sábado, 23 setembro 2017 14:49
Um episódio no mínimo revelador de que as “maiorias qualificadas” também servem afinal para apagar arquivos e despistar crimes de natureza económica.
Enfim, uma amnistia encapotada...
Por Severino Carlos
Está a causar enorme controvérsia nos meios políticos e sociais do país um despacho do inspector-geral do Estado, Joaquim Mande, que ordena o arquivamento de todos os processos da actividade inspectiva desenvolvida pela Inspecção Geral da Administração do Estado (IGAE) nos últimos quatro anos e meio.
Como é sabido, a IGAE nada mais é do que o órgão auxiliar do Presidente da República, enquanto titular do Poder Executivo, encarregue da inspecção, auditoria, controlo e fiscalização da actividade dos órgãos, organismos e serviços da administração directa e indirecta do Estado.
Exarada a 7 de Setembro último e publicada em Diário da República, a estranha ordem de Joaquim Mande suscitou perplexidade inclusive a reputados juristas.
Pelo menos dois especialistas em Direito Administrativo consultados pelo Correio Angolense consideraram-na “uma medida no mínimo estranha”, já que, nos seus efeitos mais gerais, arquiva completamente todo e quaisquer ilícitos de natureza económica que tenham eventualmente sido detectados pela actividade inspectiva da IGAE no período em questão, entre 1 de Janeiro de 2013 e 30 de Agosto de 2017.
O inspector-geral do Estado, Joaquim Mande, de motu próprio, não estaria em condições de tomar uma decisão de tamanha magnitude
Os juristas, que falaram a este jornal sob anonimato, entendem que Joaquim Mande, de motu próprio, não estaria em condições de tomar uma decisão de tamanha magnitude.
Ele só o faria, disseram os causídicos, contanto tivesse o beneplácito e autorização de um superior hierárquico que, neste caso, é o próprio Presidente da República, nas vestes de titular do Poder Executivo.
Amnistia encoberta
Face ao novo ciclo em que Angola entra após a realização das eleições gerais de Agosto último, marcado pelo surgimento de um novo Chefe de Estado, João Lourenço, os juristas concluem, em última análise, que essa foi mais uma de muitas medidas que têm vindo a ser tomadas pelo Presidente cessante, José Eduardo dos Santos, tendo em vista acautelar os seus próprios interesses e os do regime em geral.
Nesta última acepção – de defesa do “establishment” – o acto em causa teria o efeito de uma derradeira “amnistia” que o presidente cessante estaria a proporcionar, nos seus tempos finais de consulado e mandato à frente do Estado angolano, a “camaradas” que eventualmente tenham sido apanhados nas malhas do inspector-geral Joaquim Mande e “sus muchachos” da IGAE!
Salta à vista o carácter de “última hora” de que se reveste a medida da IGAE.
Ela foi tomada já com José Eduardo dos Santos na condição de Presidente da República cessante.
Joaquim Mande decretou-a a 7 de Setembro, já depois da realização das eleições e um dia após terem sido divulgados os resultados eleitorais pela Comissão Nacional de Eleições.
Mas outro dado ainda mais sintomático é o de que se está diante de uma “operação” premeditada.
Tudo indica que foi necessário criar-se um contexto jurídico visando proporcionar uma espécie de “air-bag” no qual o inspector-geral do Estado se apoiaria para implementar tal medida.
No preâmbulo do despacho, Joaquim Mande faz recurso ao Regulamento do Procedimento de Inspecção da IGAE, que bem se pode qualificar como um normativo criado à ultima da hora, porquanto foi aprovado por decreto executivo presidencial somente a 5 de Julho último.
A questão agora é saber quais os dossiês que a IGAE teve em mãos nos referidos quatro anos e meio e que serão objecto de engavetamento – o que na verdade significa que nesse período terão sucedido eventos e ou processos verdadeiramente graves e constrangedores para o sistema, que demandaram a investigação da estrutura de inspecção estatal, ao ponto de motivarem a necessidade de serem colocados fora do alcance do público e, já agora, da alçada de órgãos judiciais.
E nesse país o que não falta geralmente são más notícias relativas a gravosos casos de desvios de fundos ou tão-somente de gestão ruinosa protagonizados por governantes e altos funcionários ligados a instituições e empresas do Estado.
"Essa foi mais uma de muitas medidas que têm vindo a ser tomadas pelo Presidente cessante, José Eduardo dos Santos, tendo em vista acautelar os seus próprios interesses e os do regime em geral.
Nesta última acepção – de defesa do “establishment” – o acto em causa teria o efeito de uma derradeira “amnistia” que o presidente cessante estaria a proporcionar, nos seus tempos finais de consulado e mandato à frente do Estado angolano, a “camaradas” que eventualmente tenham sido apanhados nas malhas do inspector-geral Joaquim Mande e “sus muchachos” da IGAE!"
Entre vários problemas que terão ocorrido nesse período, um pelo menos se pode destacar.
Foi notícia a instauração de um grande inquérito que o próprio Presidente José dos Santos ordenou que fosse realizado para, supostamente, apurar responsabilidades envolvidas na sequência de um terrível surto de febre-amarela que assolou o país há uns dois anos.
A epidemia, que só não levou as autoridades a decretarem estado de calamidade pública na região de Luanda para evitar os embaraços e constrangimentos que daí resultariam – portanto, razões estritamente políticas –, causou uma mortandade calculada nalgumas centenas de pessoas, isto de acordo com cifras oficiais.
Ficou claro, nessa altura, que o elevado número de vítimas mortais resultara fundamentalmente do habitual descaso das instituições e autoridades, nomeadamente as que devem zelar pelas estruturas sanitárias, como o próprio Ministério da Saúde, e as que têm sob sua responsabilidade a gestão do ambiente e sanidade no meio urbano, casos concretos do Governo Provincial e das Administrações Municipais.
O caos foi de tal ordem que, no clímax do surto epidêmico, a capital angolana esteve quase entupida de lixo e, simultaneamente, faltaram vacinas e outro meios necessários para acudir as populações afectadas nas unidades hospitalares.
Apesar da sindicância mandada instaurar pelo Presidente José Eduardo dos Santos ter tido eco nos órgãos de comunicação, a verdade é que depois da ordem já não se ouviu o que quer que fosse em relação ao seu desfecho.
Algo que é muito comum acontecer em Angola, país onde diligências do género terminam invariavelmente com a culpa a morrer solteira.
De resto, o próprio histórico da IGAE é, nesse particular, muito elucidativo da sua natureza de entidade que existe de um modo geral apenas para caucionar exercícios de charme do regime.
A instituição completou 25 anos e jamais transpirou que da sua actividade tivesse resultado a responsabilização, civil ou criminal, de um alto funcionário do Estado que tenha sido apanhado com as manápulas pregadas na massa, que é tão-somente um dos delitos mais corriqueiros praticados por aqueles que nesse país se encontram investidos de altas funções nos órgãos e entidades da administração pública.
A forma cândida – e o mesmo é dizer pouco enérgica – com que lida com os criminosos económicos está praticamente espelhada na declaração inócua proferida por Joaquim Mande em Janeiro passado quando a IGAE festejava os seus 25 anos de existência: “Nós fazemos a inspecção e depois eles têm um momento em que se pronunciam.
Mas aquilo que está bem feito e objectivamente espelhado nos nossos relatórios é aceite sem grandes relutâncias”, disse na ocasião o inspector-geral do Estado, descrevendo a relação mantida entre a instituição e os departamentos ministeriais que tem a missão de fiscalizar e controlar a nível administrativo.
Via de regra, as conclusões das inspecções da IGAE não são publicitadas, pelo que bem se pode considerar que, na realidade, o arquivamento dos processos que desenvolve é uma prática trivial nessa instituição.
Ao longo dos anos, os casos que saltaram para a imprensa decorreram de vazamentos e fugas de informação que não foi possível controlar.
Um desses casos aconteceu, por exemplo, nos idos de 2004/2005, quando a turma de Joaquim Mande se pôs no encalço do então governador da província do Bengo, no caso Isalino Mendes.
Apesar dessa incursão investigativa aos “aposentos” de Isalino Mendes ter resultado no apuramento de gravosas infracções administrativas e desvios de fundos públicos que tinham tudo para que fosse instaurado um processo-crime contra o governador provincial, certo é que nada disso sucedeu.
Nem sequer ficou claro que Isalino e seus comparsas tenham, ao menos, sido obrigados a restituírem o produto da obra de rapina a que se haviam devotado em Caxito e arredores.
Para que serve, afinal, a IGAE?
Eis uma boa pergunta que apropriadamente os cidadãos se podem colocar numa altura como esta.
Mas convém também levar em conta que práticas do género – que estimulam a impunidade permanente com que tem sido tratado o crime do colarinho branco em Angola – não constitui uma marca exclusiva da instituição dirigida por Joaquim Mande.
O mesmo se passa com/e noutras instituições das quais era esperado que estivessem na linha da frente da actividade do Estado que visasse encurtar o caminho e os passos da corrupção que campeia com uma voracidade inaudita entre nós.
Da Procuradoria Geral da República já muito se tem falado.
Podem citar-se igualmente instituições como o Tribunal de Contas, cujas vocação e serventia não têm passado, pelos vistos, de dar cobertura a toda a sorte de crimes e contravenções que giram em torno da corrupção e seus parentes-chegados.
Percebe-se agora, de resto, por que razão temos os titulares de tais instituições praticamente casados de forma vitalícia com elas.
Joaquim Mande e Julião António já praticamente terão perdido a conta do tempo que já levam à frente da IGAE e do Tribunal de Contas.
São anos a fio, para não dizer décadas, uma situação de perenidade nos cargos que pode significar um “prémio” ao silêncio e à vista grossa que têm feito diante dos crimes económicos que o regime tem cometido.
De resto, é também para garantir semelhantes cumplicidades que o regime precisa desesperadamente e a todo o transe de ter as “maiorias qualificadas” nos processos electivos do país.
E diante de tudo isto dificilmente se poderá deixar de ter como um nado-morto, ou conversa para adormecer meninos de coro, as reiteradas promessas de combate à corrupção a que se entregou durante a campanha eleitoral o candidato João Lourenço a fim de garantir a sua eleição a Presidente da República.
Está mais do que visto que para dar um férreo combate ao cancro da corrupção João Lourenço teria de reformular não só as regras do jogo em todas estas instituições, como também sanear os rostos que nelas já viraram mobiliários e peças decorativas, longe que estão de cumprir o seu real papel.
Correio Angolense
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