Rui Verde
3 de Janeiro de 2018
Bornito de Sousa, vice-presidente da República, leu uma mensagem ao presidente da República, João Lourenço, na cerimónia de apresentação de cumprimentos por ocasião do fim de ano, perante as mais altas figuras do Estado.
Essa mensagem continha 639 palavras.
Destas, 315 palavras constituíram um ataque frontal ao presidente João Lourenço, enquanto as restantes não passaram das platitudes costumeiras nesta época.
Bornito de Sousa não é um ignorante da Constituição e da lei, embora existam muitas dúvidas sobre a consistência da sua formação jurídica de base.
Assim sendo, sabe bem o que fez: desafiou João Lourenço e assumiu-se como porta-voz da contra-reforma, cabo-chefe do conservantismo oligárquico que destruiu o país nos tempos mais recentes.
Nesta história, não há “eduardistas” e “lourencistas”.
Há simplesmente bons e maus.
Bons são aqueles que querem fazer andar o país para a frente, combater a corrupção, a impunidade e garantir o progresso e a prosperidade.
Maus são os que querem que o país seja uma “quinta” de uns poucos que saqueiam as suas riquezas, apostam na estagnação e na ignorância, representam a cleptocracia e o banditismo institucionalizado.
Bornito tornou-se porta-voz dos maus.
Triste opção.
Descodifiquemos o seu discurso.
O vice-presidente, depois dos cumprimentos e elogios da praxe, afirmou: “Para uns, acelerado demais; para outros, distante demais das directivas; outros há que o colocam na fronteira da quebra da unidade, motivo de mal-entendidos e naturais desconfortos.
O que importa assinalar é que a acção do presidente da República assenta nas premissas eleitorais constantes da Estratégia do Líder e no Programa de Governo do MPLA para o período 2017-2022.” E acrescentou: “É daí que dimana a directiva no sentido de se ‘CORRIGIR O QUE ESTÁ MAL E MELHORAR O QUE ESTÁ BEM’.”
Esta passagem do discurso contém dois aspectos gravosos que convém sublinhar.
O vice-presidente refere que o presidente tem de cumprir as directivas do MPLA, utilizando a palavra “directiva” duas vezes, e que não pode quebrar a “unidade”.
“Directivas do MPLA” e “unidade” (do MPLA, presume-se) são as preocupações do vice. Ora, existem variados equívocos nas palavras de Bornito de Sousa.
O MPLA não dá directivas ao presidente da República.
Só num regime de comissariado, como o da antiga União Soviética, é que o sistema político admite que o partido único determine as acções dos dirigentes, adequadamente chamados comissários, uma vez que se limitam a executar a vontade do comitente.
Numa democracia, não há partido comitente e presidente comissário.
A legitimidade do exercício presidencial provém da soberania que lhe é dada pelo voto popular e não de qualquer ordem ou directiva do partido.
Mesmo o cumprimento da “Estratégia do Líder e do Programa de Governo do MPLA” não resulta em qualquer obrigação presidencial.
Por “Estratégia do Líder” entende-se a estratégia de José Eduardo dos Santos.
Está Bornito de Sousa a dizer que o presidente da República tem de seguir a estratégia de José Eduardo dos Santos?
Sim, mas está a dizer uma burrice, uma vez que, do ponto de vista jurídico, isso é inaceitável.
Em última análise, tal afirmação consubstancia um atentado ao Estado de Direito, uma vez que o vice-presidente quer que o presidente se subordine não à Constituição e à Lei, mas à vontade de um homem.
Explique-se a Bornito de Sousa que o absolutismo já acabou em Angola.
Mas poder-se-ia dizer que Bornito de Sousa é um realista, a Constituição dispõe de uma maneira, mas a política impõe outra actuação.
Ora, na verdade, o poder político e a legitimidade política radicam em João Lourenço – que goza de forte apoio popular e institucional –, e não em qualquer líder decrépito desprezado nas ruas.
O povo ordena
João Lourenço e Bornito de Sousa, durante a campanha eleitoral.
Portanto, ninguém tem de dar directivas a João Lourenço.
Só o povo, a Constituição e a Lei.
E sobre a unidade referida por Bornito de Sousa?
Unidade não é pensamento único e uniforme, mas o resultado de uma convergência de acções.
Se Bornito de Sousa quer unidade, deve seguir o novo presidente, não travá-lo em nome de uma falsa unidade, que é apenas o medo dos corruptos, oportunistas e dos que têm causado tanto mal ao povo angolano.
É esta – e nenhuma outra – a unidade ferida.
De seguida, o vice-presidente Bornito de Sousa apela mais uma vez ao programa do MPLA e ao rigor e à disciplina necessários para a sua implementação, citando José Eduardo dos Santos.
Infere-se que João Lourenço não está a ser rigoroso na implementação desse programa.
O que se estranha é que, numa cerimónia pública de Estado, a preocupação do vice-presidente da República seja alertar o presidente da República para a necessidade de aplicar com disciplina o programa do partido.
É demasiado óbvio o desconforto dos maus, que violam todas as convenções públicas sobre Estado e Partido ao misturarem tudo.
O presidente da República é o intérprete do interesse geral, e é a este que deve obediência.
O programa do partido que o elegeu é uma plataforma de orientação, não é nenhuma Bíblia ou dogma que deva ser invocado em cerimónias de Estado numa República denominada Estado Democrático de Direito.
Não existe uma relação obrigacional de ferro entre partido e presidente da República, mas sim entre Povo, Constituição e Presidente da República.
Obsessivo, o vice-presidente Bornito de Sousa concluiu o seu discurso com mais uma referência partidária: “Termino com uma breve nota sobre a coexistência entre a liderança do Partido e a titularidade do Executivo.
A mesma é permitida tanto pela Constituição da República como pelos Estatutos do Partido no poder, sendo, portanto, apenas uma questão de gestão e oportunidade políticas.
O processo em curso em Angola bem pode ser comparado a uma corrida de estafetas. Ora, numa corrida de estafetas a regra é simples: quem recebe o testemunho não pode ficar parado.”
Não vale a pena voltar à questão da coexistência da liderança do Partido e da Presidência da República em pessoas diferentes, mas vale a pena reforçar a ideia de que essa bicefalia não confere qualquer preeminência ao líder do partido, pelo contrário.
Já escrevemos no Maka Angola sobre isto.
Contudo, vale a pena refutar a ideia da corrida de estafetas.
Mais uma vez, Bornito quer atar Lourenço ao passado.
Ao receber a estafeta, este só tem de correr no mesmo sentido para passar o testemunho ao estafeta seguinte (aqui sub-repticiamente ameaçando que João Lourenço pode ser presidente de um só mandato…).
Estamos bem distantes de um cenário de corrida de estafetas, com uma pista preestabelecida que se tivesse de percorrer – a pista dos estafetas está excessivamente enlameada.
No vértice político em que Angola se encontra, é o corta-mato que nos pode servir. Lourenço recebeu o país na lama e tem de escolher o melhor caminho para chegar à meta, cortando por onde for necessário.
Temos então um discurso de fim de ano do vice-presidente da República, traiçoeiro, de cariz partidário, a tentar atar o presidente da República à estratégia do líder José Eduardo dos Santos, a exigir-lhe disciplina e respeito estrito pelo programa do MPLA, escrito pelo líder José Eduardo dos Santos.
Foi isto a que assistimos, estupefactos.
Refira-se, para terminar, que a figura do vice-presidente da República não tem poder próprio.
É um auxiliar e substituto do presidente da República (art.º 131.º da Constituição da República de Angola), pelo que bem melhor teria ficado a Bornito de Sousa respeitar o seu recorte constitucional e não embarcar em aventuras sediciosas de mérito duvidoso.
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