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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Um país de militantes, sócios e afiliados



Dois investigadores estudaram 40 anos de democracia e concluíram que a sociedade civil em Portugal é mais forte do que em Espanha. Mas está a enfraquecer

Textos MICAEL PEREIRA

Fazer uma revolução é melhor do que mudar suavemente um regime. Pelo me­nos para Tiago Fernandes e Rui Branco, dois investigadores de ciência política da Universidade Nova de Lisboa. Em Espa­nha, houve uma transição da ditadura para a democracia entre 1975 e 1978. Em Portugal a revolução de 1974 trou­xe a democracia do dia para a noite. Os dois cientistas estiveram nos últimos três anos a tentar perceber como é que esta diferença afetou a forma como, nos dois países, as pessoas passaram a parti­cipar na vida pública desde então. E agora que a investigação chegou ao fim, há conclusões um pouco surpreendentes.
Ao contrário do que se possa dizer ou pensar, a sociedade civil portuguesa não é fraca. Depende, argumentam os dois cientistas políticos, dos termos de comparação. Porque se é mais fraca do que a bitola clássica das democracias an­tigas do norte da Europa, com as quais a comparação é habitual, consegue ser mais forte do que em Espanha. E é com Espanha, defendem, que as contas de­vem ser feitas.
"Quando comparado com as socieda­des civis: de outros países europeus, Portugal aparece como um país débil em participação cívica”, admite Tiago Fer­nandes, «mas Portugal não deve ser com­parado com a Europa ocidental e do nor­te, mas sim dentro do universo das cha­madas noas democracias». O que signi­fica medir forças com Espanha e Grécia — ambos Estados-membros da União Europeia saídos de ditaduras na mesma altura que os portugueses – ou com a África do Sul ou alguns países asiáticos ou da América Latina. «Portugal partilha com estas democracias o facto de du­rante quase todo o século XX elas terem vivido sob regimes desigualitários», explica o cientista político. Desse pomo de vista, “a so­ciedade civil portuguesa é robusta".

EM PORTUGAL MAIS DE 30% DA POPULAÇÃO FAZEM PARTE DE ASSOCIAÇÕES. EM ESPANHA SÃO 20%. NO ANO DE 2000 OS PORTUGIESES SINDICALIZADOS ERAM MAIS D 50% DO QUE OS ESPANHÓIS

Um em cada três é afiliado
O número de associações criadas em Portugal e Espanha nos últimos 40 anos é proporcionalmente quase igual, mas os investigadores acreditam que em teoria deveria ser maior no país vizinho, ten­do em conta que se trata de um Estado mais rico e onde as pessoas são mais qua­lificadas. A verdade, no entanto. é que os portugueses afiliam-se muito mais. Em Portugal, mais de 30% da população adulta faz parte de algum tipo de associa­ção, enquanto em Espanha essa fatia é de 20% ou menos.
O sociólogo Manuel Villaverde Cabral, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa director do Instituto do Envelhecimento, avisa, no entanto, que o conceito de sociedade civil adoptado pelos dois investigadores está, quanto a ele, muito próximo daquilo que considera serem “grupos organizados” na sociedade portuguesa. «O que existe em Portugal são alguns lóbis poderosíssi­mos, que têm contribuído em grande parte para impedir uma ultrapassagem mais rápida da crise económica». Eu dou mais importância às manifestações não regulares não sistemáticas da sociedade e que não vemos em sindicatos e em or­dens. A própria Igreja às vezes apresen­ta-se como fazendo parte da sociedade civil, não o sendo a meu ver, embora se­ja um lóbi muito poderoso, com as IPSS a que está ligada.»
De acordo com a investigação da Uni­versidade Nova, no universo da defesa dos direitos dos trabalhadores, no ano 2000 havia mais 50% de portugueses sindicalizados do que no outro lado da fronteira. E esse fosso já foi maior. Em 19756, 61% da população activa em Portu­gal estava inscrita em sindicatos, quase o dobro dos 33,8% na Espanha de 1980.
Ainda por publicar, o estudo dos dois investigadores do departamento de Ciên­cia Política da Faculdade de Ciências So­ciais e Humanas (FCSH) da Universida­de Nova de Lisboa revela que, além dis­so, os portugueses afiliados participam mais do que os seus congéneres espa­nhóis. Em tudo: debates, acções de volun­tariado e outras actividades. Mesmo quando essas actividades são mais lúdi­cas, como eventos de desporto, lazer ou cultura, mundos onde se notam grandes contrastes desde as mudanças de regime na Península Ibérica.
No período de 2001 a 2003, 8,2% dos portugueses faziam parte de organizações desportivas ou de lazer, contra 1,5% em Espanha. Ou seja, cinco vezes mais, sensivelmente a mesma proporção que havia na década de 80 com as associa­ções culturais, em que 22% de afiliados em Portugal contrastavam com apenas 5% em Espanha. Em relação às associa­ções profissionais, como são o caso das ordens dos engenheiros e dos médicos, ou em relação às organizações religio­sas, o desequilíbrio não tem sido tão grande, mas ainda assim os membros portugueses são o dobro dos membros espanhóis, em termos proporcionais.
A justificação avançada pelos investigadores para estes números está na cultu­ra cívica de igualitarismo desenvolvida em Portugal de um para o outro, com o 25 de abril. No final da ditadura, quando era presidente do governo Marcello Caetano, estavam a ser criadas 211 associações por ano. Em 1974, o ritmo passou a ser de 1500. Esse florescimento terá sido facilitado pela tolerância em relação a movimentos de contestação e reivindicação por parte de uma nova elite política, «mais aberta ao povo», enquanto que em Espanha houve figuras da ditadura que transitaram para a democracia com todas as implicações.

NO PERÍODO FINAL DA DITADURA ESTAVAM A SER CRIADAS 211 ASSOCIAÇÕES POR ANO. EM 1974, COM A REVOLUÇÃO O RITMO PASSOU A SER DE 1500.

Uma Visão que é contestada por Diego Palacios Cerezales, um investigador Espanhol actualmente na Universidade de Stirling, no Remo Unido, e que tem também feito estudos comparativos entre os dois países (publicou "Portugal à Coronhada”, sobre o uso da violência na contestação social entre o século XIX e o século XX). «A revolução portuguesa foi intensa e interessante mas se calhar deixou um legado duplo: em muitas regiões rurais e conservadoras, toda a vida associativa desvinculada da Igreja passou a ser rejeitada como comunismo. Isso está por estudar, mas acompanhei uns inquéritos rurais em 1998 e 1999 e isso estava muito presente."
Além de mais, reforça Cerezales, «os inquéritos internacionais de valores e atitudes mostram que entre 1970 e 1990 a sociedade espanhola mudou muito mais depressa do que a sociedade portuguesa. Na década de 70 poucos poderiam imaginar que Espanha seria um dos primeiros países a legalizar o matrimónio homossexual». O investigador realça ainda o contraste que encontrou em Portugal, quando em 1996 passou a ter uma relação mais forte com o país: «As formas de relacionamento hierárquico que na Espanha tinham desaparecido com a ditadura, mantinham-se em Portugal.”

Poucas cooperativas, muitas IPSS
Independentemente das opiniões divergentes sobre o impacto do associativismo na sociedade civil, o estudo da Nova aponta sinais preocupantes. Desde os anos 90 que o nível de participação de portugueses na vida pública tem vindo deteriorar-se e a diferença com, Espanha tende a esbater-se. A erosão maior tem acontecido nas associações que repre­sentam os mais fracos, um universo on­de os investigadores incluem os sindica­tos mas não só. “Observamos um declí­nio enorme na importância das coopera­tivas'’. aponta Rui Branco. “Foram usa­das no Estado Novo como laboratórios de oposição e expandiram-se muito nos anos 70, mas depois desapareceram.”
Em contrapartida, as instituições particulares de solidariedade social (IFSS) têm vindo a reforçar o seu papel na so­ciedade. "São mais importantes em Por­tugal do que em Espanha, onde o maior relevo do ponto vista da proteção social vai para as associações de vizinhos: ou do que em Itália, onde esse papel é de­sempenhado por cooperativas”, explica Rui Branco.
De acordo com o investigador da Nova, o modelo português de Estado-providência assenta em grande parte nas IPSS, que transitaram do Estado Novo para o período democrático, com as misericór­dias e outras organizações ligadas à Igre­ja. No final dos anos 70, o Estado começou a celebrar protocolos com essas ins­tituições, para as subsidiar e ao mesmo tempo as poder inspecionar; e o actual Governo renovou os acordos com o sec­tor, reforçando algumas das verbas. Nos últimos 12 anos, as IPSS aumentaram a sua capacidade de cobertura da popula­ção em 66%, entre creches para crianças e serviços de apoios a idosos.
“As IPSS são um sucesso’’, garante Rui Branco ante a sua consolidação, o regime democrático recorreu a uma re­de que já existia para estender o Estado social, subordinando o sector a uma política de inclusão e universalismo. Hoje fazem parte da identidade do regime actual». São, segundo ele, uma marca de água de Portugal.
mrpereira@expresso.impresa.pt



O bom desempenho das famílias

Num Estado social em perda, com o Estado a reduzir o nível de proteção dantes oferecido aos cidadãos e com parte da sociedade civil em declínio, há outro tipo de organização, mais pequena e tradicional, que tem emergido em Portugal como uma tábua de salvação: a família, “O que a crise tem demonstrado é que nos últimos dois anos há um reforço da solidariedade, sobretudo da solidariedade entre pessoas que têm relações de parentesco”, diz Carlos Rodrigues Farinha, professor e investigador do ISCO especialista em desigualdades sociais, “Não há dados estatísticos sobre essa realidade, mas os relatos que nos chegam da Cáritas e da Cruz Vermelha dão conta do que se está a passar". Os reformados têm apoiado os filhos e os netos, Manuel Villaverde Cabral, sociólogo do ICS e diretor do Instituto do Envelhecimento (ver entrevista), acredita que as famílias têm funcionado como "uma unidade indestrutível" ao longo da crise, “Há uma realidade para lá das estatísticas. Além de todos os rendimentos declarados, muitos reformados, sobretudo no mundo rural, têm património e algum rendimento informar’’ que vai dando para ajudar a família.


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