OPINIÃO
João Miguel Esteves
23 de Dezembro de 2017, 6:55
Um escândalo em câmara lenta vai deixando de escandalizar. Mas este caso é demasiado grave para que o deixemos morrer assim.
A melhor forma de resolver um problema em Portugal é fazê-lo durar, até que as pessoas se esqueçam dele.
É o que está a acontecer com a entrada da Santa Casa no capital do Montepio. Um escândalo em câmara lenta vai deixando de escandalizar.
Mas este caso é demasiado grave para que o deixemos morrer assim.
Há duas semanas, Cristina Ferreira entrevistou o novo procurador da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), Edmundo Martinho.
Pergunta da jornalista do PÚBLICO: “Não o preocupa o facto de a SCML se ir expor a um sector [que está] permanentemente a fazer aumentos de capital?”
Edmundo Martinho respondeu: “É verdade que houve um período em que isso aconteceu. Mas a análise que fazemos do Montepio, nesta altura, aponta para um conjunto de rácios com alguma solidez.”
E mais à frente repete o pronome: “São rácios que nos dão alguma tranquilidade.” Reparem: “Alguma” solidez.
“Alguma” tranquilidade.
Tanto alguma significa nenhuma.
Nenhuma razão para ter confiança.
Nenhuma lógica no negócio.
Nenhuma vergonha para impedir que ele aconteça.
Reparem na evolução dos acontecimentos desde que Santana Lopes assumiu o dossiê Montepio, até ele acabar nas mãos de Edmundo Martinho.
O antigo procurador começou por torcer o nariz, depois mostrou-se mais aberto, de seguida disse que a entrada da SCML no Montepio era “pouco aliciante”, mais tarde admitiu entrar se outras misericórdias também entrassem, lá pelo meio disse que não pagava o valor que queriam.
Santanices.
É possível que Santana Lopes esteja a concorrer à liderança do PSD tanto para cumprir o sonho de um dia voltar a ser primeiro-ministro como para evitar pôr a sua assinatura num negócio vergonhoso.
Mas isto deixou dito numa entrevista de Junho: o valor (máximo) de que então se falava era de 140 milhões de euros, 18% dos activos da Santa Casa.
Agora, Edmundo Martinho veio falar em 200-duzentos-200 milhões. Santana declarou à RTP não entender tal valor, afirmando que a SCML nunca deveria disponibilizar mais de 10% dos capitais próprios, que avaliou em 50 milhões de euros.
A esses tais 200 milhões corresponderá uma participação de 10% na Caixa Económica, o que bate certo com as contas da Associação Mutualista, que avalia o banco em 2,2 mil milhões de euros — mas não bate certo com mais contas nenhumas.
Compare-se: o BPI tem 11% de quota de mercado e vale 1,6 mil milhões em bolsa.
O Montepio tem 5% e diz valer — não é cotado — 2,2 mil milhões.
Com os mesmos 200 milhões que vai enterrar no Montepio, a Santa Casa poderia comprar 12,5% do BPI.
Diga-me, caro leitor: quer 10% do Montepio ou 12,5% do BPI?
Infelizmente, a racionalidade económica disto é zero.
O Montepio é o banco português mais mal classificado entre as agências de rating: investimento altamente especulativo.
Tomás Correia, que tem o seu nome ligado ao BES, à Ongoing, ao BPN, a José Guilherme, e a tudo o que é desgraça do nosso sistema financeiro, continua à frente da Associação Mutualista.
Mas nada disto interessa.
O Governo quer salvar o Montepio sem enfiar milhões no banco, e é assim que vai fazê-lo. Usando o dinheiro da caridade.
Os estatutos da SCML deveriam proibir investimentos especulativos — mas ninguém sequer se lembrou de pôr lá isso.
Pressionada pelo Governo, a Santa Casa vai jogar o seu dinheiro no casino da banca portuguesa, esperando ter “alguma” sorte.
Em Portugal, só faltava mesmo ir ao bolso dos sem-abrigo.
Agora já não falta.
A sopa dos pobres é oficialmente sopa dos banqueiros.
Jornalista
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