CRÓNICA
Manuel Carvalho
18 de Março de 2018, 7:3
Estamos nas margens do rio Moscovo e quem olhar para a estátua de Pedro o Grande instalada no vértice de uma das suas ilhotas pode perceber mais facilmente a natureza imperial da ancestral “Mãe Rússia”.
A estátua, inaugurada em 1997 para celebrar os três séculos da marinha russa, é descomunal, erguendo-se 97 metros acima do nível das águas, com um pedestal de pequenos galeões a sustentarem o galeão principal no qual emerge a gigantesca figura do imperador.
Um século depois da revolução que depôs os Romanov, que dominaram a Rússia ao longo de mais de 300 anos, Pedro o Grande continua a merecer uma devoção especial.
Porque foi a sua ousadia e abertura às ideias modernizadoras da Europa que transformaram um gigante distante e adormecido numa potência europeia de primeira grandeza.
A Rússia provou então as delícias do poder e jamais deixou de subordinar a sua natureza, a sua essência, a essa experiência e condição.
O “urso”, animal que a caricatura ocidental associa a esse poder, derrotaria depois o grande exército de Napoleão e, já no século XX foi o principal responsável pela destruição da força nazi que ameaçava devorar a Europa – e é por isso que o regime de Putin e a Rússia contemporânea concede a Estaline um tratamento de excepção na aversão aos soviéticos.
Hoje, a Rússia é um um actor de segundo plano em termos económicos – o seu produto é metade do da França ou do da Califórnia e muito baseado nas matérias-primas.
A sua demografia, que à custa dos generosos apoios do Estado voltou a recuperar, está longe de se comparar com os pesos pesados do planeta – os Estados Unidos, a União Europeia ou a China.
Mas, ainda assim, a Rússia voltou a ser uma potência temida.
É importante notar que essa recuperação de um papel de primeiro plano na cena internacional nasce dos escombros do fim da União Soviética.
As experiências de liberalização económica conformes ao receituário ocidental foram uma tragédia para os russos.
A economia colapsou, a pobreza alastrou, o Estado foi tomado de assalto por oligarcas e pela corrupção e essa experiência foi vivida pelos russos como mais uma prova de que o Ocidente jamais perderá uma oportunidade para os vexar.
Vladimir Putin respondeu a esse sentimento de forma exemplar.
Um império que vai da vizinhança da velha Europa de herança austro-húngara aos Urais, à Sibéria e ao mar do Japão tinha de recuperar a sua maneira de ser, autocrática e sustentada na tese do “nós contra o mundo”.
A humilhação dos tempos de Ieltsin tinha de ser vencida pelo regresso ao glorioso passado imperial.
A um ocidental custa a perceber como é que os russos cultos, cosmopolitas, que conhecem os sistemas constitucionais e de governo da Alemanha ou do Reino Unido, que bebem champanhe e ouvem o rock produzido em Londres, se deixam seduzir pela mensagem de Putin.
A verdade é que, na Rússia actual, é frequente a opinião, mesmo entre intelectuais, de que a Rússia é uma potência eternamente acossada pelo Ocidente.
O discurso autocrático e militarista de Putin é por eles visto como a única forma de a Rússia manter a sua dignidade nacional e o estatuto internacional a que tem direito.
As forças armadas são objecto de uma devoção para nós doentia, mas para os russos são um instrumento de dissuasão de que não podem prescindir.
A Rússia vive uma espécie de complexo de perseguição.
O Ocidente, que se retirou de armas e bagagens deixando a Rússia lamber as feridas da sua fracassada liberalização, ajudou na germinação desta mentalidade.
Depois, querer levar a Nato até às fronteiras da Rússia, na Geórgia ou na Ucrânia, foi uma forma de legitimar o discurso de Putin sobre a perseguição externa.
O limite funciona como uma zona de protecção desde os tempos da Roma imperial e nada parece ter mudado desde então.
Deu no que deu: a Rússia jamais tolerará o Ocidente à porta.
A Geórgia foi devastada e a Crimeia conquistada.
A intervenção na Síria mostra o renascimento do poder da Rússia em dar cartas no exterior e os ataques informáticos – ou as operações de envenenamento de "espiões traidores” – são, para os russos, pura e legítima defesa.
Os russos da era de Putin condescendem com tudo – até com os caminhos perigosos de um regime iliberal, no limiar da ditadura -, porque é assim que se sentem defendidos e protegidos da permanente ameaça da Europa.
Os chineses ganham espaço na fronteira do Amur e tomaram conta das riquezas da Mongólia, mas não é aí que se joga o destino na Mãe Rússia.
É na relação de forças com alemães, franceses ou americanos.
Se nos tempos das velhas alianças europeias a Rússia ora estava com as monarquias conservadoras, ora com a França progressista para criar os grandes blocos que devastaram o continente em guerras sucessivas, hoje sabe que (pelo menos por agora) tem à sua frente uma Europa unida para lhe fazer frente.
Putin é para os russos o homem providencial para se impor nesta conjuntura.
A nós, ocidentais, custa a entender o preço que se paga por essa quimera imperial.
A eles, russos, esta é a melhor forma de se sentirem seguros e de viverem sem medo da rapacidade do Ocidente.
manuel.carvalho@publico.pt
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