AUSCHWITZ
Clara Barata
27 de Janeiro de 2015, 7:25
Há 70 anos foi libertado o campo de concentração mais associado ao extermínio dos judeus pelo regime nazi. Mas demorou anos até haver uma compreensão generalizada de que os judeus tinham sido vítimas de um genocídio.
O Exército Vermelho não estava preparado para libertar Auschwitz.
Nos seus mapas, de antes da guerra, nem sequer constava este extenso campo de morte e de trabalhos forçados do regime nazi.
“Demos por acaso com o campo de extermínio”, recordou o tenente Vasili Gromadski, da 100.ª Divisão de Atiradores, que participava na ofensiva do Vístula-Oder, que havia de chegar a Berlim no fim de Abril de 1945.
Quando entraram em Auschwitz, a 27 de Janeiro de 1945, encontraram um local onde foram mortas 1,5 milhões de pessoas e que se tornou num testemunho da crueldade nazi, mas que só ao longo dos anos se transformou num símbolo do Holocausto dos judeus.
“Vi muitas coisas horríveis e de pesadelo nesta guerra, mas o que testemunhei em Auschwitz ultrapassa a imaginação”, escreveu o militar soviético Georgi Elisavestski numa carta à mulher, quando já era comandante do campo, depois do Exército Vermelho ter assumido o controlo.
“Imagina um complexo prisional, rodeado por campos mais pequenos, com capacidade para 60 mil a 80 mil pessoas, vindas de toda a parte do mundo.
Ver o estado das pessoas que aqui ficaram – e compreender o que se passou aqui – é suficiente para perder o juízo”, confessava Elisavestski, citado no livro Total War – From Stalingrad to Berlin, de Michael Jones (John Murray, 2011).
“Encontrámos as ruínas de quatro fornos crematórios, com capacidade para queimar milhares de pessoas diariamente”, relatava o oficial.
“Traziam os prisioneiros para o que chamavam ‘descontaminação.’
Forçavam-nos a despir-se e a ir para uma sala na cave, onde havia chuveiros.
Quando estava cheia, fechavam as portas e lançavam gás.
Após 10-15 minutos, traziam os cadáveres para os crematórios."
O que o Exército Vermelho encontrou ao entrar em Auschwitz, após enfrentar feroz resistência nazi – o campo era secreto, e era segredo de Estado o que o regime estava a fazer aos judeus –, chocou soldados que pensavam já não poder ser surpreendidos.
Além de pessoas que eram apenas esqueletos, crianças usadas para experiências científicas, descobriram toneladas de cabelo humano – para usar na indústria têxtil – e de roupa, sapatos e objectos pessoais em ouro, que incluíam dentes, que seriam enviados para a Alemanha.
Eram coisas que punham os soldados a chorar.
“Tinha visto pessoas enforcadas, pessoas queimadas.
Mesmo assim não estava preparado para Auschwitz…”, recordou Anatoli Shapiro, comandante do 1085.º Regimento do Exército Vermelho, o primeiro a entrar no campo.
“Vimos logo as fileiras de casernas.
Abri a porta de uma.
O fedor era insuportável.
Era uma caserna feminina, e havia poças de sangue congeladas no chão, e cadáveres no chão.
E lá pelo meio havia ainda pessoas vivas, seminuas, vestidas só com roupa interior fina – em Janeiro!
Os meus soldados recuaram, horrorizados.
Um deles disse: ‘Não consigo suportar isto.
Vamos sair daqui.
Isto é inacreditável!’”
Mas os soldados insistiram, continuaram a abrir as casernas e a descobrir “pessoas emaciadas, brutalmente torturadas”, na descrição do tenente Ivan Martinushkin.
“Já não pareciam pessoas”, disse o sargento Genri Koptev.
“Tinham uma pele tão fina que se podia ver as veias e os olhos estavam salientes, porque os tecidos à volta tinham desaparecido.
Quando esticavam as mãos, podia-se ver cada osso, cada tendão e articulação.
Sentimo-nos tomados pelo terror.
Ninguém nos tinha preparado para isto.”
Ninguém acreditava
Na verdade, ninguém estava preparado para Auschwitz.
Estaline, o líder soviético, teria informação sobre o que ali se passava desde o ano anterior, quando o Exército Vermelho tomou o campo de extermínio de Madjanek, um dos locais onde começou a ser posta em prática, em 1942, a “solução final” para a “questão judaica. Este eufemismo designa o extermínio, puro e simples, de todos os judeus.
Mas o líder comunista não disse nada sobre Auschwitz ao marechal Ivan Konev, que liderava a I Frente Ucraniana, o exército que tomou o campo.
A narrativa oficial da história soviética da II Guerra impunha o dogma de que a nação russa fora a mais sacrificada, a maior vítima e a maior vencedora, no seio da URSS, afirma o historiador norte-americano Timothy Snyder no livro Terra Sangrenta – A Europa entre Hitler e Estaline (Bertrand, 2011).
O resto dos Aliados e os líderes mundiais olhavam a guerra como um todo.
As informações sobre os campos de concentração eram escassas e classificadas ao nível de boatos.
As chancelarias e a imprensa estavam de pé atrás por causa dos abusos da propaganda na I Guerra Mundial.
A imprensa também não destacava o massacre dos judeus.
Laurel Leff, investigadora da Northeastern University (Boston), analisou a cobertura do New York Times sobre o Holocausto no livro Burried by the Times e, em tom acusatório, concluiu que o jornal arrumou as notícias nas últimas páginas, com pouco destaque e pouca análise. Só seis vezes em quase seis anos é que uma notícia sobre este assunto teve chamada de primeira página e apenas uma vez foi tema de editorial.
O resultado foi a falta de consciência nos países aliados da gravidade dos massacres de que eram alvo os judeus.
Mas o anti-semitismo não era exclusivo dos nazis.
“Muita gente, e não apenas na Alemanha, via os judeus como uma influência maligna e queria destruir o seu poder, ou pensava que formavam grupos poderosos que geriam os grandes negócios”, explicou o historiador britânico e biógrafo de Hitler Ian Kershaw, numa entrevista disponível no site site WW2History, criado por Laurence Rees, autor de documentários sobre a II Guerra para a BBC.
Em meados de 1942, chegou aos Aliados o relatório, então anónimo, de um empresário alemão, Gerhard Riegner, que falava de uma campanha de assassínio em massa nos territórios conquistados no Leste da Europa.
Mas com avisos quanto à sua veracidade: dizia também que os judeus estavam a ser transformados em sabão.
“Operação Reinhardt”
O relatório Riegner alertava na verdade para a operação
Reinhardt, lançada quando Hitler deu luz verde à “solução final”, face à entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial.
“Os judeus arcavam agora com a culpa pelo desastre indizível que se aproximava”, escreve Timothy Snyder em Terra Sangrenta.
O objectivo era acabar de vez com os judeus que viviam nos territórios ocupados pelos nazis, em especial na Polónia, onde vivia a maior comunidade.
“Todos acreditavam, caso aceitassem o ponto de vista de Hitler, que na última guerra mundial a Alemanha não tinha sido derrotada no campo de batalha mas, em vez disso, derrubada por ‘uma ‘facada nas costas’, uma conspiração de judeus e outros inimigos internos.
Agora os judeus também arcavam com as culpas pela aliança americano-britânico-soviética.
Uma tal ‘frente comum’ de capitalistas e comunistas, prosseguia o raciocínio de Hitler, só podia ter sido realizada graças às cabalas judaicas”, descreve o historiador.
A ordem era para que tudo se passasse no maior segredo.
Em vários campos de extermínio – Treblinka, Sobibor, Madjanek, Chelmo, Belzec – foram mortos a partir de meados de 1942 cerca de 1,5 milhões de judeus.
Eram verdadeiras fábricas de morte, onde em apenas duas horas as pessoas podiam ser liquidadas, utilizando monóxido de carbono.
Só em Treblinka terão morrido 780.863 pessoas.
Mas deixaram de funcionar antes de Auschwitz se transformar em local de extermínio, onde se usava um gás à base de cianeto, desenvolvido pela empresa IG Farben, que tinha fábricas junto ao campo, onde beneficiava do trabalho escravo.
No entanto, quando se iniciou a operação Reinhardt, já mais de 1,5 milhões de judeus tinham sido mortos por balas na Polónia e em territórios da União Soviética, como a Bielorrússia e os países bálticos, sublinha Timothy Snyder.
O mais conhecido é o da ravina de Babi Yar, nos arredores de Kiev, na Ucrânia: em 29 e 30 de Setembro de 1941, mais de 33 mil judeus ucranianos foram ali fuzilados.
“Tendo entregado os seus valores e documentos, as pessoas foram obrigadas a despir-se, e depois empurradas, sob ameaças e tiros para o ar, em grupos de cerca de dez, para a beira da ravina”, recorda uma sobrevivente, Dina Pronicheva, citada por Snyder.
“Eram obrigadas a deitar-se, de barriga para baixo, sobre os cadáveres que já jaziam sob elas, esperando pelos tiros que viria de cima.
Depois vinha o grupo seguinte.”
Cerca de 5,5 milhões de judeus morreram durante a Segunda Guerra.
Mas Auschwitz não viria em primeiro lugar, argumenta Snyder.
“Uma visão correcta do Holocausto colocaria no centro da história a operação Reinhardt, o assassínio dos judeus polacos em 1942”, afirma.
“A segunda parte mais importante do Holocausto é o assassínio em massa por balas na Polónia Oriental e na União Soviética.
No final de 1941, os alemães tinham morto assim um milhão de judeus.
Isso é o equivalente ao número total de judeus mortos em Auschwitz durante toda a guerra”, escreveu.
Genocídio
Auschwitz tornou-se um campo de extermínio nos últimos anos da guerra, para acabar sobretudo com os judeus da Europa Ocidental.
Para ali foram enviados os 438 mil judeus húngaros deportados em massa em 1944, 70 mil franceses, 60 mil holandeses, 46 mil checos e da Morávia, 27 mil eslovacos, 25 mil belgas, 23 mil alemães e austríacos, 10 mil jugoslavos, 7500 italianos, e ainda mais 300 mil polacos, além de outras nacionalidades em menor número, entre as quais portugueses. Não judeus também foram enviados para Auschwitz, como os ciganos.
E Auschwitz era também um campo de trabalhos forçados, por isso houve sobreviventes para contar o que lá passaram.
Muitos eram da Europa Ocidental, e influenciaram o desenrolar da visão histórica do que hoje chamamos Holocausto.
Na Rússia, já não foi assim.
“A propaganda soviética designava os mortos de Auschwitz colectivamente como ‘vítimas do fascismo”, e apresentava os campos de extermínio como o exemplo extremo de fábricas capitalistas, onde os trabalhadores eram mortos quando deixavam de ser úteis”, escreveu no jornal The Guardian o historiador britânico Anthony Beevor, para defender que o Presidente russo, Vladimir Putin, deveria estar presente em Auschwitz na comemoração dos 70 anos de libertação do campo (não estará, porque não foi convidado pela Polónia).
Mas os Aliados também levaram algum tempo a ultrapassar a atitude de não diferenciação dos judeus como vítimas primordiais dos nazis.
“Houve um período em que os exércitos aliados não estavam preparados para lidar com os sobreviventes judeus do Holocausto.
Nem sequer era claro para eles que os sobreviventes eram sobretudo judeus”, afirmou William Hitchcock, da Universidade da Virgínia, autor do livro The Bitter Road to Freedom: A New History of the Liberation of Europe (Simon and Shuster, 2008), numa entrevista disponível no site http://ww2history.com/.
Não eram vistos como vítimas de genocídio.
“O facto de terem uma identidade judaica não era um princípio organizador: eram encarados como prisioneiros políticos, polacos, gregos, franceses ou jugoslavos, mas não como sobreviventes judeus do Holocausto, nem esse termo era usado da forma que o usamos hoje.
”Apesar de muito se ter passado até então, só em 1961, quando o julgamento em Israel de Adolf Eichman, o especialista em judeus do regime nazi capturado pela Mossad na Argentina, foi transmitido pela televisão para todo o mundo, é que o Holocausto ganhou as dimensões modernas.
Os julgamentos militares de Nuremberga, logo a seguir à guerra, não tiveram esse efeito.
O desfile de uma centena de testemunhas de acusação contra um só homem, Eichman, pelo papel que desempenhou na organização da “solução final”, teve um enorme impacto na consciência pública.
“Homens e mulheres foram testemunhar honradamente.
Não eram ‘judeus do gueto’, não eram gente fracassada; eram pessoas que tinham estado no sítio errado na hora errada”, afirmou numa entrevista ao jornal israelita Ha’aretz em 2011 a historiadora Deborah Lipstadt, da Universidade de Emory (EUA).
“O julgamento de Eichman personalizou o Holocausto”, sublinhou Lipstadt.
“Ouviram-se histórias pessoais.
Isso mudou tudo.
clara.barata@publico.pt
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