traçar o percurso de Francisco Barbosa da Costa, nascido a 12 de Fevereiro de 1924, cerca de dois anos depois de Mariette. 
François recebeu a comunicação e guardou-a para si. 
“[Mariette] Já estava muito debilitada. 
A carta é de Janeiro de 2008 e a minha mulher morreu em Junho. 
Não quis que ela soubesse”, explica, agora, o viúvo.

As informações do ITS mostram como Francisco foi constantemente transferido, desde a sua captura e a deportação para a Alemanha, num comboio que saiu de Lyon a 29 de Junho de 1944, em direcção a Dachau, até à sua morte. 
Em Dachau, Francisco recebeu o número de prisioneiro 75950 e permaneceu no campo principal até 21 de Novembro, altura em que foi transferido para o comando Weiss-See. Pouco depois, a 3 de Dezembro, regressa ao campo principal, apenas para ser transferido de novo, a 12 ou 14 de Dezembro para o subcampo Ohrdruf, do universo de Buchenwald. Aqui recebe um novo número de prisioneiro — 112418 —, que continuará a usar até as tropas norte-americanas se aproximarem e o campo ser evacuado. 
É neste contexto que Francisco é transferido, a 20 de Março de 1945, para Bergen-Belsen. Tinha 21 anos quando morreu, de causa desconhecida.

Mariette Barbosa não soube o que acontecera ao irmão e também nunca terá sabido que o comboio que a levara para Ravensbrück tinha a bordo uma outra portuguesa, Maria d’Azevedo. 
François Vallon garante que a mulher nunca lhe falou de ter encontrado outros portugueses nos campos de concentração e ele não o estranha. 
“Ela tinha uma grande desconfiança, sobretudo em Ravensbrück, porque havia muitas suspeitas. 
Havia sempre o receio de que algumas mulheres pudessem falar, dar informações aos alemães”, diz.

Inicialmente construído para ser um campo de prisioneiros de guerra, Bergen-Belsen recebe, nos últimos meses do conflito, milhares de prisioneiros de outros campos

Mariette tinha 21 anos quando foi deportada, Maria d’Azevedo, nascida no distrito do Porto a 21 de Fevereiro de 1901, já tinha 43 anos e seis filhos vivos. 
Se, no caso de Mariette, o envolvimento com a Resistência poderá ter sido uma influência do namorado, no caso de Maria d’Azevedo era uma luta enraizada na família. 
O seu marido, Américo d’Azevedo e o seu filho mais velho, Maurice d’Azevedo, também foram detidos pelos nazis, pelo seu envolvimento com os FTPF.

A família Azevedo é referida logo em 1966, no livro On les nommait des étrangers… 
(Les immigrés dans la Résistance), em que se conta que Américo foi detido, pela primeira vez, a 1 de Maio de 1941. 
“O prisioneiro foi entregue aos alemães. 
Quatro meses de prisão pelos franceses, dois anos pelos alemães, o calvário da família Azevedo começa”, lê-se na obra de Gaston Larouche e de Boris Matline, coronel dos FTPF.

De acordo com este livro, Américo foi “perdoado” pelos alemães em 1942, depois de ter ajudado a extinguir um incêndio na prisão, mas o português regressa à luta clandestina, com os FTPF e, a 29 de Setembro de 1943, é de novo preso. 
“Corajoso durante a luta, foi heróico sob tortura. 
Nenhum nome saiu da sua boca. 
Espancado diariamente, as suas costas não eram mais do que pisaduras e queimaduras. 
O bombardeamento da prisão acaba com o seu suplício”, lê-se no livro. Ironicamente, Américo terá morrido a 18 de Fevereiro de 1944, na cadeia de Amiens, durante um bombardeamento das forças Aliadas, denominado Operação Jericó, que pretendia libertar elementos da Resistência e prisioneiros políticos.

Maria só saberá do destino do marido depois de ela própria regressar da Alemanha, para onde fora deportada, bem como o filho mais velho. 
O investigador francês Pierre-Emmanuel Dufayel explica à Revista 2 que Maria d’Azevedo foi presa a 17 de Novembro de 1943, “porque era uma resistente de um grupo dos FTPF, ela fazia o transporte de armas”. 
A portuguesa, nascida Maria da Silva, filha de Marcelino e Joaquina, foi internada em Amiens até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro de 1944. 
Maurice, de 19 anos, foi preso no mesmo dia que a mãe e os filhos mais novos dos Azevedo ficam sozinhos em Albert, onde a família residia, tendo sido acolhidos, segundo On les nommait des étrangers…, “pela esposa de um deportado”.

Maria d’Azevedo fica em Ravensbrück até 20 de Julho de 1944, altura em que é transferida para Buchenwald e, posteriormente, para o subcampo de Leipzig, que fornecia a fábrica de armas HASAG, onde recebeu o número de prisioneira 3845. 
A 13 de Abril de 1945, o campo é evacuado e Maria acaba por ser libertada, pelas forças Aliadas, durante esse processo, no início de Maio. 
A 21 de Maio de 1945, quatro dias antes de Mariette Barbosa, ela chega ao Hotel Lutetia, em Paris.

O registo médico feito a Maria d’Azevedo quando chegou a Ravensbrück é um dos documentos preservados pelo ITS e revela o detalhe prestado à descrição dos prisioneiros. A ficha médica diz, por exemplo, que a mulher de 66,5 quilos e 1,56 metros de altura não necessitava de esterilização, não sofria de doenças venéreas ou de tuberculose. 
Diz ainda que Maria tivera oito filhos e que dois morreram quando eram ainda bebés. 
Maria é descrita como estando, em geral, “de boa saúde”.

Os dados sobre Maurice d’Azevedo são menos abundantes. 
Desde logo, subsistem dúvidas sobre se nasceu no Porto ou em França, no dia 8 de Julho de 1924, já que as duas versões aparecem em documentos diferentes. 
Maurice deixara Compiègne dias antes da mãe, num comboio que abandonou a cidade francesa a 22 de Janeiro de 1944, e foi transportado para Buchenwald.

Aí, recebeu o número de prisioneiro 43118. 
Em Março desse ano, foi transferido para o comando Laura e, no final de Agosto, volta a ser deslocado, desta vez para o subcampo Dora-Mittelbau, onde os prisioneiros trabalhavam na abertura de túneis e nas fábricas subterrâneas, na produção de bombas. Não há informações sobre o que aconteceu, posteriormente, a Maurice.

Um relógio e uma aliança

Nos arquivos do ITS, não existem apenas papéis. 
O instituto é também o depositário de um conjunto de artefactos de antigos prisioneiros, recuperados nos campos de concentração. 
Em alguns casos foi possível identificar o proprietário do item resgatado e o ITS permanece na expectativa de que, um dia, alguém apareça para os reclamar. 
Entre a lista dos “artefactos” na posse do ITS consta apenas um com dono português. Guardado num envelope, denunciando os anos, o relógio de Paulo da Silva ainda espera para ser devolvido à família do português transportado para o campo de Neuengamme num comboio que deixou Compiègne a 21 de Maio de 1944.

Depois dos quatro grandes transportes de Janeiro, mais 12 comboios vão deixar a estação de Compiègne em direcção à Alemanha, à Áustria e à Polónia, mas o último, que deixou a cidade a 25 de Agosto de 1944, já será obrigado a voltar para trás, travado pelo avanço dos Aliados, depois do desembarque da Normandia, a 6 de Junho. 
Nos destinos destes transportes surge um novo local: Neuengamme. 
Às portas da cidade de Hamburgo, o campo criado em 1938 ganhou um novo fôlego em 1944, com o aumento da sua rede de subcampos, vocacionada para a construção e a produção de armamento. 
É para lá que serão enviados vários portugueses, alguns dos quais não vão sobreviver.

O relógio de Paulo da Silva foi recuperado em Neuengamme e está hoje guardado nas instalações do ITS, em Bad Arolsen

O primeiro comboio a sair de Compiègne para Neuengamme foi o que levou Paulo da Silva. Nascido a 10 de Janeiro de 1908, numa localidade identificada como Vinha, Paulo recebe o número de prisioneiro 31228. 
O português vai ser transferido para o comando de Fallensleben, que acolhia a fábrica da Volkswagen e o seu nome ainda aparece numa lista de contagem de prisioneiros deste subcampo de 27 de Março de 1945. 
Paulo terá sido depois enviado para Wöbbelin, local escolhido para a construção de um campo de prisioneiros de guerra que, a partir de Abril de 1945, se tornou o ponto de encontro de vários transportes de evacuação. 
Wöbbelin foi libertado a 2 de Maio de 1945 e Paulo terá tido o mesmo destino.

Obrigado, como todos os prisioneiros, a entregar os seus bens à chegada aos campos de concentração, Paulo deixou o seu relógio em Neuengamme e foi lá que aquele seria recuperado e entregue ao ITS. 
O pequeno relógio de pulso, com a correia em pele gasta e o tempo congelado há 70 anos, nas seis menos dez, permanece, oficialmente, como o único artefacto de um português recuperado em Neuengamme, mas isso não é verdade.

Na lista dos bens recolhidos no campo, há ainda um outro relógio e uma aliança de casamento propriedade de Manuel João.

Manuel João ia a bordo do mesmo comboio que levou Paulo da Silva para Neuengamme, tendo recebido o número de prisioneiro 31366. 
Seguiam ainda Richard (Ricardo) Lopes, nascido em Lisboa mas identificado como francês, e dois outros portugueses, sobre os quais nada mais se sabe e cujos nomes aparecem provavelmente truncados: Dominique Dagougna e Manuel Barrera-Gornez. 
Nascido em Loulé, a 31 de Dezembro de 1891, Manuel João, identificado como francês, foi detido por razões que se desconhecem e acabaria por ser transferido para Bergen-Belsen, onde não iria sobreviver às condições desumanas do campo. 
A 25 de Abril de 1945, dez dias depois de os britânicos terem cruzado os portões de Bergen-Belsen, morreria, com 53 anos.

Casimiro, resgatado ao esquecimento

François Martins não tinha qualquer dúvida de que o tio e padrinho, Casimiro Martins, morrera depois de ter sido deportado para a Alemanha. 
Mas, quando chegou à reforma e se viu com tempo nas mãos, o francês, hoje com 72 anos, dedicou-se a descobrir o que acontecera ao homem de quem só guardava uma memória muito vaga, já que Casimiro foi detido quando François tinha apenas três anos. “No dia em que fui informado, oficialmente, da sua morte… 
Chorei, porque… 
É assim. 
Soube que era o dia 18 de Dezembro de 1944 e que ele morreu. 
Uma pessoa com quem eu trabalhara, que me ajudou muito, apresentou-me as condolências. 
Foi um momento de tristeza e de encerramento. 
Foi muito forte. 
Uma sensação muito particular. 
Compreendo agora as pessoas que não fazem o luto, porque não têm as respostas para o desaparecimento do seu ente querido”, conta, na sua casa de portas e janelas azuis e uma vista larga sobre os Pirenéus, na pequena localidade de Saint-Savin.

Casimiro nascera em S. Clemente, Loulé, a 12 de Março de 1906, filho de Manuel e Maria Teresa Martins Bota. 
Dos nove filhos do casal, Emmanuel terá sido um dos primeiros a emigrar, partindo para França ainda na década de 20. 
François, filho de Emmanuel, acredita que o pai terá atravessado Espanha a pé, chegando a Arcizans-Avant, uma aldeia vizinha de Saint-Savin, “em 1924 ou 1925”, para trabalhar na construção da barragem local, que deu origem ao lago, artificial, de Arcizans.

Em 1932, Emmanuel casou com uma francesa e os filhos chegaram rapidamente. 
Quando Casimiro chega a Arcizans-Avant, para se juntar ao irmão mais velho, já este constituira família e se naturalizara francês. 
“O meu tio também veio trabalhar no estaleiro da montanha. 
Era um grande estaleiro, porque se faziam muitas centrais eléctricas, muitas barragens. Havia uma actividade muito grande”, recorda François.

“Simpático”, solteiro e “sempre disponível” para atender os pedidos dos seus vizinhos, Casimiro conquistou a simpatia dos moradores. 
Instalou-se num quarto de uma casa conhecida no dialecto local como Caillau (Calhau) e a vida parecia correr-lhe bem. 
Mas no sábado, dia 10 de Junho de 1944 tudo mudou.

Sem suspeitar de que a sua vida estava prestes a sofrer uma reviravolta da qual não iria recuperar, Casimiro vai trabalhar e acaba por ser detido pela polícia alemã na cantina da empresa, em Sassis. 
Com ele são também detidos dois irmãos espanhóis, Antoine e José Montaner. 
Um conhecido da família vê Casimiro ser transportado num camião e avisa Emmanuel. 
O pai de François procura saber o que se passou, mas das autoridades recebe apenas a indicação de que Casimiro já tinha sido levado para a prisão de Saint Michel, em Toulouse. O algarvio apela então ao cônsul português em Pau que, a 28 de Junho, escreve ao prefeito dos Altos Pirenéus, em Tarbes, pedindo informações sobre Casimiro. 
“Se o motivo da sua detenção for insuficiente, peço-lhe, senhor prefeito, que o liberte”, escreve o cônsul. 
A resposta, de 30 de Junho, é curta: “Em resposta à sua carta, tenho a honra de o informar que efectuei diligências junto do comandante da polícia de segurança alemã sobre o seu cidadão, Casimiro Martins, detido pelas autoridades alemãs no dia 10. 
Ele indicou-me que o Sr. Casimiro Martins foi acusado de ter fornecido provisões a terroristas.” 
“Ponto” – diz agora François Martins –, “foi tudo o que se fez. 
Não houve qualquer outra acção.”

Casimiro Martins morreu no campo de concentração de Neuengamme, perto de Hamburgo

O sobrinho de Casimiro admite que o tio podia, de alguma forma, ter-se envolvido a outros níveis com alguma rede de Resistência — falava-se em armas, na produção de bombas —, mas se houve alguma denúncia nesse sentido, os alemães não se deram ao trabalho de a usar como motivo para a sua detenção. 
Casimiro foi enviado para a prisão de Saint Michel, onde permaneceu até 2 de Julho, quando foi colocado a bordo de um comboio, em direcção a Bordéus. 
Daqui, o comboio tenta seguir viagem para norte, mas é apanhado por ataques dos Aliados e acaba por regressar a Bordéus, de onde só voltará a sair a 9 de Agosto, para uma viagem alucinante, recheada de paragens, ataques da Resistência, fuga de prisioneiros e a esperança constante de que a viagem seja definitivamente interrompida. 
Não foi e o “Comboio Fantasma”, como ficou conhecido, acabou mesmo por chegar ao campo de concentração de Dachau, a 28 de Agosto de 1944.

A bordo, além de Casimiro, leva nove outros portugueses e, destes, pelo menos três irão morrer antes do final da guerra: Alberto Mateos, 46 anos, de Serpa, morre em Dachau a 29 de Abril de 1945; Delfim Ribeiro da Cunha, 56 anos, casado, com dois filhos, morre a 4 de Abril de 1945, no campo de Mauthausen, para onde fora transferido; Tomás Vieira, 44 anos, de Albufeira, também é transferido para o universo de Mathausen e é aí que é registada a sua morte, às 17h45, do dia 16 de Novembro de 1944. 
Causa: broncopneumonia e problemas cardíacos.

Sobre Abel Carvalho, nascido a 4 de Fevereiro de 1890, em Vila Verde, e José Oliveira Varjia (?), nascido a 7 de Outubro de 1895, que também seguiam no mesmo transporte, não foi possível obter mais dados, mas João Fernandes, nascido a 5 de Junho de 1908 ou 1911, num local identificado como Gondariz, terá sido detido durante uma “rafle” alemã à aldeia Mouleydier, a 21 de Junho de 1944, que resultou no fuzilamento de 22 membros da Resistência e na detenção de 87 homens, conduzidos para Bergerac.

João foi transportado desta cidade para a prisão no Fort de Hâ, em Bordéus, onde se juntou ao grupo de prisioneiros do “Comboio Fantasma”. 
Passou por Dachau, Mauthausen e pelo campo de Natzweiler-Struthof, antes de ser libertado e regressar a França, em Maio de 1945. 
Os outros sobreviventes deste transporte são José Agostinho das Neves, nascido a 25 de Maio de 1905, em Lisboa — um anarquista que chegou a França depois de passar pela Guerra Civil de Espanha e que havia de se fixar em Paris, onde foi jornalista —, e Américo da Costa, nascido a 13 de Junho de 1896, no Porto. 
Sobre o último português deste grupo, internado no campo de Vernet antes da deportação, não há certezas quanto ao destino. António Ferreira, 49 anos, foi transferido para um subcampo de Flossenbürg, a 23 de Janeiro de 1945, e para o campo de Bergen-Belsen, a 7 de Março. 
O rasto perde-se aí.

Por essa altura, já Casimiro perdera a vida no campo de Neuengamme, para onde fora transferido a 22 de Outubro de 1944, uns escassos 52 dias depois de ter chegado a Dachau. 
Em Neuengamme, o português com o número de prisioneiro 61393 não chega a sobreviver dois meses, sucumbindo, às 7h50 do dia 18 de Dezembro de 1944 a uma suposta “infecção do intestino”. 
O seu corpo terá sido cremado.

Em Portugal, a família sabia que ele tinha sido preso e enviado para a Alemanha, mas mais nada. 
“Foi um filho que partiu, que se perdeu. 
Eram nove, ficaram oito, o meu pai [também] já tinha partido… 
Era assim com as grandes famílias em Portugal, era preciso partir”, diz François Martins. Em França, Emmanuel deixou de falar do irmão. 
“Não falávamos do assunto porque não havia nada a dizer. 
O meu pai devia sofrer, de certeza, por não ter informação, mas não dizia nada”, acrescenta o homem.

François recorda-se de ouvir o pai falar, uma única vez, de Casimiro. 
Foi em “1949 ou 1950”, quando a rádio anunciou que um grupo de prisioneiros tinha sido libertado da Sibéria. 
François recorda-se de, nessa altura, o pai ter manifestado a esperança: “Talvez Casimiro esteja entre eles.”

Não estava. 
Casimiro Martins foi um dos portugueses mortos nos campos de concentração, resgatado ao esquecimento pela teimosia do sobrinho francês. 
Em 2010, François Martins conseguiu que o tio recebesse o título de Deportado Resistente e, posteriormente, que fosse considerado como Morto pela França. 
“Uma grande honra”, diz. 
Nessa altura, o autarca de Arcizans-Avant disse a François que queria inscrever o nome de Casimiro no monumento da aldeia aos soldados locais enviados para a I Guerra Mundial. Na cerimónia simples, em 2012, François fez um pequeno discurso, contando aos habitantes quem fora Casimiro e o que lhe acontecera. 
Hoje, o nome do português, em letras douradas, destaca-se da pedra gasta que comemora os heróis de 1914-18.

O português que deixou o Algarve à procura de uma vida melhor em França e que acabou morto, com 38 anos, num dos campos de horrores dos nazis, juntou assim o seu nome à História. 
Pelo menos, à história daquela pequena aldeia francesa aos pés dos Pirenéus.

Não fora a persistência de François e Casimiro não passaria de um nome numa lista de transporte de deportados, de quem a família portuguesa já praticamente não guardava memória. 
Casimiro não sobreviveu à guerra, não teve tempo de tentar recuperar da experiência traumática do internamento num campo de concentração. 
Maria Barbosa regressou a França e iniciou uma nova vida, apesar de “nunca ter chegado a separar os alemães de hoje dos nazis do tempo da guerra”, como refere François Vallon. O casal adoptou um filho e Maria pôde ver nascer os netos. 
“Era uma boa mulher. 
Não se notava o sofrimento que tinha tido. 
Gostava de rir, de divertir-se. 
Tinha ganhado um novo gosto à vida, embora o que ela passou não pudesse ser apagado. Estava num canto da sua memória, era uma parte da vida dela que não gostava de recordar”, conta o francês.

Maria recusou-se sempre a regressar à Alemanha. 
Nunca quis visitar os memoriais de Ravensbrück ou Bergen-Belsen, mas visitou Portugal uma única vez, com o marido e os sobrinhos. 
Os planos para voltarem mais tarde, numa visita mais íntima, apenas com o filho, não se chegaram a concretizar. 
Nessa visita única a Ponte de Lima, François Vallon recorda-se do momento em que cruzaram a fronteira portuguesa e de a mulher dizer: “Estou de volta ao meu país.” 
Ela, que sempre recusou juntar-se às associações de deportados e de antigos resistentes, confidenciou ao marido, nos últimos meses de vida, que gostava que as autoridades portuguesas soubessem da sua história, depois de ela morrer. 
Maria, que sempre fez por esquecer o passado, queria que cá se soubesse que os livros de História, os filmes e os documentários que retratam o sofrimento e a dor dos campos de concentração não falam apenas dos outros. 
Afinal, eles também falam de nós.     

Às portas de Hamburgo, Neuengamme ganhou fôlego em 1944, com o aumento da sua rede de subcampos, vocacionada para a construção e a produção de armamento

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