Erik R. Scott
3 de Novembro de 2017, 7:00
Refugiados da Guerra na Síria
O conceito foi cunhado após a chegada dos bolcheviques ao poder na Rússia, em 1917.
O Supremo Tribunal dos EUA permitiu que partes do decreto da restrição de entrada de estrangeiros no país entrassem em vigor.
Decidiu rever em Outubro a legalidade da ordem presidencial, [mas adiou a audiência final para data incerta].
O decreto, que restringe em muito a entrada nos EUA de pessoas de seis países predominantemente muçulmanos e suspende a recolocação de refugiados nos EUA, encaixa como uma luva nos polémicos comentários de Donald Trump durante a campanha, quando afirmou que os refugiados da Síria eram potenciais terroristas cuja chegada ameaçava “a destruição da civilização como a conhecemos”.
Espera-se nessa altura que a Administração argumente que o Presidente tem autoridade para, no interesse da segurança nacional, interromper o acolhimento de refugiados.
Os opositores irão dizer que o decreto viola a liberdade religiosa, ultrapassa as fronteiras do poder presidencial e negligencia as obrigações legais nacionais e internacionais para com os refugiados.
À primeira vista, pode parecer que os dois lados se opõem diametralmente.
No entanto, ambas as posições partem de um conceito bastante limitado de “refugiado”, cunhado após a chegada dos bolcheviques ao poder na Rússia, em 1917.
Há cem anos, a Revolução Russa transformou o migrante em refugiado – um actor político. Durante a Guerra Fria, o Ocidente abraçou os refugiados que fugiam do comunismo e transformou-os em poderosas armas simbólicas.
A politização do refugiado facilitou os movimentos através da Cortina de Ferro, mas escondeu as complexidades que motivam a migração.
Agora, esta narrativa simplificada do refugiado fez crescer as barreiras para aqueles que, no século XXI, são forçados a fugir.
A Revolução Russa originou uma torrente de migrantes em direcção às cidades europeias. Neste processo, deu também ao mundo todo um novo vocabulário relacionado com a migração internacional, como refugiado, fugitivo e desertor, para descrever o motivo da saída das pessoas e definir os direitos de que devem gozar no estrangeiro.
Os bolcheviques viam o abandono do Estado socialista como traição, enquanto os seus opositores davam abrigo aos que diziam sair por razões ideológicas.
Ambos os lados enquadraram a decisão de migrar num acto político, dando origem a um sistema global de refugiados que vigora até aos dias de hoje.
Os que fugiram do regime soviético viram a sua cidadania revogada, mas tornaram-se os primeiros refugiados legalmente reconhecidos do mundo, identificados pela Liga das Nações como um grupo perseguido e privado da protecção de um estado.
Ser identificado como refugiado concedia certos benefícios aos migrantes, incluindo o acesso a um passaporte Nansen, documento de identificação emitido pela Liga das Nações que permitia que pessoas sem cidadania cruzassem fronteiras internacionais.
Em 1945, no fim do período mais tumultuoso da História europeia, que incluiu duas Guerras Mundiais, o continente viu-se a braços com a maior crise de refugiados da História.
O rápido amanhecer da Guerra Fria transformou esta crise num conflito político entre Oriente e Ocidente pelos corações, mentes e corpos dos mais de 5 milhões de soviéticos que definhavam nos “campos de deslocados” estabelecidos à pressa.
A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, também conhecida por Convenção de Genebra, que reconheceu a perseguição com base na “opinião política” de um indivíduo como motivo de fuga, contribuiu ainda mais para a competição global pelos refugiados.
Enquanto a União Soviética tentava repatriar os seus cidadãos e impedir que outros partissem, os Estados Unidos e seus aliados encorajavam a sua saída.
Ainda mais do que antes, qualquer movimento não-autorizado em todas as fronteiras do estado soviético – independentemente da motivação – era interpretado como uma decisão política: traição ao socialismo ou escolha da democracia capitalista, dependendo da perspectiva.
Esta nova batalha pôs de lado as antigas hierarquias raciais que tinham presidido às políticas de recolocação no Ocidente.
Em vez disso, surgiu um novo sistema de privilégios que dava prioridade aos migrantes em fuga dos estados comunistas, incluindo países como a China e Cuba, cujos cidadãos tinham enfrentado antes severas restrições à entrada nos Estados Unidos.
Se os “fugitivos” dos regimes comunistas recebiam prioridade, os “desertores” eram particularmente celebrados.
O termo “desertor”, que se tornou de uso corrente nos Estados Unidos, foi oficialmente definido como alguém que tinha fugido de um país controlado pelo comunismo, não queria regressar, e era de “especial interesse” para o governo dos EUA.
Na prática, esse “especial interesse” podia abranger praticamente tudo o que pudesse contribuir para o objectivo de ganhar a Guerra Fria.
Os desertores podiam incluir agentes do KGB insatisfeitos, bailarinas de ballet à procura de melhores oportunidades no exterior, minorias que se sentiam oprimidas pelo regime, ou marinheiros soviéticos à procura de aventura, que “saltavam borda fora” em portos estrangeiros.
Ao contrário de outros refugiados, os desertores eram afastados das zonas fronteiriças vulneráveis por comités interagências, recebiam ajuda financeira e eram frequentemente interrogados e usados para propósitos de propaganda.
O Congresso celebrou a sua chegada aos Estados Unidos aprovando leis especiais para lhes conceder residência permanente.
Contudo, a ideia da migração como uma escolha a preto-e-branco entre comunismo e capitalismo simplificava cruelmente os motivos até dos mais politizados desertores.
Quando analisadas ao detalhe, em vez de simples calculismos ideológicos, encontramos histórias de migração muito mais ambíguas, e também mais humanas: soldados soviéticos que, depois de uma noite de copos, entraram na zona americana; um estudante de 16 anos que entrou clandestinamente num navio em Odessa, com destino a Creta; um diplomata que se apaixonou por uma estrangeira; uma mãe que desviou um avião para tentar dar aos seus filhos um futuro melhor.
Com o fim da Guerra Fria, a deserção – que durante anos fez parte do imaginário popular – desapareceu do mapa.
Hoje é raro ouvirmos o termo.
É às vezes usado para descrever pessoas que fogem dos remanescentes estados socialistas, como a Coreia do Norte, mas muito raramente aplicado a outro tipo de migrantes.
É até difícil conceber a ideia da existência de desertores das fileiras das organizações terroristas internacionais, e ainda mais difícil imaginar os Estados Unidos em festa pela sua chegada.
As fronteiras da “Guerra ao Terror” não se confinam às fronteiras dos países, e o nosso medo do terrorismo não parece conceber a possibilidade de que alguém mude de lado.
Em resultado, na ausência da rivalidade da Guerra Fria, faz falta uma narrativa coerente que nos puxe para a ajuda aos refugiados.
Enquanto outrora os estados clamavam defender os interesses dos que fugiam do mundo comunista – muitas vezes ao ponto de abafar as vozes individuais daqueles que tinham partido do seu país – muitos dos refugiados actuais são recebidos com apatia e desconfiança, uma combinação potencialmente letal.
Como consequência da Guerra Fria, o direito dos cidadãos a deixarem os seus estados é hoje amplamente reconhecido, mas as barreiras à entrada na Europa e nos Estados Unidos estão maiores que nunca.
Contemplando os últimos cem anos, não estamos a aprender com a História se acharmos que, por fugirem de estados falhados, devastação ambiental ou privações económicas em vez do socialismo, os refugiados de hoje são muito diferentes dos do passado.
Embora as questões legais a discutir no Supremo Tribunal possam estar limitadas ao conceito de refugiado que se desenvolveu ao longo do século XX, a sociedade precisa de compreender as limitações históricas dessa definição, expandindo-a para que possa proteger aqueles que são forçados à fuga, ao mesmo tempo reconhecer o vasto leque de factores que desde sempre levaram os humanos a migrar.
Professor de História na Universidade do Kansas, autor de Familiar Strangers: The Georgian Diaspora and the Evolution of Soviet Empire.
Está a escrever uma história dos desertores soviéticos no período da Guerra Fria.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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