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quinta-feira, 5 de março de 2015

Leviatã ou a Rússia de Putin?

RÚSSIA
5/3/2015, 9:00
CATARINA FERNENDES MARTINS

O novo filme do realizador russo Andrey Zvyagintsev é uma história universal sobre a impossibilidade de escapar a um Estado demasiado poderoso, ou um retrato da Rússia de hoje? 
Talvez as duas coisas

Como um gigantesco tentáculo. 
No final de Leviatã, quando o bulldozer entra pela casa de Kolya adentro, destruindo tudo aquilo que este afirma ter construído com as próprias mãos, o poder corrupto que aos poucos lhe foi minando a vida materializa-se de forma absoluta. 
É a concretização da frase cuspida, entre palavrões, pelo alcoólico autarca ao herói do mais recente filme de Andrey Zvyagintsev. 
“Tu não tens direitos. 
Nunca tiveste nenhum direito. 
Nunca terás”.

Muitos viram nesta declaração o resumo perfeito da Rússia moderna, onde as autoridades, os tribunais e o poder religioso são tentáculos de um Estado monstruoso como a criatura bíblica que deu nome à obra de Thomas Hobbes. 
Andrey Zvyagintsev, considerado um dos melhores realizadores russos da atualidade e já comparado ao cineasta Andrei Tarkovsky, insiste que o enredo de Leviatã, que decorre numa aldeia fictícia no norte da Rússia (o filme foi rodado em Teriberka, perto de Murmansk), podia acontecer em qualquer parte do mundo e que, na verdade, a inspiração para o filme partiu da história de Marvin John Heemeyer, um mecânico do Colorado (EUA) que se suicidou depois de as autoridades locais terem permitido a construção de um edifício que bloqueava a entrada para a sua oficina.

Numa entrevista ao Guardian, Andrey Zvyagintsev, que disse várias vezes não ter feito Leviatã para confrontar o poder político no seu país, acabou por confessar: “Viver na Rússia é como estar num campo minado”
“É muito difícil construir perspetivas – na vida, na profissão, na carreira – se não estamos de acordo com os valores do sistema. 
É uma construção estúpida da sociedade e, infelizmente, é a maldição eterna do nosso território. 
As ideias da igualdade perante a lei, da igualdade de direitos dificilmente são discutidas aqui. 
Existe debate na sociedade, mas não leva a lado nenhum. (…) 
Tenho 50 anos e nunca votei porque tenho a certeza absoluta de que, no nosso sistema, votar é inútil”, acrescentou.

O realizador de Leviatã, Andrey Zvyagintsev

A história de Job

Tal como Heemeyer, Kolya é um mecânico que se vê envolvido numa disputa sobre propriedade. 
A casa onde vive com a família – Lilya, uma mulher mais nova, e Roma, o filho adolescente – parece retirada de um sonho americano, toda revestida a tábuas de madeira esbranquiçada e onde a luz do Círculo Polar Ártico entra por grandes janelas de vidro, iluminando o espaço em tons de prata. 
Comparada aos exíguos apartamentos e às cabanas dos vizinhos e amigos, a residência de Kolya, construída perto do Mar de Barents pela família, assemelha-se a uma casa real. Talvez por isso, Vadim Shelevyat, o autarca, tenha decidido que aquela casa não mais lhe pertenceria. 
Num banquete regado a vodka, o bispo pede a Vadim que se lembre de deus a um ano de eleições. 
“És um patrono generoso”, diz o líder espiritual à autoridade terrena, aflita com a possibilidade de não ser reeleita. 
“Não te preocupes. 
Todo o poder vem de deus”, continua o bispo, tranquilizando-o.

“Ele quer este sítio para construir aqui um palácio”, enfurece-se Kolya, já depois de uma juíza ter disparado, a uma velocidade estonteante, a sentença que determina que o herói que tem ares de rei e recusa favores a polícias corruptos não tem direito à sua propriedade. Nessa noite, um muito embriagado e cambaleante Vadim Shelevyat lembra a Kolya que este perdeu os seus privilégios. 
“Não reconheces a autoridade quando a vês?”

Ao longo do filme, Kolya perde tudo o resto: a lealdade dos amigos, a mulher, a casa e a liberdade. 
Tornou-se claro para Andrey Zvyagintsev que a história de Kolya era, na verdade, a história de Job, cujo desespero é ultrapassado pela obediência a deus, que, em troca, lhe dá uma longa vida. 
Antes de a tragédia de Kolya estar completa, um padre aconselha-lhe a resignação. Depois, o herói caído de Leviatã é condenado a 15 anos de prisão por um crime que não é certo que tenha cometido. 
O autarca celebra a derrota do homem que lutou, em vão, contra o sistema: “15 anos? 
Que bom. 
Isso vai ensiná-lo a saber o seu lugar”.

Kolya durante o julgamento no final de Leviatã

Sob o olhar de Putin

Na primeira vez que a câmara de Zvyagintsev entra no gabinete do autarca Vadim Shelevyat, os olhos dos espectadores só encontram o rosto do presidente russo, Vladimir Putin, cuja fotografia está pendurada na parede
É aí que se decide o destino de Kolya e da sua família. 
É aí que são feitas chantagens e que se elaboram formas de manter o poder. 
“Se eu não for eleito, vocês também sofrem. 
Acabam-se as férias no estrangeiro, as mansões, o dinheiro”, diz Vadim à sua equipa governativa. 
O rosto emoldurado de Putin é a única referência explícita que o realizador faz ao presidente russo (a banda Pussy Riot aparece por duas vezes em pano de fundo), mas talvez os diálogos e as formas de agir das personagens de Leviatã sejam referências implícitas à Rússia de Putin. 
Mesmo que Zvyagintsev não o admita à superfície.

Para Masha Gessen, jornalista russa e ativista dos direitos da comunidade LGBT, atualmente a viver nos EUA, o autarca de Leviatã é a “personificação do Estado russo corrupto contemporâneo”. 
De acordo com Gessen, o filme de Zvyagintsev oferece um retrato “preciso” da Rússia moderna. 
Retrato que se torna cada vez mais verosímil no meio da grave crise económica que o país atravessa. 
“A corrupção, a desigualdade e o sentimento de desespero que estão no centro de Leviatã tornaram-se mais evidentes e pronunciados com o descalabro da economia”, escreveu na New York Review of Books.

Gessen, que é homossexual e mãe de três filhos e saiu da Rússia em 2013 quando as autoridades russas começaram a debater a possibilidade de tirar as crianças dos lares gay, lembra que o contexto em que o filme é estreado no país não está apenas marcado pelos problemas económicos, mas também pela perseguição política. 
Aleksei Navalny, um blogger anti-corrupção e um dos mais conhecidos opositores de Putin, está neste momento a cumprir uma pena de prisão de 15 dias por ter convocado uma manifestação. 
No final dezembro foi condenado a três anos e meio de prisão com pena suspensa. 
No julgamento, Navalny chamou ao regime russo “uma junta que roubou tudo”. 
E nesse tudo inclui-se “qualquer casa privada, qualquer propriedade ou qualquer negócio que um qualquer burocrata tenha querido para si”, escreveu Masha Gessen. 
Entretanto, e já depois da estreia do filme na Rússia, um outro opositor de Putin, Boris Nemtsov, foi morto a tiro em Moscovo.

A jornalista pensa que Leviatã é sobre a certeza que todos os russos têm, hoje, de que “o pior que pode acontecer vai de facto acontecer. 
Tudo aquilo que é belo será destruído”. 
No caso de Kolya, essa beleza materializa-se numa casa onde viveu o seu pai e o seu avô, – algo que seria muito difícil durante a época soviética, uma vez que a propriedade privada não era reconhecida – o que faz dela “um milagre”, nas palavras de Gessen.

Esse milagre não resiste, no entanto, à Rússia de Putin, um país que, segundo Masha Gessen, atravessa uma “nova Idade das Trevas”. 
Os restos de liberdade e propriedade privada que tivessem sobrevivido ao totalitarismo soviético e à ausência de lei do período pós URSS são eliminados”
E é esta teorização da realidade que explica a ficção.

Masha Gessen é uma jornalista russa e ativista dos direitos da comunidade LGBT, fortemente perseguida na Rússia. Gessen, homossexual e mãe de três filhos, deixou o país por temer que o Estado acabasse por lhe tirar as crianças

A jornalista russa Anna Arutunyan, autora do livro A Mística de Putin (Quetzal, 2014) foi até Teriberka, onde Leviatã foi rodado, para perceber se os habitantes desta pequena vila russa (1000 habitantes) se identificaram com o enredo do filme. As opiniões ouvidas variaram. A dirigente local, Tatyana Trubilina, não gostou. “Não gostei. Não entendi o que queria dizer. Mas gostei muito das paisagens. Gostei de ver o nosso povo, a forma como as pessoas representaram”, disse ao Open Democracy.

De acordo com Arutunyan, alguns dos habitantes que não trabalham para o Governo local admitiram que o filme é um retrato honesto do seu quotidiano. Mas todos os entrevistados sublinharam que a história de Leviatã é universal, podendo passar-se em qualquer local do mundo. “A primeira vez que vi o filme, fiquei chocada com tantos palavrões e tanta bebida”, disse Sophia Moroz, uma cozinheira na fábrica de peixe. “Mas depois pensámos sobre ele. O filme mostra a verdade: não somos nada. É assim em todo o lado”, acrescentou. 

Segundo o New York Times, a diocese onde as rodagens decorreram emitiu um comunicado, dizendo que Leviatã era um filme “honesto” e que levantava importantes questões sobre o estado do país.

José Milhazes, jornalista português especialista em Rússia, viu o filme e disse que este era “essencial para compreender determinados aspetos da vida na chamada ‘Rússia profunda'”, sendo uma “obra que vale mais do que muitas análises feitas sobre este país por académicos que não sabem russo, nem estiveram na Rússia o tempo suficiente para compreendê-la”. Tendo viajado pela região onde a história foi filmada, Milhazes diz que Leviatã “é um retrato feio, cruel, duro, mas verdadeiro de grande parte da Rússia”, referindo-se também a Moscovo, que, devido ao seu caráter mais cosmopolita, aparece geralmente como uma cidade à parte dentro do país. Para Milhazes, na capital russa verificam-se as mesmas situações, mas acontecem “em ambientes mais higiénicos”.

“Uma justificação ideológica para o genocídio do povo russo” 

Leviatã venceu o Globo de Ouro para melhor filme estrangeiro de 2014 e era um dos nomeados para a mesma categoria nos Óscares deste ano. No ocidente, as críticas têm sido positivas desde a sua estreia em Cannes, onde foi considerado o melhor argumento, mas na Rússia, os galardões conquistados pelo filme foram pouco mencionados nos meios de comunicação. Artistas, ativistas religiosos e vozes da autoridade atacaram violentamente a obra de Zvyagintsev.

Nos créditos iniciais de Leviatã, uma das primeiras referências vai para o Ministério da Cultura da Rússia, que financiou 35% do orçamento do filme. No entanto, Vladimir Medinsky, o ministro russo da Cultura, recusou estar presente na estreia de Leviatã em Cannes, em maio de 2014, dizendo não ter gostado do filme. “Por mais que os autores tenham feito os atores dizer palavrões e beber litros de vodka, isso não os torna russos verdadeiros. Não me reconheci a mim, nem aos meus colegas, nem aos meus conhecidos em nenhuma das personagens de Leviatã“, disse.

Já depois de o filme estar concluído, a Duma (parlamento russo) aprovou uma lei para banir linguagem obscena nos meios de comunicação, nas peças de teatro e no cinema. A estreia de Leviatã nos cinemas russos foi adiada duas vezes para que o filme pudesse ser editado de acordo com a nova lei e Zvyagintsev retirou os palavrões na versão que seria exibida no país. Estreou por fim no dia 5 de fevereiro, já depois de cópias privadas do filme terem inundado a internet (no dia dos Globos de Ouro foram feitos 30 mil downloads).

No início deste ano, o mesmo ministério criou uma nova proposta que pretende proibir a divulgação de filmes que “denigram a cultura nacional, criando uma ameaça à unidade nacional e ameaçando a ordem constitucional”. No futuro, isto significará que apenas “filmes patrióticos” poderão receber financiamento estatal, como notou o Guardian. Uma proposta que se aproxima da enunciação de Mao, reformulada recentemente por Vladimir Medinsky: “Deixem crescer todas as flores. Apenas regaremos aquelas de que gostamos”.

O ministro russo da Cultura, Vladimir Medinsky

Além do ministro da Cultura, outras vozes se levantaram contra o filme. Um ativista da Igreja Ortodoxa, Kirill Frolov, escreveu no Facebook: “Leviatã é o mal. Não há lugar para o mal no cinema”. Um porta-voz da Igreja Ortodoxa disse, sem ver o filme, que este tinha sido feito, “claramente, para uma audiência ocidental”. Sergey Markov, um analista político próximo do Kremlin, acusou Zvyagintsev de agir sob ordens do Ocidente para criar um manifesto anti-Putin, e disse que o filme é uma “justificação ideológica para o genocídio do povo russo”.

As acusações de que o filme serve os interesses do Ocidente contra a Rússia fazem sentido no contexto de um anti-ocidentalismo crescente na Rússia desde o regresso de Putin ao Kremlin, em 2012, e que se intensificou com o conflito no leste da Ucrânia, como escreveu a revista norte-americana New Yorker. A nomeação de Leviatã como o filme russo candidato aos Óscares, decidida por um comité russo liderado por Vladimir Menshov, um antigo realizador e grande admirador de Putin, não foi consensual. “É um trabalho muito forte”, disse Menshov, acrescentando: “mas é difícil. Baseamos a impressão que temos de um país nos filmes que vemos. Se os estrangeiros virem este filme ficarão com a impressão de que vivemos num sítio horrível. O filme não tem qualquer esperança”.

Como escreveu Masha Gessen, se Leviatã tivesse ganhado o Óscar de melhor filme estrangeiro, o realizador seria vilipendiado na Rússia. Uma espécie de presente amaldiçoado. “Quão desejável é este reconhecimento num país que acredita estar em guerra com os EUA?”, questionou a jornalista.

No blogue “Da Rússia”, José Milhazes escreveu que é precisamente o realismo de Leviatã que alimenta o “ódio dos ‘patriotas'” em relação ao filme, uma vez que estes querem mostrar que o Ocidente “perdeu a espiritualidade”, em oposição a “uma Rússia que não existe: religiosa, sem corrupção, com dirigentes devotados à causa pública e um povo feliz, que pode beber vodka, mas em doses moderadas e de felicidade”. É o tal “renascimento da alma do povo russo” a que se refere o bispo de Leviatã no final do filme, na cerimónia inaugural do novo edifício da Igreja Ortodoxa. Uma construção sumptuosa, mesmo junto ao Mar de Barents.

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