MANUEL CARVALHO
29 de Novembro de 2017, 23:55
Belmiro Mendes de Azevedo morreu nesta quarta-feira no Porto aos 79 anos de idade.
O seu legado concreto mede-se facilmente no universo empresarial que criou.
O seu exemplo como gestor permanece alvo de devoções.
Mas a voz dura do empresário inconformado, exigente e rebelde parece ter-se perdido.
“O problema de morrer tem mais que ver com quem fica e não com quem vai. Com a morte não se tem relação, nem se procura.” Em 2004, quando proferiu esta declaração desprendida, Belmiro Mendes de Azevedo tinha mais três anos de líder destacado da Sonae e mais 13 anos de vida. Nesta quarta-feira, o “problema” aconteceu. Depois de poucos dias de internamento, Belmiro faleceu, no Porto. Tinha 79 anos vividos quase sempre numa espiral interminável de actos de inconformismo e rebeldia. Contra a situação, contra o imobilismo, contra o comodismo, contra a inércia, contra os favores de uma sociedade cristalizada, que “se verga cedo de mais” como se a memória dos “reis” permanecesse incólume, contra uma maneira de fazer negócios previsível, conformada e subserviente aos poderes. Mais do que um empresário, Belmiro foi um exemplo de exigência permanente, um homem livre e corajoso, amigo do risco, da disciplina interior, da educação pela vida fora, da “ética rigorosa”. Foi um apologista de uma necessidade íntima de fazer e desfazer para voltar a fazer de novo, como se a realização pessoal dependesse dessa permanente contradição.
“Morre o maior empresário depois do 25 de Abril, a classe empresarial portuguesa estará de acordo com isto. Morre uma figura inspiradora para milhares de quadros. E morre uma voz que nunca baixou a cerviz”, diz Daniel Bessa, que trabalhou pela primeira vez com Belmiro “há mais de 40 anos”. Olhando o seu percurso de vida, todas essas características acabam por obedecer a um traço de temperamento que desde sempre marcou Belmiro. Foi a sua coragem física, a liberdade de dizer o que pensava e agir de acordo com o risco dessa atitude que o levou de uma pequena empresa industrial nos anos 60 do século passado à construção de um dos maiores grupos privados nacionais. Foi a sua permanente disponibilidade para o risco que o levou a definir as visões sobre os novos hábitos de consumo nos hipermercados ou a antecipação de um mundo onde as pessoas estariam permanentemente ligadas por um aparelho sem fios – o telemóvel. Foi a introdução da exigência na gestão e a aposta numa cultura meritocrática, cristalizada nos famosos dez mandamentos do “Homem Sonae”, que levaram centenas de jovens a entrar na Sonae ou a enveredar por carreiras de gestão. O movimento yuppie dos anos 90 deve-se a ele.
Belmiro Mendes de Azevedo nasceu em Tuías, nas imediações do Marco de Canavezes, no dia 17 de Fevereiro de 1938. Para ele, a origem sempre foi um privilégio e uma ponte. “Eu sou um homem do Marco, freguesia de Tuías. Depois, estou dentro de todos os outros universos: sou do Norte, sou de Portugal, sou da Europa e sou do mundo”, diria. Pela vida fora, o empresário gostaria sempre de sublinhar a sua origem humilde, embora nesse tempo de extremas privações os Azevedo fossem uma família de classe média. A mãe, Adelina, que o fascinará pelo rigor e pela devoção ao trabalho, era costureira e o pai, Manuel, carpinteiro. Mas as heranças tinham-lhes garantido ao menos terrenos de cultivo que nessa época eram capazes de separar uma vida de penúria de uma situação remediada. Sempre havia milho para panificar, vinho, leite e carne quando possível. Belmiro é o primeiro filho do casal e jamais abdicará desse estatuto. Sempre assumiu um papel complementar ao dos pais na educação dos seus irmãos.
Nada na sua primeira experiência escolar permitiria adivinhar o seu percurso académico. No primeiro ano, reprovou. Não por culpa dele, diria sempre, mas pelo laxismo e incompetência do seu professor, por sinal um amigo de caça do seu pai. Quando muda de professor e de escola, Belmiro muda também. Torna-se um aluno exemplar. O mérito, dirá, foi do seu professor, Carlos da Silva Andrade. “Ele era rigoroso, exigente e disciplinador e teve um grande impacto no meu carácter. Por sua influência fui sempre (e ainda sou) um leitor ávido e interessado nas grandes questões materiais e espirituais sobre a condição humana. Foi, na verdade, graças a ele que saí da província e me lancei no mundo. Sem esse impulso, seguramente não estaria aqui hoje”, diria Belmiro de Azevedo num discurso de reconhecimento à homenagem que a Ordem dos Engenheiros lhe fez há dois anos.
Seria, de resto, o professor do ensino básico a influenciar os pais para a necessidade de o primogénito continuar os estudos. Aos 11 anos, Belmiro parte para o Porto, para estudar no liceu. Por falta de condições, tem de ficar hospedado na casa do tio Belmiro da Mota, na altura fiscal nas obras de construção do Observatório da Serra do Pilar, em Gaia. Nesse encontro com o tio, Belmiro colherá a segunda experiência de vida que marcará indelevelmente outra das facetas marcantes da sua personalidade: um certo espírito libertário e irreverente. Belmiro da Mota era um velho republicano carbonário que guardara armas em casa, conhecera a perseguição da PIDE e a prisão no Aljube. Para o jovem vindo de Tuías, a sua cultura política, a sua dedicação aos livros e às ideias políticas tornaram-se uma revelação. “Era muito meu amigo. Vivemos juntos durante muito tempo. Era um filósofo, ateu. Ou agnóstico. Para ele, Jesus Cristo não era um líder religioso, mas um grande filósofo. Lia muito sobre aquilo, não tinha educação superior e passava a vida a explicar-me isso. Morreu com um enfarte violentíssimo, à uma da manhã, estávamos os dois em casa. Foi a primeira pessoa que vi morrer”, diria, em 2010, numa entrevista à Visão.
Após a morte do tio, Belmiro de Azevedo, com 15 anos, muda de novo de vida. Aluga um quarto na Rua do Bonfim, no Porto, perto do liceu Alexandre Herculano que frequentava ao lado de, entre outras figuras conhecidas, Rui Vilar, o chairman da Caixa Geral de Depósitos. As suas notas garantem-lhe mais tarde uma bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian. Mas tem de dar explicações para garantir a sua sobrevivência. “O maior investimento que fiz na minha vida foi quando aos 17 anos decidi ser empreendedor e comecei a dar explicações para financiar o meu curso. ‘Ginasticou-me o caco’ e o retorno do investimento tem sido infinito. Por isso, a formação é o melhor investimento que qualquer pessoa pode fazer”, explicou em 2001 ao Expresso.
Estava na hora de ir para a universidade. Os pais viriam em 1958 para o Porto, e Belmiro encontrou aí estabilidade e previsão. Entre explicações e noitadas a jogar cartas com os amigos, Belmiro de Azevedo licenciar-se-ia em Engenharia Química, com 16 valores. Houve anos em que arriscou em excesso e quase não fazia exames. Mas acabou com média suficiente para ser convidado para ser docente na Faculdade de Engenharia do Porto. Não era, no entanto, esse o caminho que queria seguir. Mal acaba o curso, em 1963, aceita um emprego num dos gigantes nortenhos da fiação, a Efanor. O mundo pareceu-lhe aí muito cristalizado. “Mandava toda a gente”, diria. Desse primeiro emprego ficaria uma ligação simbólica. Efanor é ainda a holding pessoal da família Azevedo.
Em 1965, Correia da Silva, o administrador delegado da Sonae, uma empresa do universo do banqueiro Afonso Pinto de Magalhães que se dedicava a produzir um aglomerado a partir do bagaço de uva, lança-lhe um desafio: mudar o sistema de produção da fábrica. Belmiro chegou como um vendaval. “A minha primeira tarefa como jovem engenheiro foi ter de mandar para a sucata metade dos equipamentos e mudar substancialmente as pessoas que lá estavam. Durante muito tempo trabalhava durante 24, 48, 72 horas seguidas de modo a cumprir a completa transformação”, explicaria numa memória para uma edição interna da Sonae. Mas essa transformação não se ficou pelas máquinas e pelos trabalhadores. Abrangeu o próprio produto. Em vez de estratifite, a Sonae passou a produzir laminite e saiu da crise grave em que se encontrava.
Logo no princípio da carreira Belmiro mostrara o traço fundamental do seu perfil de gestor. Para ele, não podia haver barreiras ao que entendesse como necessário para cumprir uma missão. À sua chegada à Sonae instalou o “caos organizado” que defenderia vida fora. Numa entrevista ao PÚBLICO em 1995 explicaria esse conceito inaugural do seu percurso: “Costumo dizer — e acredito nisso — que só funciono bem no caos organizado. É preciso saber gerir o caos. Uma empresa, para ter criatividade e competitividade interna, tem de, permanentemente, ser capaz de gerir num certo ambiente de desordem, o que significa mudanças permanentes. A nossa maneira de estar, a nossa estabilidade é sermos instáveis.”
Entre as tarefas na gestão da Sonae, Belmiro dedica-se a uma das paixões que conservará até ao limite da sua resistência física: o desporto. Quando era adolescente, causava espanto aos moradores de Tuías ao dedicar-se a longas corridas pela aldeia. Na universidade pratica, com reconhecido talento, andebol. Primeiro no clube desportivo da universidade, depois no seu clube de paixão, o FC. Porto. Aos 18 anos, na praia de Leça, conhece entretanto Maria Margarida Teixeira, que tinha à época 15. Nas suas primeiras saídas românticas, Belmiro recordaria um dia de 1958, ano da campanha de Humberto Delgado para as eleições presidenciais, quando, ao subirem a Rua 31 de Janeiro, teve de lhe pegar ao colo para a proteger do tumulto gerado num confronto com a polícia.
Margarida e Belmiro de Azevedo casar-se-iam em 1963, quando ela era ainda estudante de Ciências Farmacêuticas – Belmiro ganhava 5600 escudos na Efanor. Margarida foi talvez a pessoa mais influente na sua vida. Foi, pelo menos, a pessoa que desde sempre teve mais poder para controlar o lado mais impulsivo e tempestuoso do engenheiro. O filho que lhe sucedeu nos negócios da Sonae, Paulo, diria mais tarde numa reunião internacional com quadros do grupo que a Sonae tinha um CEO (chief executive office) – Belmiro – e uma CEO (chief emocional officer) – Margarida. Nunca ninguém teve o mesmo poder de dizer não ao gestor que a sua mulher. Belmiro reconheceria um dia numa entrevista à Visão, com humor e embevecimento, esse poder de influência. “[Margarida Azevedo é] a única que lhe diz não?”, perguntou a jornalista Cesaltina Pinto. Belmiro respondeu: “Ela?! É muito pior do que isso. Nem me deixa assinar os cheques da farmácia.”
Em 1971, Belmiro de Azevedo é já pai de três filhos. Nuno, o primeiro, nascera em 1963. Duarte Paulo, o segundo, em 1965. E Cláudia em 1970. Pouco antes de entrar numa fase de aceleração, ao adquirir a Novopan em 1971, e de se ter iniciado na produção das resinas industriais necessárias à produção de aglomerados após um conflito de preços com a poderosa Hoecht, a Sonae consolida-se como uma indústria de futuro na economia nortenha. Tem produto próprio, métodos inovadores, mercados externos e solidez financeira. A empresa entra na turbulência do 25 de Abril numa situação confortável. Isso seria reconhecido quando os trabalhadores fazem “uma greve ao contrário” – em defesa dos seus accionistas e da sua administração. Em 1978, na sequência de uma nacionalização parcial após o 11 de Março de 1975, o Estado tenta mudar a administração. Os trabalhadores paralisam e colocam-se ao lado de Belmiro. Durante quatro meses de instabilidade monta-se uma rede de cooperação entre trabalhadores e gestores que garante a actividade da empresa. Nesse período, todos os salários foram iguais.
Belmiro venceria o conflito. E torna-se o senhor Sonae, mesmo quando as acções da empresa ainda estão parqueadas no IPE, uma sociedade de capitais públicos em que ficou a titularidade das empresas nacionalizadas. Três anos depois, quando o Governo da AD descongela os anos da revolução, chegaria o momento de se saber quem mandava e quem detinha, de facto, a Sonae, na época uma apetecível empresa industrial que ocupava 45 mil metros quadrados. Belmiro e a equipa de gestão, em que se incluíam velhos companheiros de rumo como Jaime Teixeira, Romão de Sousa ou Fernando Carvalho? Ou o accionista, o banqueiro Afonso Pinto de Magalhães, que depois do 25 de Abril se exilara no Brasil?
Quando regressa a Portugal, em 1982, o banqueiro ensaia uma solução de compromisso. Faz um pacto com Belmiro, que na época considera a hipótese de regressar à universidade – falava-se também numa proposta para gerir um grupo brasileiro: ele ficaria, na condição de ser accionista e gestor. “Quando o senhor Pinto de Magalhães regressou do Brasil (eu tinha ficado aqui como ‘feitor’ a tomar conta da ‘quinta’ deles), eu quis voltar à universidade. Como ainda estavam bastante assustados e eu lhes tinha tratado bem dos negócios, ofereceram-me 20% das acções a um preço simbólico. Eu comprei, com um financiamento do Lloyds Bank, e depois fui comprando mais, com o pêlo do cão, como se costuma dizer”, recordaria o empresário. No ano seguinte, com a abertura do mercado de capitais, a Sonae entra na bolsa e Belmiro aproveita a onda. No final de 1984 era já o principal accionista, o que gerará uma vaga de ressentimento dos herdeiros de Pinto de Magalhães, falecido em 1983.
Com as rédeas na mão de Belmiro, a Sonae aceleraria a sua espiral de crescimento. Se os anos de 1960, com a integração de Portugal no espaço da EFTA, tinham sido propícios aos investimentos na indústria exportadora, nos anos de 1980 a liberalização da economia e as perspectivas da integração europeia abriam um novo mundo às empresas nacionais. Belmiro compreendeu-o como poucos. Em 1984 faz uma parceria com os franceses da Promodés para lançar o primeiro hipermercado em Portugal. A inauguração do Continente de Matosinhos foi uma revolução que atraía multidões de curiosos para conhecer uma loja onde se podia comprar tudo. Pelo meio, a Sonae adquiriu a Agloma, estreou o Porto Sheraton e lançou-se em Inglaterra com a Sonae UK para garantir a distribuição dos seus produtos industriais.
Estava na hora de criar uma cultura de grupo capaz de encaixar as vagas de crescimento que se antecipavam. Num tom meio apologético, meio influenciado pelo misticismo da auto-ajuda, Belmiro de Azevedo redige os dez princípios da “cultura Sonae” e os dez mandamentos do “homem Sonae”. Aí, aplica os seus próprios ensinamentos de vida e ajusta-os a uma estratégia de gestão de recursos na qual há espaço para o risco e para o fracasso, mas nunca para a indecisão, para o estatuto ou para a indiferença. “As elites verdadeiras não têm privilégios. Privilégio está conotado com favoritismo, nepotismo, favores de heranças, etc.(...) Os verdadeiros líderes são-no naturalmente. Não são impostos, impõem-se”, escreveria. Para depois afirmar, numa frase célebre, que “O ‘homem Sonae’ ou é líder ou candidato a líder.” Mas não o será a qualquer custo: “Deve ter um código ético e deontológico rigoroso”, e “tem de ser adulto no pensamento, firme, sem ser duro, na decisão, corajoso, sem ser aventureiro, na acção”.
Belmiro começava já a ser uma figura de projecção nacional. Não apenas pelas suas realizações empresariais, mas pela determinação e pela capacidade de enfrentar dificuldades. Tornara-se um bulldozer. “Sou heterodoxo e o grupo é motivado nesse sentido. Com ortodoxias não se vai a lado nenhum, apenas se faz mais do mesmo”, dizia. Ele não era assim. “Sempre gostei de fazer coisas diferentes. Portanto, quando uma área está consolidada e o método de trabalho está bem concebido, vou pregar para outra freguesia”, acrescentava anos mais tarde. Nortenho assumido, com costela de Tuías, preferia a realização pessoal do self made man à herança nobiliárquica. Quando, num congresso do PCP, Álvaro Cunhal se pronuncia contra a tríade dos capitalistas exportadores (os Mello, os Espírito Santo e Belmiro), o empresário protesta: “Sem querer estar aqui a insinuar que eu é que sou um gajo porreiro, eles formaram grupos em regime de benesses decorrentes do condicionamento industrial. Ora a posição da Sonae foi toda conquistada no mercado.”
O mercado, por essa época, era generoso. A economia crescia rapidamente na segunda metade dos vertiginosos anos 80. A euforia da Bolsa atraía como nunca mais se viu as poupanças dos portugueses. O “gato por lebre” que o então primeiro-ministro Cavaco Silva sinalizara ainda não estava no horizonte. O Governo, com Miguel Cadilhe nas Finanças, estimulava com mecanismos fiscais as famosas OPV (ofertas públicas de venda).
Nesta euforia, Belmiro lança em 1987 não uma, mas sete OPV ao mesmo tempo – as da Agloma, Ibersol, Modelo Continente, Publimeios, Robótica, Selfrio e Viacentro. Miguel Cadilhe suspeita de “falta de transparência” no processo. O próprio Belmiro reconhece que as operações foram lançadas no limiar da legalidade, mas recusa qualquer irregularidade. “É verdade que nós jogámos com a lei”, admitiria Belmiro num depoimento a Magalhães Pinto, autor da sua biografia. Mais tarde os tribunais dariam razão à Sonae. As sete OPV, mesmo tendo implicado mecanismos financeiros que exploravam buracos na lei, não eram ilegais. O processo acabaria arquivado. E a Sonae tinha arrecadado quatro milhões de contos na venda de acções ao mercado.
Estava na hora de dar novos saltos. Enquanto a área da distribuição crescia, a Sonae investia no imobiliário, no turismo e na comunicação social. Em 1990, o PÚBLICO nascia. Belmiro tornara-se um personagem incontornável da vida nacional. “A Sonae tem, de vez em quando, de fazer algumas coisas que não têm ligação directa com a rentabilidade. E entendi, há dez anos, que fazia falta um diário de referência, que dignificasse o jornalismo, com meios, qualidade e independência – era um bom contributo para a sociedade portuguesa. O jornal nunca favoreceu a Sonae, nunca interferi na sua linha editorial, sempre me distanciei dele senão estava lixado”, explicaria em 2001 numa entrevista a José Carlos Vasconcelos, em 2001. O primeiro director do jornal, Vicente Jorge Silva, diria que o PÚBLICO era “a peninha” no chapéu de Belmiro. Leu-o diariamente até ao final da sua vida. O que mais o preocupava era a sua falta de rentabilidade – embora por vezes o apresentasse como um projecto de responsabilidade social. Não se conhecem vestígios de que alguma vez interviesse na sua linha editorial.
Os anos 90 foram fulgurantes para a economia e para a Sonae. O seu crescimento foi imparável: 200 milhões de contos de volume de negócios em 1991, 357 milhões em 1995, 615 milhões em 1998. Nem tudo correu, no entanto, de modo a justificar esta explosão nos resultados. Nessa década, Belmiro conheceu alguns dos seus principais problemas e teve de se confrontar com vários dissabores.
A começar, um conflito com a família Pinto de Magalhães. Ao lançar um aumento de capital de 15 para 40 milhões de contos na Sonae, em 1992, Belmiro ameaçava reduzir a posição da família para níveis próximos dos 10% do capital da empresa – os Pinto de Magalhães não tinham forma de acompanhar o aumento de capital. As reacções não se fizeram esperar. O Tribunal Cível suspende o aumento de capital ao longo de 18 meses. O diferendo instala-se como uma novela na praça pública. “Se hoje a família tem dinheiro, deve-o aos trabalhadores da Sonae”, dizia Belmiro, lamentando “que só tenham sabido delapidá-lo”. Carolina Magalhães, viúva do banqueiro, responderia em declarações ao PÚBLICO: “Não gosto das atitudes dele e estou muito sentida. Acho que a família Pinto de Magalhães não merecia tanto aquilo que ele tem feito e procura fazer. É uma pessoa dura, não tem coração.”
Mas o desgaste com a família Pinto de Magalhães (e com outros accionistas minoritários que se queixavam da forma autocrática como geria os negócios) seria apenas uma ponta do icebergue dos problemas que viriam a seguir. Belmiro tenta controlar o processo de privatização do BPA e acaba por perder para o BCP de Jardim Gonçalves. Tenta o controlo do Totta e volta a perder, desta vez para José Roquette. O desfecho destes negócios intermediados pelo Estado leva-o a aumentar a sua suspeição sobre a isenção da política. Perder, para ele, não era uma tragédia – até porque no caso do BCP retirou-se com uma mais-valia estimada em três milhões de contos. “Isto tem muito que ver com a minha formação desportiva: ganhar, perder, receber e dar caneladas”, dizia. Mas a cada passo queixava-se da sua condição de outsider nortenho, distante do poder. “O Governo tem um discurso afirmando que não é de Lisboa, mas na prática verificamos que as decisões finais têm favorecido os grupos de Lisboa. Quanto a mim, em muitos casos, injustamente”, dizia em 1995.
O conflito com os políticos tornou-se então frequente. Belmiro mostra nesse atrito constante a sua aura temerária que lhe mereceu um boneco no Contra-Informação – “Belmiro Mete Medo”. “Tenho a cara um bocado vincada, marcada, do Mete-Medo, mas eu não meto medo a ninguém”, ironizaria. Mas, instado a prestar declarações no Parlamento, obrigou os deputados a ouvi-lo às oito da manhã. E ao longo do tempo foi distribuindo farpas. Marques Mendes? “Não dava nem para porteiro da Sonae.” Ministros da Economia? “O Pina Moura era como Estaline e o Carlos Tavares como o Brejnev e quase tivemos o António Mexia na Economia. Tivemos ainda o Fernando Castro e o Jorge Armindo, estilo Tchernenko e Gromiko.” A ida de Durão Barroso para Bruxelas? “Não há nenhum cargo internacional mais importante para um cidadão português que defender no seu país as suas ideias (…). A minha convicção é de campónio: quem foge ao combate é cobarde.” Santana Lopes? “É incompetente.” Cavaco Silva? “É um ditador. Mandou quatro amigos meus, dos melhores ministros, para a rua, assim de mão directa.” Referia-se a Álvaro Barreto, Teresa Patrício Gouveia, Miguel Cadilhe e Eurico de Melo.
Mas a maior animosidade era com Marcelo Rebelo de Sousa. “É um entertainer político que se diverte à custa dos desprazeres que provoca”, dizia. “O Marcelo é pluri-pluri. Tem dez respostas, todas boas, para a mesma pergunta. Não sofre de pensamento único”, ironizava. Marcelo tinha sido o principal instigador, em 1997, de um inquérito parlamentar ao alegado favorecimento de grupos económicos privados pelo Estado e o então líder do PSD avisara Belmiro de que “Portugal não é o faroeste nem é dominado por máfias”. Belmiro responderia com contundência: “Tenho seguramente o direito de exprimir um juízo sobre um líder político que, desafiando todas as probabilidades, acalenta o desejo de chegar a primeiro-ministro: no meu critério, não serve para tal lugar, como não serve para qualquer outro que recomende um mínimo de carácter e de sentido público. Di-lo-ei sempre que for necessário lembrá-lo. (…) Aqui tem, professor Marcelo Rebelo de Sousa. Por mim, escusamos de ficar por aqui: não me calo nem que Cristo desça à terra. E desengane-se: dito por mim, isto quer dizer realmente isso mesmo.”
Nesta animosidade contra a classe política, só Mário Soares parecia escapar. “A única pessoa que eventualmente pus no poder foi o Mário Soares. Foi a única vez em que declarei por antecipação em quem votava. Nunca mais fiz isso”, dizia. Mas não se vislumbra que Belmiro o tivesse feito por convicções ideológicas. Ao menos, Soares partilhava da sua rebeldia. De resto, Belmiro confessaria que o PSD fora o partido em que mais vezes votara, pelo menos até 1992. Definia-se como “um liberal com preocupações sociais” ou como “um social-democrata moderno” que desprezava a ideia de solidariedade “no sentido de dar” e gostava da ideia de criar emprego no quadro mais favorável do capitalismo para “dignificar a pessoa”.
Entre avanços e recuos, a Sonae continua a consolidar os seus focos de negócios com investimentos solenes como o Colombo, em Lisboa, alarga o retalho à moda ou aos electrodomésticos, torna-se o maior fabricante mundial de aglomerados de madeira depois de comprar a alemã Glunz e em 1998 lança a Optimus – os estudos de mercado derrotaram a escolha de Belmiro de Azevedo, que preferia o nome Amigo. Pelo meio, acalentava a ideia de se tornar “maior no Brasil do que em Portugal”. Em 2000 o universo Sonae dividia-se por cinco pólos: indústria, com 39 unidades industriais; turismo, com a Star, a Solplay e já com a Torralta; imobiliário, com os shoppings; telecomunicações com 17% quota de mercado com a Optimus a Novis e a Clix; distribuição: 350 lojas em Portugal e no Brasil, onde era o terceiro maior operador, com vendas acima dos 850 milhões de contos. Tinha já 60 mil trabalhadores.
Não era essa escala de sucesso que, porém, o levava a acomodar-se. Por essa altura, quando o país entrava no entorpecimento que o levaria a registar um dos piores crescimentos económicos do mundo, Belmiro lamentava que os portugueses fossem sedentários, viajassem pouco e se fixassem nas actividades tradicionais sem abrir novos horizontes. “As pessoas nascem, fazem xixi e morrem no mesmo lugar. Do ponto de vista da ginástica intelectual é mau”, notava. Ele, entretanto, cumpria na acção o que prometia por palavras. Nem os problemas de saúde que teve (uma úlcera calosa e uma pancreatite “daquelas que nunca se sabe como acaba”) lhe detiveram a marcha – embora nessa época tenha pela primeira vez reflectido sobre o problema da morte. “Tinha a minha vida toda organizada. É preciso estar sempre preparado para qualquer eventualidade, um acidente de viação, um acidente vascular”, diria mais tarde. Nesse momento, deixou cartas à família que permanecem secretas.
Belmiro recuperou em força. Na década passada, a Sonae evoluiu, sempre nos eixos da destruição criativa que o gestor lhe impusera desde que lá chegara. Em 2006 Belmiro, com o filho Paulo ao lado, anuncia ao país uma estratégia que ninguém ousara sequer imaginar: uma oferta pública de aquisição sobre a PT. A sorte dessa operação é conhecida. A sorte da PT e do seu principal usufrutuário, o BES, também. Os seus estilhaços judiciais andam ainda no ar a perturbar a vida pública. Como diria Belmiro: “É verdade que às vezes erramos e ‘estampamo-nos’ contra a parede. Mas não há nada que um bocado de tinta e uma ida ao bate-chapas não resolva. É melhor errar do que não decidir. Pelo menos aprende-se.” No caso da PT, mais evidente do que um eventual erro foi a aprendizagem.
Após a OPA, o fantasma da sucessão foi-se tornando nítido no grupo com o avanço da idade do “engenheiro”. Em 2001, ele avisara que esse não era um problema. “Falam-me muitas vezes do problema da minha sucessão. Não há problema nenhum. As coisas estão de tal modo organizadas, que só pode haver candidatos a mais”, dizia. Em 2007, numa célebre cerimónia de apresentação de contas, deu a notícia: o seu sucessor seria o seu filho Paulo Azevedo. Não houve dramas. Para muitos analistas avisados sobre os dramas com as passagens de testemunho nas empresas de raiz familiar, a transmissão do poder na Sonae foi exemplar. Paulo mudaria o estilo e refinaria o rumo do grupo, mas sem perder o esteio do crescimento. No ano passado, a Sonae facturou 5,1 mil milhões de euros.
Belmiro de Azevedo continuou a estar perto da gestão do filho pelo menos até 2015, quando se retirou em definitivo. Ocupava o seu velho gabinete na Maia, ao lado da fábrica que ainda conserva as máquinas que instalou há mais de meio século. Lia os jornais, analisava relatórios de gestão, continuava a dar trabalho às secretárias, esforçava-se a fundo por seguir. Empenhava-se em acompanhar a Porto Business School, um dos seus projectos mais empenhados. Mas não se ficava por aí. “Tendo saúde, vou-me ocupar sobretudo do sector primário em Portugal, onde há falta de gestão e sobretudo de investimento na floresta, agricultura e na pesca”, dizia. Na prática, continuava imparável entre visitas aos campos de nectarinas no vale da Vilariça ou ao armazém de kiwis no Marco.
Fazer era para ele uma forma de viver. E viveu fazendo até aos limites.
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