Lisboa - Na sequência da abordagem anterior, acerca, dos benefícios e malefícios que podem advir da proibição de transferências de numerário para paraísos fiscais, foi-nos, recentemente, lançado o desafio de debitar infinitesimais considerações, num quadro exclusivamente académico-científico, e, despidos de quaisquer paixões clubistas ou ideológicas, a respeito da moratória dada, na pessoa do Presidente da República, para o repatriamento de capitais angolanos no estrangeiro, que foi, sem margem para dúvidas, o momento zen da sua intervenção no encerramento daquela jornada partidária, para o gáudio dos militantes e milhares de angolanos que acompanhavam a transmissão do referido certame.
Fonte: Club-k.net
As reacções vieram de quase todos os quadrantes da sociedade, enquadrando-se, indubitavelmente, o presente texto, no movimento ora descrito.
Nesta perspectiva, procuraremos, no presente exercício, e a benefício de inventário, antecipar os principais obstáculos, de ordem jurídico-prática, que o Estado angolano terá pela frente na implementação da medida que é o sound bit do momento.
A título prévio, importa sublinhar que, a literatura financeira não conceptualiza, o entendimento de repatriamento de capitais.
Contudo, de um modo geral, e recorrendo a uma linguagem coloquial, definiríamos, o repatriamento de capitais como, um instrumento jurídico-tributário ao dispor dos Estados com a finalidade de promover o repatriamento voluntário de capitais nacionais detidos no estrangeiro a troco de determinadas concessões, como a exclusão das responsabilidades criminal, contra-ordenacional e civil.
Em última análise, este expediente, visa, garantir a efectiva tributação de rendimentos gerados no seu território e transferidos para o exterior de forma ilícita.
Subentende-se da noção transcrita que, regime regra, este expediente, contempla unicamente rendimentos obtidos de forma lícita, mas, transferidos de forma ilícita, isto é, fora dos canais legais.
Mas nada obsta a que, os Estados contemplem neste regime de regularização excepcional tributária fundos que, para além da sua transferência ilícita, tenham, de igual modo, sido obtidos de modo ilícito, tratando-se, no final do dia, de uma questão de política legislativa. Como primeira nota, fica, desde já, a ideia de que não se trata de repatriar todo e qualquer capital sediado no exterior, mas, apenas aqueles cuja transferência ou proveniência fora resultado de violação de preceitos legais, até porque, o justo não pode pagar pelo pecador.
Como segunda nota, ressalva-se a ideia de o repatriamento ser, regra geral, um processo que assenta na voluntas das entidades visadas.
Na sequência, é legítimo questionar quais os procedimentos a accionar em caso de recusa do repatriamento voluntário de capitais.
Parece que é aqui onde a porca torce o rabo, como veremos, a questão é muito mais complexa do que parece.
Convém, no entanto, lembrar os termos da advertência do mais alto mandatário da nação “o executivo vai, no início do ano, estabelecer um período de graça durante o qual todos aqueles cidadãos angolanos que repatriarem capitais do estrangeiro para Angola e os investirem na economia, em empresas geradoras de bens, de serviço e de emprego, não serão molestados, não serão interrogados das razões de terem tido o dinheiro lá fora, não serão processados judicialmente”.
Resulta da citação acima que, em caso de recusa, os sujeitos visados serão submetidos a moléstia, e interrogatórios ou processados judicialmente.
Quanto a moléstia e interrogatório, em relação a este último, no sentido aí empregue, julgamos, dever-se interpretar cum grano salis, na medida em que, são incompatíveis com o quadro jurídico-constitucional vigente na República de Angola.
Acreditamos mesmos, terem sido proferidas no calor do evento, tal como creditamos, ao Presidente da República a inabalável convicção de que o processo eleitoral findo constituiu, finalmente, o marco do projecto de construção de uma Angola próspera e justa, onde o respeito pela dignidade do ser humano, se elevou, definitivamente, como limite e fundamento, da actuação do Estado, sob pena, de reeditarmos o regime ora finado do qual fomos cúmplices, directa ou indirectamente, e que hoje tanto nos enoja.
Quais são, então, à luz das regras do Estado de Direito e da experiência internacional, os mecanismos a que o Estado pode lançar mão em caso de recusa de repatriamento voluntário de capitais?
Não há, uma resposta unívoca para todas as situações.
Por isso, importa aqui destrinçar duas hipóteses:
A primeira situação diz respeito aos capitais obtidos licitamente, mas, transferidos ilicitamente.
Aqui, o que o Estado reclama, é o exercício das prerrogativas de tributar tais rendimentos. Em caso de recusa voluntária, não se aplica aqui, em rigor, o mecanismo de “repatriamento forçado de capitais” por, o Estado não dispor de competência e de mecanismos à luz do Direito, quer interno, quer internacional, para o fazer sem, contudo, tal significar a perda do legítimo direito de reclamar e reaver os valores a que teria direito se, aquando das referidas transferências a tributação tivesse sido efectivamente concretizada.
Neste entretanto, restará, ao Estado, como alternativa, accionar, partindo do pressuposto de que o processo de liquidação (no sentido do apuramento) dos respectivos impostos já fora efectuado, os mecanismos de execução fiscais, quer internamente, nos casos de o contribuinte dispor de bens ou valores no país, quer externamente, na ausência de qualquer património no país, admitindo, neste último caso, a existência acordos de assistência de cobrança de devidas com as administrações tributárias congéneres.
Na circunstância pregressa, a legitimidade do Estado está limitada ao quinhão do valor global expatriado correspondente aos valores dos impostos devidamente apurados,(liquidado) e não pagos.
Acrescidos, portanto, de multas e juros de mora correspondentes.
Assim, torna-se líquido dizer que, a pretensão do Estado de proceder ao repatriamento numa perspectiva global dos valores depositados no estrangeiro, esbarraria sempre nos bloqueios que os tribunais estrangeiros oporiam a tal pretensão por ser, manifesta, a falta de legitimidade.
Situação diametralmente oposta é aquela, em que os fundos não só foram transferidos de modo ilícito como provêm de actividades ilícitas, designadamente, corrupção, branqueamento de capitais, etc.
Sob mira, ficariam todas as fortunas detidas no estrangeiro por cidadãos angolanos e que fossem manifestamente desproporcionais com os rendimentos por eles auferidos, na senda do adágio, quem cabrito vende, e cabras não tem, de algum lado lhe vem.
Contemplar estas situações nos regimes excepcionais de regulação tributária, vulgarmente designados, por repatriamento de capitias, já é, um acto de extrema clemência.
Em caso de recusa dos visados em repatriarem voluntariamente os capitais o Estado, aqui sim, poderá ingressar na titularidade destes capitais e, consequentemente, proceder ao seu repatriamento compulsivo ao território pátrio.
A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção é o instrumento de base de que os Estados se socorrem para promover a restituição de activos reputados como produtos dos crimes de corrupção.
Adentrar nos meandros deste instrumento multilateral seria um exercício maçador para os nossos leitores.
Em linhas gerias, a promoção, a facilitação e o apoio à cooperação internacional e à assistência técnica na prevenção e na luta contra a corrupção, incluindo, a recuperação de activos, através de expedientes como; o embargo preventivo, a apreensão e o confisco, são os objectivos maiores deste instrumento multilateral.
Acontece, porém, que, na prática, este instrumento multilateral, é praticamente ineficaz enquanto não for complementado com outras iniciativas legislativas, quer de carácter interno, quer no domínio do Direito Internacional.
Em relação a estas últimas, resulta claro, do art.º 59º do instrumento multilateral em pauta que, “Os Estados Partes deverão considerar a celebração de acordos ou outros instrumentos jurídicos, bilaterais e multilaterais, a fim de reforçar a eficácia da cooperação internacional prevista neste capítulo da Convenção ”.
Por isso é que, não obstante a vigência do referido tratado, não é indiferente, a celebração ou a ratificação pelo Estado angolano de outros tratados, à semelhança, do acordo de cooperação jurídica e judiciário celebrado com Portugal.
Nesta conformidade, e na senda do já afirmado noutro lugar conclui-se que, sem a adesão ao Fórum Global de Trocas de Informações, Angola dificilmente levará de vencida esta luta feroz em virtude de não, ter em sua posse, informações relevantes que impulsionem qualquer acção neste sentido.
A título de exemplo, refira-se, a identidade dos beneficiários, os montantes envolvidos e as coordenadas geográficas dos respectivos custodiantes.
A obtenção destas informações é, condição sine qua no, para o andamento da pretensão de repatriamento, ou seja, é-nos legitimo questionar, com base em que instrumentos jurídico-internacional é que Angola interpelará os Estados onde estão depositados os referidos capitais para efeitos de obtenção de informações se Angola não é parte do Fórum Global de Trocas De Informações?
Ora, não obstante não figurar na lista recente da União Europeia que cataloga os paraísos fiscais, Angola, é, na verdade, para todos os efeitos tido por convenientes, um Estado não cooperante, em razão, de não ter ratificado os instrumentos internacionais que balizam as trocas de informações.
Escusado será dizer que, no âmbito do Direito Internacional, o princípio da reciprocidade é a bitola que norteia as relações entre os Estados, que é, de resto, um princípio devidamente densificado no âmbito dos instrumentos internacionais que regulam a troca de informações.
Muito telegraficamente, convém referenciarmos que, a circunstância de Angola não constar da lista da União Europeia que cataloga os paraísos fiscais, em nada abona o País, devendo-se tal, única e exclusivamente, à circunstância de, o critério usado pela União Europeia ter sido o de excluir da referida lista todos os países em vias de desenvolvimento, com excepção de Cabo verde que, não obstante ser um país em vias de desenvolvimento, consta da referida lista.
Numa só palavra, não existe qualquer espécie de desoneração de Angola em adoptar os instrumentos previstos no Fórum Global para Troca de Informações.
Em agravo, está a circunstância de a OCDE e a União Europeia atribuírem equivalência às expressões Estados não cooperantes e paraísos fiscais, conferindo, um tratamento igual para situações desiguais.
Esta opção, da qual discordamos vigorosamente, atenta contra toda uma cultura dogmática e do entendimento profundamente vulgarizado e enraizado do que são paraísos fiscais. Deixemos estas contas, para outro rosário.
Por outro lado, os processos de repatriamento forçado de capitais, chamemos-lhe assim, pressupõem sempre grandes batalhas judiciais.
Por conseguinte, o manuseamento e conhecimento dos labirintos por que se cosem os instrumentos jurídicos ao dispor das partes será determinante, como se referem os anglo-saxónicos “ the devil is in the detail”.
O Estado, nesta esteira, precisará de montar uma operação de consultoria jurídica gigantesca, envolvendo, uma miríade de escritório de advogados em face das centenas para não dizer milhares de batalhas processuais que uma operação destas despoleta.
Até porque, os detentores de tais fortunas, além de contestarem junto dos tribunais dos países onde estão os referidos valores depositados, tudo farão, para apagar quaisquer rastos, isto se não estiverem já a fazê-lo, tarefa facilitada em face da intangibilidade ou da desmaterialização destes activos financeiros.
Fica assim perceptível que, se trata de um processo complexo cuja morosidade, dependerá muito da particularidade de cada sistema jurídico, sem deixar, de referir, a álea a que os litigantes se submetem, daí o jargão, “não te dê Deus seus pleitos, mesmo que tenhas direito”.
Não deixaremos, entretanto, de tecer breves considerações, a respeito das declarações da euro deputada Ana Gomes que em termos lacónicos asseverou que” Angola pode recorrer à União Europeia para recuperar activos no exterior”, mais concretamente, no âmbito do Gabinete de Recuperação de Activos da União Europeia.
Parece tratar-se, quanto a nós, de uma afirmação bastante nebulosa. Pontos nodais que esta afirmação levanta:
- Em que termos é que a União Europeia obrigará a um país terceiro, portanto, fora da sua jurisdição, a exemplo de Inglaterra ou Panamá, a repatriar capitais angolanos?
- Existirá efectivamente este gabinete?
-Convém, no entanto, lembrar que, se as coisas fossem tão lineares assim como parecem, isto é, se os mecanismos de troca de informações fossem impecáveis o mundo não seria, volta e meia, confrontando com os escândalos como o do panama papers e paradise Papers.
Em honra da verdade científica, e com vista a comprovação da existência e a compreensão da funcionalidade do referido gabinete, decidimos, então, documentar-nos no terreno.
Do contacto efectuado junto das representações da União Europeia em Portugal, foi-nos dado a entender que, na estrutura orgânica desta instituição não existe um departamento ou órgão que atenda por este nome, em boa verdade, existe, isto sim, o Gabinete de Recuperação de Activos criado ao abrigo da Lei n.º 45/2011 de 24 de Junho, que funciona na dependência da Polícia Judiciaria Portuguesa.
Neste organismo, constatamos, uma vez mais, o desconhecimento da existência de um Gabinete supranacional de Recuperação de Activos sob a égide directa da União Europeia. Os Gabinetes de Recuperação de Activos são vistos como instrumento de política criminal e podem ser criados em qualquer país.
Deixemos o tempo clarificar melhor a informação veiculada pela Ilustre deputada.
Finalmente, é de referir duas questões;
Por um lado, que o processo de repatriamento de capitais não ponha em causa os direitos constituídos à luz da lei da amnistia a bem da previsibilidade e da segurança jurídica.
Ao contrário do que afirma Rui Verde, no artigo publicado no site Maka Angola, a lei da amnistia deixa incólumes os efeitos de natureza civil e tributária decorrentes dos ilícitos penais amnistiados.
Assim, a passagem do discurso, referente ao accionamento de mecanismos judiciais contra os visados, deve entender-se como se referindo a processos de natureza civil ou tributária, reservando-se, as acções criminais, só para aquelas situações excluídas da incidência da lei da amnistia, sob pena, de se resvalar para uma deriva autoritária.
Por outro lado, era de todo conveniente que, as verbas resultantes do repatriamento de capitais forçado, engrossassem as reservas internacionais líquidas e não as destinar à realizações de qualquer tipo de despesa, na convicção de que, uma economia como a nossa que, pouca ou nada produz, refém das importações, o relançamento económico será uma miragem enquanto os seus agentes económicos estiverem impossibilitados de interagir com o mercado externo.
Numa só palavra, sem divisas, e parafraseando o economista e jornalista, Carlos Rosado de Carvalho, não há Messi nem Cristiano Ronaldo que resolva este nó górdio da economia angolana.
Finalizamos como começamos, o repatriamento de capitais é uma questão muito mais complexa do que parece, mas, não é impossível.
Faça-o, senhor Presidente, corriga o que esta mal, melhora o que está bem, fortaleça o Estado Democrático e de Direito, o país agradece!
Post scriptum:
O que dizer relativamente aos bens sitos no estrangeiro adquiridos na sequência da delapidação do erário público?
Quanto aos cidadãos alvos (incidência subjectiva), a que se deve a utilização do critério da nacionalidade e não de residente fiscal ou o critério da fonte de obtenção dos rendimentos ou, para sermos mais assertivos, o critério do locus delitus, quando sabemos que, os estrangeiros, para lá do facto de terem sido cúmplices de alguma elite governante, ostentam, nos respectivos países, despudoradamente, a riqueza resultante destes ilícitos, como bem ilustra a investigação sobre quatro ex quadros da Tap acusados de lavarem 24 milhões euros provenientes de Angola?
E o MPLA?
Viabilizará, no Parlamento, a aprovação de uma lei que mexa com os interesses das eminências pardas de um passado recente?
*Jurista e consultor financeiro
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