Dois investigadores
estudaram 40 anos de democracia e concluíram que a sociedade civil em Portugal
é mais forte do que em Espanha.
Mas está a enfraquecer
Textos MICAEL
PEREIRA
Fazer uma revolução é
melhor do que mudar suavemente um regime. Pelo menos para Tiago Fernandes e
Rui Branco, dois investigadores de ciência política da Universidade Nova de
Lisboa. Em Espanha, houve uma transição da ditadura para a democracia entre
1975 e 1978. Em Portugal a revolução de 1974 trouxe a democracia do dia para a
noite. Os dois cientistas estiveram nos últimos três anos a tentar perceber como
é que esta diferença afetou a forma como, nos dois países, as pessoas passaram
a participar na vida pública desde então. E agora que a investigação chegou ao
fim, há conclusões um pouco surpreendentes.
Ao contrário do que
se possa dizer ou pensar, a sociedade civil portuguesa não é fraca. Depende,
argumentam os dois cientistas políticos, dos termos de comparação. Porque se é mais
fraca do que a bitola clássica das democracias antigas do norte da Europa, com
as quais a comparação é habitual, consegue ser mais forte do que em Espanha. E é
com Espanha, defendem, que as contas devem ser feitas.
"Quando
comparado com as sociedades civis: de outros países europeus, Portugal aparece
como um país débil em participação cívica”, admite Tiago Fernandes, «mas Portugal
não deve ser comparado com a Europa ocidental e do norte, mas sim dentro do
universo das chamadas noas democracias». O que significa medir forças com
Espanha e Grécia — ambos Estados-membros da União Europeia saídos de ditaduras
na mesma altura que os portugueses – ou com a África do Sul ou alguns países
asiáticos ou da América Latina. «Portugal partilha com estas democracias o facto
de durante quase todo o século XX elas terem vivido sob regimes
desigualitários», explica o cientista político. Desse pomo de vista, “a sociedade
civil portuguesa é robusta".
EM PORTUGAL MAIS DE
30% DA POPULAÇÃO FAZEM PARTE DE ASSOCIAÇÕES. EM ESPANHA SÃO 20%. NO ANO DE 2000
OS PORTUGIESES SINDICALIZADOS ERAM MAIS D 50% DO QUE OS ESPANHÓIS
Um em cada três é
afiliado
O número de
associações criadas em Portugal e Espanha nos últimos 40 anos é
proporcionalmente quase igual, mas os investigadores acreditam que em teoria
deveria ser maior no país vizinho, tendo em conta que se trata de um Estado mais
rico e onde as pessoas são mais qualificadas. A verdade, no entanto. é que os
portugueses afiliam-se muito mais. Em Portugal, mais de 30% da população adulta
faz parte de algum tipo de associação, enquanto em Espanha essa fatia é de 20%
ou menos.
O sociólogo Manuel Villaverde
Cabral, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa director
do Instituto do Envelhecimento, avisa, no entanto, que o conceito de sociedade civil
adoptado pelos dois investigadores está, quanto a ele, muito próximo daquilo
que considera serem “grupos organizados” na sociedade portuguesa. «O que existe
em Portugal são alguns lóbis poderosíssimos, que têm contribuído em grande
parte para impedir uma ultrapassagem mais rápida da crise económica». Eu dou
mais importância às manifestações não regulares não sistemáticas da sociedade e
que não vemos em sindicatos e em ordens. A própria Igreja às vezes apresenta-se
como fazendo parte da sociedade civil, não o sendo a meu ver, embora seja um
lóbi muito poderoso, com as IPSS a que está ligada.»
De acordo com a investigação
da Universidade Nova, no universo da defesa dos direitos dos trabalhadores, no
ano 2000 havia mais 50% de portugueses sindicalizados do que no outro lado da
fronteira. E esse fosso já foi maior. Em 19756, 61% da população activa em
Portugal estava inscrita em sindicatos, quase o dobro dos 33,8% na Espanha de
1980.
Ainda por publicar, o
estudo dos dois investigadores do departamento de Ciência Política da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa
revela que, além disso, os portugueses afiliados participam mais do que os
seus congéneres espanhóis. Em tudo: debates, acções de voluntariado e outras actividades.
Mesmo quando essas actividades são mais lúdicas, como eventos de desporto,
lazer ou cultura, mundos onde se notam grandes contrastes desde as mudanças de
regime na Península Ibérica.
No período de 2001 a
2003, 8,2% dos portugueses faziam parte de organizações desportivas ou de
lazer, contra 1,5% em Espanha. Ou seja, cinco vezes mais, sensivelmente a mesma
proporção que havia na década de 80 com as associações culturais, em que 22%
de afiliados em Portugal contrastavam com apenas 5% em Espanha. Em relação às
associações profissionais, como são o caso das ordens dos engenheiros e dos
médicos, ou em relação às organizações religiosas, o desequilíbrio não tem
sido tão grande, mas ainda assim os membros portugueses são o dobro dos membros
espanhóis, em termos proporcionais.
A justificação
avançada pelos investigadores para estes números está na cultura cívica de igualitarismo
desenvolvida em Portugal de um para o outro, com o 25 de abril. No final da
ditadura, quando era presidente do governo Marcello Caetano, estavam a ser
criadas 211 associações por ano. Em 1974, o ritmo passou a ser de 1500. Esse florescimento
terá sido facilitado pela tolerância em relação a movimentos de contestação e
reivindicação por parte de uma nova elite política, «mais aberta ao povo», enquanto
que em Espanha houve figuras da ditadura que transitaram para a democracia com
todas as implicações.
NO
PERÍODO FINAL DA DITADURA ESTAVAM A SER CRIADAS 211 ASSOCIAÇÕES POR ANO. EM
1974, COM A REVOLUÇÃO O RITMO PASSOU A SER DE 1500.
Uma Visão que é contestada
por Diego Palacios Cerezales, um investigador Espanhol actualmente na
Universidade de Stirling, no Remo Unido, e que tem também feito estudos comparativos
entre os dois países (publicou "Portugal à Coronhada”, sobre o uso da
violência na contestação social entre o século XIX e o século XX). «A revolução
portuguesa foi intensa e interessante mas se calhar deixou um legado duplo: em
muitas regiões rurais e conservadoras, toda a vida associativa desvinculada da
Igreja passou a ser rejeitada como comunismo. Isso está por estudar, mas
acompanhei uns inquéritos rurais em 1998 e 1999 e isso estava muito
presente."
Além de mais, reforça
Cerezales, «os inquéritos internacionais de valores e atitudes mostram que
entre 1970 e 1990 a sociedade espanhola mudou muito mais depressa do que a
sociedade portuguesa. Na década de 70 poucos poderiam imaginar que Espanha
seria um dos primeiros países a legalizar o matrimónio homossexual». O
investigador realça ainda o contraste que encontrou em Portugal, quando em 1996
passou a ter uma relação mais forte com o país: «As formas de relacionamento hierárquico
que na Espanha tinham desaparecido com a ditadura, mantinham-se em Portugal.”
Poucas cooperativas,
muitas IPSS
Independentemente das opiniões divergentes sobre
o impacto do associativismo na sociedade civil, o estudo da Nova aponta sinais
preocupantes. Desde os anos 90 que o nível de participação de portugueses na
vida pública tem vindo deteriorar-se e a diferença com, Espanha tende a
esbater-se. A erosão maior tem acontecido nas associações que representam os
mais fracos, um universo onde os investigadores incluem os sindicatos mas não
só. “Observamos um declínio enorme na importância das cooperativas'’. aponta
Rui Branco. “Foram usadas no Estado Novo como laboratórios de oposição e
expandiram-se muito nos anos 70, mas depois desapareceram.”
Em contrapartida, as
instituições particulares de solidariedade social (IFSS) têm vindo a reforçar o
seu papel na sociedade. "São mais importantes em Portugal do que em
Espanha, onde o maior relevo do ponto vista da proteção social vai para as
associações de vizinhos: ou do que em Itália, onde esse papel é desempenhado
por cooperativas”, explica Rui Branco.
De acordo com o
investigador da Nova, o modelo português de Estado-providência assenta em
grande parte nas IPSS, que transitaram do Estado Novo para o período
democrático, com as misericórdias e outras organizações ligadas à Igreja. No
final dos anos 70, o Estado começou a celebrar protocolos com essas instituições,
para as subsidiar e ao mesmo tempo as poder inspecionar; e o actual Governo
renovou os acordos com o sector, reforçando algumas das verbas. Nos últimos 12
anos, as IPSS aumentaram a sua capacidade de cobertura da população em 66%,
entre creches para crianças e serviços de apoios a idosos.
“As IPSS são um
sucesso’’, garante Rui Branco ante a sua consolidação, o regime democrático
recorreu a uma rede que já existia para estender o Estado social, subordinando
o sector a uma política de inclusão e universalismo. Hoje fazem parte da
identidade do regime actual». São, segundo ele, uma marca de água de Portugal.
mrpereira@expresso.impresa.pt
O bom desempenho das famílias
Num Estado social em perda, com o Estado a
reduzir o nível de proteção dantes oferecido aos cidadãos e com parte da sociedade
civil em declínio, há outro tipo de organização, mais pequena e tradicional,
que tem emergido em Portugal como uma tábua de salvação: a família, “O que a
crise tem demonstrado é que nos últimos dois anos há um reforço da
solidariedade, sobretudo da solidariedade entre pessoas que têm relações de
parentesco”, diz Carlos Rodrigues Farinha, professor e investigador do ISCO
especialista em desigualdades sociais, “Não há dados estatísticos sobre essa
realidade, mas os relatos que nos chegam da Cáritas e da Cruz Vermelha dão
conta do que se está a passar". Os reformados têm apoiado os filhos e os
netos, Manuel Villaverde Cabral, sociólogo do ICS e diretor do Instituto do
Envelhecimento (ver entrevista), acredita que as famílias têm funcionado como
"uma unidade indestrutível" ao longo da crise, “Há uma realidade para
lá das estatísticas. Além de todos os rendimentos declarados, muitos
reformados, sobretudo no mundo rural, têm património e algum rendimento
informar’’ que vai dando para ajudar a família.
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