OPINIÃO
Vicente Jorge Silva
4 de Fevereiro de 2018, 6:45
É saudável que deixe de haver espaço para a impunidade e que rigorosamente ninguém se considere acima da lei.
Mas é triste que, simultaneamente, sejam casos desses que fazem prosperar o jornalismo de sarjeta.
No texto que é tema de capa da última edição da revista Sábado pode ler-se, entre outras passagens reveladoras de um certo tipo de jornalismo cada vez mais em voga — amplificado pelas redes sociais — e em conexão com os meios judiciários: “Na passada terça-feira, a Sábado acompanhou, em exclusivo, o início da operação de busca domiciliária a Rui Rangel.
Vários inspectores e o antigo procurador-geral da República José Souto Moura estiveram no local logo a partir das 8h34.
E até a varanda do apartamento de Rangel foi vasculhada por inspectores sob o olhar de Souto Moura, actual juiz-conselheiro do STJ, que levou os mandados de busca e apreensão e que chegou a ser transportado no carro de Rangel, quando a PJ o mudou de local no estacionamento do condomínio.”
Note-se: a Sábado vangloria-se de cobrir “em exclusivo” uma operação policial e judiciária e vai tão longe na precisão que até assinala a hora exacta em que começou, nem um minuto a mais ou a menos: 8h34.
Eis o que parece ser entendido como exemplo máximo de “jornalismo de investigação” à portuguesa: um “exclusivo” que só pode ter sido obtido com a informação prévia e a conivência das autoridades envolvidas, incluindo um actual juiz do Supremo.
Ou seja: jornalistas, polícias e magistrados aparecem de mãos dadas, num espectáculo de alegre promiscuidade, na busca em casa de um suspeito.
Já sabíamos que o segredo de justiça se tornou uma ficção, mas talvez ainda duvidássemos, com infinita ingenuidade, que a conivência entre alguns jornalistas e agentes da Justiça pudesse atingir um tal grau de desvergonha que cria laços de dependência e servilismo mútuos.
Isso explica, por exemplo, como foi possível ter acontecido o caso Centeno, em que a Justiça correu atrás das “notícias” sobre o suposto contrabando de favores entre o ministro das Finanças e o presidente do Benfica (dois bilhetes no camarote presidencial em troca de uma isenção fiscal que, descobriu-se logo, não dependia do ministério mas da autarquia). Entretanto, o gabinete do ministro foi vasculhado e o “escândalo” ganhou proporções internacionais, afectando a imagem de integridade do recém-eleito presidente do Eurogrupo.
É óbvio que Centeno não deveria ter cedido à tentação parola da sua notoriedade no caso do pedido dos bilhetes — expondo-se ao voyeurismo mediático —, mas que as autoridade judiciais se tenham limitado a reagir, como marionetas acéfalas, à pista maldosa do jornalismo de sarjeta sem se informarem minimamente da questão, é extremamente revelador dos circuitos viciosos entre esse jornalismo e a Justiça.
E assim voltamos ao caso Rangel, com as suas ramificações venenosas em áreas propícias ao escândalo, como é o mundo do futebol.
O escândalo reflecte, aliás, o ambiente mafioso que atravessa tantas outras áreas da sociedade portuguesa, da política ao mundo dos negócios e à própria magistratura, da qual Rangel, com o seu novo-riquismo e narcisismo doentios, expõe uma imagem degradante (mas ainda assim protegida pelo seu estatuto corporativo, pois só ao fim de uma semana é que o Conselho Superior de Magistratura o suspendeu de funções).
Sim, é saudável que deixe de haver espaço para a impunidade e que rigorosamente ninguém se considere acima da lei.
Mas é triste que, simultaneamente, sejam casos desses que fazem prosperar o jornalismo de sarjeta — até ao dia, porventura ainda longínquo, em que o verdadeiro jornalismo de investigação, autónomo de todos os poderes, se imponha à opinião pública como única fonte credível de informação.
Por enquanto, infelizmente, o culto nauseabundo da porcaria que faz salivar a avidez populista, fora e dentro das redes sociais, terá ambiente para medrar.
Jornalista
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