Álvaro Santos Pereira esteve dois anos como ministro da Economia e do Emprego ENRIC VIVES-RUBIO
LUÍS VILLALOBOS - 03/12/2014 - 08:39
Álvaro Santos Pereira, ex-ministro da Economia, publica livro sobre a sua passagem pelo Governo, uma visão unilateral que serve para passar a sua mensagem.
Poucos meses de ter sido nomeado ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira publicou Portugal na Hora da Verdade, e, por essa altura, este professor universitário, independente dos partidos, já estava ligado ao PSD, ajudando, nomeadamente, Passos Coelho nas negociações com a troika.
Agora que saiu do Governo, e trabalha na OCDE, é a vez de, como ex-ministro, editar uma nova obra, intitulada Reformar sem Medo, um Independente no Governo.
Editada pela Gradiva, chega esta semana às livrarias.
É um ajuste de contas com a história, e, através do seu olhar, das suas palavras, apontamentos e memórias, somos conduzidos ao interior do executivo formado pelo PSD e pelo CDS, tendo como pano de fundo o plano de trabalhos que liderou enquanto ministro. Ao todo, são 420 páginas, que olham também para o futuro, o qual, diz, tem de passar por “um reescalonamento a longo prazo da dívida dos países europeus mais endividados”. Além disso, defende: “Se não baixarmos os impostos das empresas e das famílias, o país nunca conseguirá atrair investimento significativo.”
Sobre o passado revela os atritos com Vítor Gaspar, sublinha o seu desprezo por Paulo Portas, e enumera, embora de forma pouco aprofundada, a forma como lidou com os lobbies.
Enquanto responsável pela pasta do Emprego, é também surpreendente saber que não confiava nas estatísticas oficiais, tendo compilado os seus próprios dados.
Seguem-se excertos do livro, seleccionados pelo PÚBLICO, sobre alguns dos temas abordados por Santos Pereira.
Sobre ele próprio e o Governo
– “(…) O principal sacrifício dos dois anos de governação foi familiar.
Houve muito menos atenção e muito menos tempo do que eu gostaria para passar com os meus filhos e a Isabel, de modo que eles ressentiram-se e o meu casamento ressentiu-se. Esse foi o verdadeiro custo, ou pelo menos o mais penoso, de dois anos de Governo.”
– “Reflectindo sobre o meu percurso na gestão do maior ministério da história da democracia, penso que parece óbvio que os primeiros meses acabaram por determinar um pouco o resto do meu período no Governo.
O facto de ter sido um independente que entrou para o Governo sem experiência política e sem aliados políticos fez com que tivesse levado tempo a construir coligações e alianças.”
– "(…) Como fazer um contraponto ao ministro das Finanças mais poderoso desde Salazar seria sempre delicado, é de certa forma natural que houvesse uma grande impaciência nos primeiros meses em relação ao ministro da Economia e do Emprego.”
– “Como o ministro das Finanças era quase intocável, e como o líder do segundo partido da coligação preferiu não lidar com a troika e com as razões da crise, o descontentamento sobrou facilmente para aquele que vinha de fora (o 'emigrante'), aquele que não conhecia a realidade do país (o 'estrangeirado'), aquele que não tinha a força política (que, aliás, nenhum outro ministro tinha) para enfrentar as Finanças e a troika.”
– “É verdade, isso sim, que eu não tive peso político para travar a saída da AICEP do Ministério da Economia, um erro que viria a ser parcialmente colmatado com a minha saída e a correspondente entrada do CDS para o ministério...
Sim, é verdade que eu não tive peso político para travar a subida do IVA da restauração, até porque a troika e outros eram a favor de tal subida.
Sim, é verdade que não tive peso político para, durante largos meses, convencer a troika, o Banco de Portugal e o Ministério das Finanças que a falta de financiamento das nossas empresas era o principal risco para o pograma de ajustamento".
– "(…) É caso para perguntar: se, sem peso político, eu e a minha equipa conseguimos tanto, o que é que aconteceria se tivéssemos tido peso político?
A resposta é relativamente simples: a reforma do IRC teria culminado na taxa mais competitiva da Europa, os impostos não teriam aumentado como aumentaram em 2012 e muito menos em 2013, as rendas da EDP teriam sido cortadas ainda mais, a AICEP não teria saído do Ministério da Economia e tínhamos tido mais e melhores mecanismos de financiamento das nossas PME.”
Sobre o desemprego
– “Quando tomámos posse em Junho de 2011, já era mais do que patente que o principal problema social que teríamos pela frente era o enorme aumento do desemprego.”
– “(…) Provavelmente ninguém, nem no Governo, nem na oposição, pensaria que o desemprego iria subir tanto.
Ou, pelo menos, tão depressa.”
– “Porque é que o desemprego aumentou tanto e tão rapidamente, então?
Houve dois factores principais: a contracção do crédito (…) e a severidade da recessão.”
– “Como ficou rapidamente patente que as estatísticas existentes não eram muito realistas, decidimos fazer as nossas próprias estimativas para os meses seguintes, tendo em linha de conta a contracção do crédito (que, recordo, alguns negavam estar a acontecer) e o quase colapso do sector da construção.”
“Quando chegaram os resultados, foi imediatamente evidente que as nossas previsões eram bastante mais pessimistas do que as estatísticas oficiais.”
Sobre a troika
– “A chegada da troika foi fundamental para evitarmos a bancarrota e cair numa situação de colapso financeiro, bancário, orçamental e económico, o que teria tido consequências sociais desastrosas.”
“(…) Ainda assim, isto não quer dizer que tudo o que seja relacionado com a troika esteja certo ou deva ser aceite por nós passivamente.”
– “O crédito para as PME caiu mais de 20 mil milhões de euros, o que corresponde a uma quebra de quase 15% do crédito registado no início de 2011.
Uma redução brutal e brusca do financiamento, que acabou por matar muitas das nossas empresas endividadas, muitas delas desnecessariamente.
(…) Durante meses eu e a minha equipa tentámos por todos os meios alertar a troika, o Ministério das Finanças e o próprio Banco de Portugal para a calamidade que estava prestes a acontecer.
E se estes dois últimos acabaram por reconhecer o problema (até devido à grande pressão que o próprio primeiro-ministro começou a exercer), a verdade é que a troika nunca se mostrou realmente preocupada com o assunto, pelo menos até muito tarde no programa de ajustamento.”
– “[A] ausência de estímulos fortes ao investimento foi (e é) um dos grandes erros do memorando original.”
“(…) E se o Governo de Sócrates não teve a competência nem a visão para colocar este tipo de incentivos ao investimento no memorando, a verdade é que tanto a ortodoxia do Ministério das Finanças no XIX Governo como a intransigência da troika impediram que esses incentivos pudessem avançar nos dois anos seguintes.
Um erro, como é óbvio.”
– “Infelizmente, o funcionamento da Concertação Social foi algo que a troika nunca percebeu muito bem, o que é natural, pois esta é uma instituição portuguesa com as suas naturais especificidades.”
Sobre as rendas da energia
– “Encetámos uma série de negociações com os produtores eléctricos para tentar chegar a acordo em relação aos cortes das rendas excessivas, algo que seria sempre difícil, mas que teria de ser tentado.
(…) Infelizmente, o ministro das Finanças não concordou, pois não queria que nada pudesse pôr em causa o encaixe da privatização da EDP (…).”
– “Nos dias que se seguiram, o secretário de Estado Henrique Gomes falou comigo e pediu a demissão do Governo, pois entendia que não tinha condições políticas nem anímicas para continuar.”
– "[Mais tarde] Artur Trindade [o novo secretário de Estado da Energia] e a sua equipa concentraram-se em encontrar soluções para os cortes das rendas da energia.
Só que desta vez eu achei que devia também ter mais apoios para conseguir ir para a frente com esses cortes.
E o melhor apoio que poderia ter era a troika, que também estava empenhada em cortar as rendas excessivas do sector.
Só que as coisas teriam de ser feitas nos bastidores e sem levantar suspeitas de que estávamos a preparar uma nova investida contra os poderosos interesses do sector.
Assim, falei privadamente com os chefes de missão (…), encetámos inúmeras reuniões e contactos com todos os produtores de energia sob o pretexto de a troika estar a ser muito 'fundamentalista' sobre o assunto.
Dissemos-lhes ainda que, se eles não concordassem com as nossas propostas de cortes, era provável que a troika acabasse por ser ainda mais dura com eles.”
– (…) Pois quem ousa lutar contra os interesses instalados no sector da energia pode ter a garantia mais do que absoluta de que o resultado será certamente ataques nos jornais e nos restantes meios de comunicação social.
Basta lembrar que mais de um quarto da publicidade existente nesses meios de comunicação é feita, directa ou indirectamente, pelos produtores de energia.
(…) O ataque contra quem ousar lutar contra estes interesses instalados nunca acontece directamente, nem apareceria ligado à questão da política energética.
E nós sabíamos isso perfeitamente.
(…) Meu dito, meu feito, pois, menos de uma semana depois, os jornais anunciavam uma guerra sem tréguas entre o Ministério das Finanças e o Ministério da Economia por causa da gestão do QREN, e que Vítor Gaspar tinha ganhado.
Surgiu então todo o tipo de especulação, de maneira que nos dias seguintes um jornal anunciou que eu me tinha demitido. Uma notícia totalmente falsa (…).
Sobre os lobbies
– "Se há algo que me orgulho de ter feito durante a minha governação foi a luta contra os lóbis e os interesses instalados."
– "(…) Tenho a certeza de que os lóbis contra quem lutei também abriram garrafas de champanhe ou comemoraram quando eu saí da Horta Seca.
Espero que seja sol de pouca dura."
– “Não tenho ilusões quanto a haver ainda muito para fazer na luta contra os interesses e contra os lóbis no país.”
– “Nos próximos tempos, é absolutamente vital que os governos mantenham e até reforcem o combate contra os lóbis e os grupos de interesse em Portugal.
É igualmente fundamental que uma estratégia anticorrupção seja proposta e consensualizada entre os principais partidos portugueses, de forma a acabar com os comportmentos menos transparentes, por vezes altamente lesivos do interesse público.”
– “Uma outra questão relacionada com as privatizações tinha a ver com as rendas da energia.
(…) Eu próprio tive alguns colegas de governos europeus a relembrarem-me ser importante não nos esquecermos da solidariedade que tínhamos recebido da Europa, solidariedade que devia ser reconhecida nos processos de privatização.
Confesso que achei essas 'lembranças', no mínimo, indecorosas. (...)”
“O termo do processo de privatização da EDP teve lugar no final de 2011 e a proposta chinesa foi de tal forma superior às restantes que não suscitou grande polémica em Conselho de Ministros.
Só um ministro se opôs e mostrou preferência pelo projecto alemão, tal como, lamentavelmente, foi revelado pela comunicação social na manhã seguinte.”
– “(…) Um dos membros da minha equipa foi abordado por um representante dos produtores da energia que lhe disse que, como sabia que estávamos muito ocupados e não tínhamos recursos, eles próprios poderiam fazer as transposições de directivas e que depois nos entregariam as leis para fazermos o que entendêssemos.
Pelo que parece isso já tinha acontecido no passado.
Como é óbvio, nós agradecemos, mas declinámos a 'gentileza'."
– “Outro dos dossiês que fui aconselhado por muita gente a deixar de lado foi o das contrapartidas militares.
Porquê?
Porque o tema das contrapartidas foi sempre bastante controverso, envolvendo inúmeras suspeitas e acusações de corrupção e de financiamento partidário.
Por isso, para muitos, esse era um assunto era proibido.”
– “[Houve casos em que] tivemos de enfrentar com determinação as reivindicações sindicais.
Como já disse, a minha atitude foi sempre de grande disponibilidade para o diálogo.
Porém, também estive sempre pronto a ir para a guerra quando as demandas dos sindicatos não eram razoáveis ou quando o país era posto sob chantagem por esses sindicatos.
Por isso, ao longo dos dois anos, tivemos ainda inúmeros conflitos mais ou menos públicos com os sindicatos dos transportes públicos, da TAP, dos estivadores, bem como outros sindicatos sectoriais.
(…) Perante uma ameaça de chantagem, a nossa reacção foi sempre abertura para o diálogo, mas não ceder às ameaças.
E foi assim que conseguimos debelar praticamente todas as crises e embates que tivemos com o movimento sindical.
Tivemos ainda de enfrentar inúmeras manifestações, principalmente organizadas pelos sindicatos mais afectos ao Partido Comunista, algumas das quais poderiam ter facilmente ficado um pouco fora de controlo.”
– “Um dos outros grupos de interesse que foram alvo de uma reforma alargada levada a cabo pelo Ministério da Economia e do Emprego foram as Ordens e Câmaras Profissionais. Mais uma vez, esta alteração só pôde ocorrer por o Emprego estar junto com a Economia. As razões para esta reforma são relativamente simples de explicar.
Nos últimos anos, houve uma proliferação desmesurada de Ordens e Câmaras Profissionais, bem como uma regulamentação excessiva de muitas profissões.”
– “(…) Como é nosso costume, passámos do 8 ao 80 e, aos poucos e poucos, demos um poder excessivo aos ambientalistas, principalmente no que diz respeito às suas facções mais extremistas.
Assim, ao longo dos anos, revimos legislação para ambientalistas, mas demos uma primazia exagerada aos excessos dos mais radicais em detrimento do desenvolvimento económico.
(…) Defender o Ambiente não é sinónimo de impor metas ambientais irrealistas ou regulamentações e burocracias excessivas.
Mas foi exactamente isso que se passou em Portugal nos últimos anos.”
Sobre Paulo Portas
– “A crise política de 2013 ficou na memória dos nossos parceiros internacionais e será sempre um elemento de incerteza perturbadora na longa caminhada para restaurarmos plenamente a nossa credibilidade.”
– “Senti que a Pátria tinha sido traída e que o país tinha sido atirado à lama.
E pensei que tínhamos acabado de deitar o trabalho dos últimos dois anos para o lixo.”
– “Para mim era óbvio que a exoneração de Vítor Gaspar era totalmente distinta da demissão de Paulo Portas por uma simples razão: enquanto Gaspar (por muito poderoso que tivesse sido) era um independente que poderia ser substituído, Portas era o líder do segundo partido da coligação governamental.
Assim, a demissão do líder do CDS poderia significar o fim do Governo e eleições antecipadas.”
– “O ministro [do CDS] disse que as coisas estavam muito mal entre os dois partidos, que não havia confiança entre eles e que o melhor mesmo era o CDS sair do Governo e haver um acordo de incidência parlamentar até ao final da legislatura.”
– “Saí de Berlim convencido de que era muito provável que Paulo Portas reivindicasse para si o Ministério da Economia, não só porque essa era uma ambição sua desde o primeiro dia, mas também porque era preciso desviar as atenções sobre o dano que tinha sido causado ao país.
Acontecesse o que acontecesse, eu tinha decidido e tinha comunicado à minha família que não havia condições para continuar no Governo, se Paulo Portas permanecesse no executivo.
Há limites que não devem e não podem ser ultrapassados."
– “(…) A conversa com o primeiro-ministro [no momento de saída do Governo] foi bastante cordial e esclarecedora.
(…) Só achava que o Ministério da Economia e do Emprego devia ter ido para o PSD.
Dar tudo e mais alguma coisa a quem tinha feito o que fez não tinha sentido.
Como já disse, um princípio básico quando se está sob chantagem é que nunca se deve ceder.”
– “No encerramento do debate do Estado da Nação de 11 de Julho mantive a minha compostura e fiquei sentado a ouvir o discurso de alguém que fez o que fez ao país.
E que ainda teve a coragem de citar Sá Carneiro para dizer que o interesse do país estava à frente dos interesses partidários e que estes estavam à frente dos interesses pessoais. Quando tinha feito exactamente o contrário.
Confesso que a decisão de assistir a esse discurso foi dos momentos mais difíceis que tive nos dois anos de governação.
– "Eu sei que política é política.
E que, por vezes, é preciso engolir sapos para atingirmos os nossos objectivos.
Contudo, há limites.
Por isso, uns dias mais tarde, no debate da moção de censura apresentada pelos Verdes, quando a presidente da Assembleia da República anunciou que Paulo Portas ia discursar, eu saí do hemiciclo e só reentrei quando o discurso acabou.
Na tomada de posse dos novos ministros optei igualmente por não ir, pois recusei-me a apertar a mão a alguém que tinha feito algo tão prejudicial para o país.”
Sobre a dívida pública
– “Não é com os programas de ajustamento actuais que vamos lá.
Podemos até ganhar algum tempo, mas não é assim que debelaremos a situação.
E se os programas de ajustamento não resolvem definitivamente o problema da dívida, o que é que se pode fazer?
Como poderá ser resolvido todo este elevadíssimo endividamento?
Sinceramente, penso que a crise da dívida europeia só será resolvida com um reescalonamento a longo prazo da dívida dos países europeus mais endividados.”
Sobre a crise
– "(…) Para que seja possível sair da crise mais rapidamente, não tenho a menor dúvida de que:
1) terá de haver uma solução europeia para resolver a crise da dívida;
2) terá de haver reescalonamento dessa mesma dívida;
3) teremos de continuar a diminuir a despesa do Estado nos próximos anos e fazer uma verdadeira reforma da Segurança Social;
4) teremos de continuar a consolidação e a contenção orçamentais no futuro próximo;
5) terá de haver uma estratégia de fomento industrial e económico relativamente consensualizada entre os principais partidos políticos e forças sociais;
6) terá de haver uma continuação da aposta nos sectores produtivos e no aproveitamento dos nossos recursos naturais.
E, claro, teremos de continuar a investir na educação, na inovação e na formação profissional virada para o contexto de trabalho.
Ao mesmo tempo, e para reanimarmos a economia e atrairmos mais investimento, é fundamental baixarmos os impostos e cortarmos a burocracia do Estado central e local.
Se não baixarmos os impostos das empresas e das famílias, o país nunca conseguirá atrair investimento significativo.
É tão simples como isso."
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