CORRUPÇÃO Democracia Política
Rui Verde
7 de Maio de 2018
Um certo frémito percorreu a imprensa angolana a propósito de umas peças que a revista inglesa The Economist publicou sobre Angola – mais precisamente, um editorial e um artigo de fundo.
A revista The Economist é talvez a publicação mundial mais importante sobre assuntos políticos e económicos.
Vende acima de 1,5 milhões de exemplares, e é lida pelas elites governantes e financeiras de todo o mundo.
Pode-se discordar ou concordar com o que lá vem escrito, mas sabe-se que os seus artigos têm impacto e que os seus argumentos têm de ser equacionados e discutidos.
Em Angola, estes artigos da revista inglesa foram referidos como trazendo essencialmente uma mensagem: “Reformas de João Lourenço elogiadas, mas é preciso continuar”.
Na realidade, porém, a mensagem é bem mais complexa e profunda, e dá-nos um mote para reflectir sobre o caminho futuro do país.
“If any country ever needed a fresh start, Angola does”, abre o editorial da Economist. Se algum país precisa de um novo começo, Angola é um deles.
Segue-se uma breve descrição da situação económica angolana: crescimento estagnado, vasta dívida à China, inexistência de indústria exportadora, débito público a galopar, burocracia e ineficiência administrativa.
A tudo isto se alia o sistema clientelar de protecção da oligarquia.
Se do ponto de vista económico é esta a herança devastadora deixada a João Lourenço, do ponto de vista dos direitos humanos, a revista anota os ataques à liberdade de expressão, traduzidos no julgamento de Rafael Marques e Mariano Brás, encarado como um assalto à liberdade de imprensa.
Uma sombra que paira nas intenções democratizadoras de João Lourenço.
É neste âmbito – em que Angola é considerada mais corrupta do que a Nigéria e com uma mortalidade infantil superior à do Afeganistão – que se coloca o desafio a João Lourenço.
E aqui a revista considera que ele começou bem e surpreendeu positivamente, mas levanta várias dúvidas:
a) João Lourenço limitou-se a trocar os filhos do ex-presidente pelos seus novos homens de confiança?
b) O julgamento de Rafael Marques e Mariano Brás não representa a continuação do ataque à liberdade de imprensa?
c) Não deveria ser efectuada uma auditoria à dívida pública, para se perceber onde foram parar os 640 biliões de dólares que Angola recebeu desde 2002?
d) João Lourenço está aliado à oligarquia que roubou Angola, e em caso negativo, tem força para a enfrentar?
Consequentemente, este artigo apoia e saúda as primeiras medidas de João Lourenço, mas coloca a questão que cada vez mais intriga os angolanos: para onde vai João Lourenço?
Estará ele a preparar um novo começo ou limita-se a olear as ferramentas para a sua ditadura?
De facto, é mesmo preciso um novo começo.
A situação em Angola degradou-se a tal ponto com José Eduardo dos Santos, que o país deixou de ser um Estado soberano, para se tornar propriedade privada de uns poucos dirigentes que se apoderaram das prerrogativas públicas do Estado para fazer os seus negócios.
Deu-se aquilo que na África do Sul se chama a “captura do Estado”.
Nessa medida, há que reinventar o Estado angolano, como um Estado soberano em que a res publica (coisa pública) seja o objectivo essencial; em que deixe de imperar a res privata (coisa privada), ou seja, os negócios dos filhos do presidente e outros aliados.
Um novo começo implica começar do zero e encarar de frente os assuntos do passado. Logo aqui se levantam mais dúvidas.
Já se referiu várias vezes a preferência que está a ser dada a Manuel Vicente relativamente aos seus assuntos criminais com Portugal.
Não se percebe a razão por que o Estado angolano está a lançar o seu peso por detrás de uma das figuras da corrupção angolana.
Como combater a corrupção em Angola, se Manuel Vicente é protegido?
E nenhuma investigação se inicia em relação ao general Kopelipa ou ao general Dino, também eles rostos da corrupção presidencial nos tempos de José Eduardo dos Santos. Há que ser claro: sem confrontar este trio, qualquer enunciado de João Lourenço sobre combate à corrupção assemelhar-se-á a uma mera cosmética para enganar os líderes internacionais e obter acesso aos dólares, cada vez mais rarefeitos no mercado angolano.
Outro exemplo preocupante e que pode indiciar que a política de João Lourenço não passa de cosmética é o tratamento que está a ser dado aos casos Sonangol, 500 milhões e Fundo Soberano.
No primeiro caso, tivemos um membro destacado da estrutura do Estado, Carlos Saturnino, presidente do Conselho de Administração da Sonangol, a fazer acusações que, a serem verdade, consubstanciam materialmente a prática de crimes por parte de Isabel dos Santos e outros.
Isto passou-se em Fevereiro de 2018.
Estamos em Maio de 2018 e nada aconteceu do ponto de vista das instituições judiciais. Obviamente, tal não é aceitável.
No caso dos 500 milhões, o ministério das Finanças emitiu um comunicado de uma gravidade extrema para José Filomeno dos Santos, filho do anterior presidente da República.
Contudo, depois de este ter sido constituído arguido, nada mais aconteceu.
No mínimo, dever-se-ia ter ouvido o ex-presidente da República como testemunha.
No caso do Fundo Soberano, anda-se a congelar as contas da empresa Quantum Global, gerida por Jean-Claude Bastos de Morais pelo mundo fora.
Contudo, o congelamento de contas, por si só, não é nada.
É uma medida cautelar que tem de ser explicada e seguida por acções judiciais de fundo, que responsabilizem as pessoas com as contas congeladas.
No meio de toda a actividade judicial, o único julgamento que prossegue a todo o vapor é o de Rafael Marques.
Uma bizarria que demonstra que a retórica não coincide com a realidade.
Este embuste durará dois ou três anos, e depois será descoberto.
Angola cairá novamente na angústia em que se tem encontrado.
Lembremos a história de África após as independências.
A década de 1960 foi chamada de década da esperança.
Esperava-se que os novos países jovens e idealistas funcionassem como faróis vibrantes para o desenvolvimento dos povos.
Uma grande alegria percorreu o continente.
Infelizmente, a ressaca veio depressa e, na década de 1980, a maior parte dos países alegres e independentes dos anos 60 estava falida e governada por ditadores mais ou menos sanguinários, mais ou menos loucos.
A falta de dinheiro obrigou a pedir ajuda ao FMI e ao Banco Mundial, que vieram com as suas receitas económicas e os seus requisitos políticos de democracia e boa governação. Contudo, a maior parte dos ditadores africanos fingiu que implementava reformas políticas, criou uns simulacros de democracia, mas manteve as suas atitudes autoritárias.
Foi criada uma espécie de democracias de fachada, sem correspondência com a realidade. Tal atitude levou muitos países ocidentais a considerarem África um caso perdido, o que, na prática, abriu portas à influência chinesa, cujas verdadeiras consequências ainda desconhecemos.
João Lourenço pode estar simplesmente a imitar os ditadores dos anos 80, criando uma fachada democrática para obter empréstimos do FMI e outras ajudas externas, não trazendo qualquer melhoria para o seu povo.
Por isso, mais do que nunca, a sociedade civil e a comunidade internacional devem manter-se atentas.
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