Miguel Santos Carraposo
21/12/2017, 20:38
"Se fosse o ministro, não tocaria mais neste assunto e delegaria num secretário de Estado", conclui um jurista ouvido pelo Observador
PSD acusou Vieira da Silva de ter violado o Código de Conduta do Governo ao ter decidido sobra a Raríssimas.
Juristas dividem-se, mas maioria acredita que ministro está impedido de tomar mais decisões
Vieira da Silva, ministro do Trabalho e da Segurança Social, não terá violado o Código de Conduta imposto a todos os membros do Governo — mas, daqui em diante, não se deve pronunciar nem tomar decisões sobre qualquer facto relacionado com a Raríssimas.
Este é pelo menos o entendimento generalizado dos vários juristas contactados pelo Observador.
Na quarta-feira, em pleno debate quinzenal, o líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, acusou Vieira da Silva de ter violado o Código de Conduta criado pelo Governo ao tomar decisões sobre o caso Raríssimas.
Os sociais-democratas referem-se sobretudo a três momentos: quando, em junho, aconselhou Paulo Brito e Costa a entregar as suspeitas de eventuais irregularidades na delegação Norte da associação ao Ministério Público; quando o ministro deu seguimento a uma denúncia que recebeu no dia 16 de outubro, assinada pelo ex-tesoureiro da associação Jorge Nunes; e, mais recentemente, quando, já confrontado com os factos revelados pela reportagem da TVI, deu ordens aos serviços para que fosse feita uma inspeção à Raríssimas.
Ao Observador, uma fonte do grupo parlamentar do PSD acrescentou ainda outro facto que tinha ficado de fora da argumentação que Hugo Soares levou para o debate quinzenal: o facto de Sónia Fertuzinhos, companheira de Vieira da Silva, ter viajado até à Suécia a convite da Raríssimas.
A deputada socialista participou numa conferência organizada pela EURORDIS, a rede europeia de doenças raras, que depois reembolsou à associação portuguesa — inicialmente, no entanto, as despesas foram suportadas pela Raríssimas.
No debate no Parlamento, António Costa defendeu Vieira da Silva
Para os sociais-democratas, o princípio geral do Código de Conduta (aprovado na sequência do “Galpgate”) é claro: “Considera-se que existe conflito de interesses quando os membros do Governo se encontrem numa situação em virtude da qual se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão”.
Ora, como o ministro desempenhou funções nos órgãos sociais da Raríssimas, argumentam os sociais-democratas, a sua imparcialidade em tudo que tenha que ver com a associação está posta em causa.
E depois há a viagem de Sónia Fertuzinhos, em setembro de 2016, já Vieira da Silva era ministro.
A determinado momento, o Código de Conduta remete para os artigos 69.º e 73.º do Código de Procedimento Administrativo.
Este último artigo, que fundamenta casos de escusa e suspeição, tem uma referência clara a eventuais “dádivas” entregues a “cônjuges” ou “pessoa com que viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim na linha reta”.
Apesar do entendimento do PSD, a opinião dos seis juristas contactados pelo Observador divide-se: há quem garanta que Vieira da Silva já violou, de facto, o Código de Conduta; há quem diga que a questão não se coloca, sequer; e há quem sugira que o ministro ainda não fez nada que desrespeitasse o código, mas que qualquer decisão que venha a tomar está ferida na sua legitimidade — a opinião maioritária, aliás.
“Não devia ter interferido”
Paulo Otero, professor da Universidade de Lisboa, constitucionalista e especialista em Direito Administrativo, defende que Vieira da Silva deveria ter garantido o “tal distanciamento que se impõe” como “garantia de que o princípio da imparcialidade não está colocado em causa” — algo que Vieira da Silva manifestamente não fez.
“Manda a prudência que o ministro não tivesse interferido.
Até porque tem ou teve uma relação direta ou indireta com a associação.
Deveria ter delegado qualquer decisão”, sustenta.
Ainda assim, o facto de Vieira da Silva ter tomado todas as decisões com o “propósito da fiscalização” e “não o de favorecer” a Raríssimas, “atenua a eventual violação do Código de Conduta do Governo“, sustenta.
Quanto a decisões que venha a tomar no futuro, nomeadamente quando tiver o resultado da inspeção nas mãos, Paulo Otero é claro: “Vieira da Silva deve pedir escusa.
No lugar dele, era o que faria“.
É também o que diz Miguel Resende, especialista em Direito Administrativo e advogado na sociedade ATMJ.
“Até este momento, não existiu violação alguma.
Mas existirá se e quando o ministro tomar uma decisão que possa beneficiar ou prejudicar a Raríssimas, um contrato ou a aplicação de uma sanção”, argumenta.
O facto de ter ordenado uma inspeção ou de ter dado conselhos para que Paula Brito e Costa entregasse as suspeitas que recaíam sobre a delegação Norte da Raríssimas ao Ministério Público também não constituem em si uma violação do Código de Conduta.
“A remessa do processo para os serviços inspetivos, outro órgão, ou o conselho para apresentar factos ao Ministério Público é a forma típica de não intervir, pelo menos, naquele momento.
Por outras palavras, a sua intervenção reduziu-se ao mínimo indispensável para que outros, que não ele, conduzissem o processo e fê-lo com brevidade”, explica.
O mesmo não se aplicará, no entanto, no futuro.
Para Miguel Resende, Vieira da Silva deve afastar-se de qualquer decisão sobre a Raríssimas.
“O facto de o ministro ter pertencido a um órgão social da Raríssimas é suficiente para que este fique impedido de decidir seja o que for“, argumenta o jurista.
“Não teve o cuidado e o rigor que deveria ter tido”
José Moreira da Silva, da SRS Advogados, é mais taxativo: “Quando se verifique um conflito e para garantir a independência, deve ser pedida escusa de participar pelo próprio, podendo um terceiro pedir o impedimento.
Se nada disso ocorrer e o visado atuar, o seu ato é invalido, sendo anulável.
A participação em órgãos sociais antes de ter exercido o mandato de ministro e na sua própria área, pode gerar uma situação de conflito de interesse, devendo o ministro ter pedido escusa de atuar em situações abrangidas pela Rarissimas.
Ao não o ter feito, o ato que praticou é invalido, sendo anulável”, argumenta.
Tudo somado, “não só pode estar em causa a detenção anterior pelo ministro de um cargo na mesa na assembleia-geral [da Raríssimas], como pode também estar em causa a viagem oferecida à sua mulher“, conclui o jurista, também especialista em Direito Administrativo.
Um outro jurista, advogado sénior de uma das maiores sociedades do país que preferiu não ser identificado — “a questão é demasiado política”, justificou — é igualmente perentório:
“É evidente que um ministro que tenha feito parte dos órgãos sociais de uma instituição está impedido de tomar decisões em relação àquela instituição.
O que o PSD diz não é um disparate jurídico”, comenta.
Para este advogado, Vieira da Silva deveria ter “delegado imediatamente qualquer decisão sobre a Raríssimas no secretário de Estado, declarar-se impedido e afastar-se do processo”.
“Mas a assessoria jurídica dos ministérios é, em muitos casos, tão pobrezinha, que depois acontecem estas coisas.
O ministro não teve o cuidado que deveria e que tinha obrigação de ter tido“, sustenta a mesma fonte.
Quanto a futuras decisões, o mesmo jurista defende o que já antes disseram Paulo Otero, Miguel Resende e José Moreira da Silva: “Vieira da Silva tem um problema de independência aos olhos das pessoas.
Objetivamente, qualquer decisão que venha a tomar está ferida de legitimidade e pode ser contestada“, conclui.
Paulo Veiga e Moura, advogado na Veiga e Moura & Associados, tem outro entendimento. “Não me parece que o facto de ter sido membro da assembleia-geral da Raríssimas seja motivo para estar impedido de tomar decisões sobre a associação”, defende.
Mas isso é no plano estritamente jurídico.
Para o especialista em Direito Administrativo, “Vieira da Silva não teve o cuidado e o rigor que deveria ter tido“.
“É a velha lógica da mulher de César: não basta ser séria, tem de parecer.
Não diria que houve violação do Código de Conduta, mas a atuação do ministro não foi suficientemente transparente.
Se fosse o ministro, não tocaria mais neste assunto e delegaria num secretário de Estado”, conclui o jurista.
Só um jurista acha que não há conflito
Apenas um dos seis juristas contactados pelo Observador afasta qualquer cenário de violação do Código de Conduta.
Pedindo para não ser identificado, um advogado especialista na área da criminalidade económica e financeira entende que a “questão não se coloca“.
“Se as decisões são formais, como as de ‘abrir-se inquérito’ ou ‘comunicar-se ao MP’, não estamos perante uma decisão em benefício da dita entidade, nem decisão que impeça um prejuízo para essa entidade.
Não há nenhuma decisão que ‘beneficie’ (positiva ou negativamente) seja quem for”, começa por argumentar.
“Acho que a questão se colocaria se fossem as decisões opostas — se se tivesse decidido: não se comunique ao MP ou não se abra inquérito”, conclui a mesma fonte.
Entendimento diferente teve o PSD.
Durante o debate quinzenal, Hugo Soares perguntou três vezes a António Costa se considerava que o ministro tinha violado o Código de Conduta.
À primeira, António Costa garantiu que não, que o ministro não tinha violado qualquer Código de Conduta; ao segundo desafio, o primeiro-ministro assegurou, tal como Vieira da Silva, estar de consciência tranquila; mas, à terceira pergunta de Hugo Soares, o socialista perdeu a paciência: “Se tem alguma acusação direta a fazer sobre o ministro Vieira da Silva tenha a hombridade de fazer a acusação.
Não se escude em retórica insinuatória.
Faça a acusação se tiver alguma acusação para fazer”.
E Hugo Soares fez: “Sim, o ministro Vieira da Silva fez parte dos corpos sociais daquela IPSS, e sim violou o código de conduta do Governo, o senhor é que não tem coragem de assumir”.
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