JUSTIÇA Política
Rui Verde
11 de Maio de 2018
Há muito aguardado, saiu finalmente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relatado pelo desembargador Cláudio de Jesus Ximenes, datado de 10 de Maio de 2018, referente ao processo-crime instaurado em Portugal contra Manuel Vicente.
Este acórdão merece um comentário jurídico e dois comentários políticos.
Do ponto de vista jurídico, o resultado do acórdão é o esperado: o processo contra Manuel Vicente é delegado a Angola, que lhe deverá dar continuidade, nos termos da sua lei.
Esta marcha processual terminará provavelmente de supetão, em virtude da Lei da Amnistia angolana, ou nem sequer começará, devido à cláusula constitucional dos cinco anos de dilação de qualquer acusação contra um presidente da República ou vice-presidente da República (art. 127.º da CRA, por força do artigo 131.º).
Relativamente a esta última possibilidade, embora a nossa interpretação seja que a dita cláusula não se aplica à situação de Manuel Vicente, a verdade é que o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que sim e, nesse sentido, estendeu um manto protector sobre o antigo presidente do Conselho de Administração da Sonangol (cf. acórdão, p. 53).
Poder-se-ia elaborar bastamente sobre o conteúdo jurídico do referido acórdão e discutir várias das suas restantes premissas.
Contudo, do ponto de vista legal, o mais importante a referir é a afirmação, recorrente no acórdão, de que Angola e Portugal são Estados baseados na dignidade da pessoa humana (cf. acórdão, p. 53).
É esta a base fundamental que consubstancia a decisão judicial – uma bofetada no povo angolano e em todos aqueles que têm combatido pela democracia, pelos direitos humanos e contra a corrupção em Angola.
Talvez se o juiz português fosse confrontado com os inúmeros detidos em prisão preventiva nas cadeias de Luanda, muitos anos depois de terem passado os prazos para a sua libertação (ver aqui e aqui) ou lesse o relatório de Rafael Marques sobre as execuções extrajudiciais em Luanda, ou, ainda, se passeasse pela morgue de Luanda, percebesse então que a dignidade da pessoa humana não é critério para nada em Angola.
Não basta escrever palavras na Constituição.
É necessário ver a sua consubstanciação real.
Quando afirma que Angola é um Estado baseado na dignidade da pessoa humana, o juiz português ofende todo o povo angolano, que sofre, que labuta, que luta.
Na realidade, porém, o facto é que esta decisão judicial é essencialmente política.
A magistratura portuguesa, mais uma vez, foi sensível a argumentos políticos.
Já descrevemos variadas vezes a história de deferência do poder judicial português para com os interesses angolanos, pelo que não adiantaremos aqui muito mais sobre o tema.
A consequência a retirar é que compete, em definitivo, ao povo angolano bater-se por um sistema de justiça independente e imparcial em Angola, face à impossibilidade de contar com outros países.
O segundo aspecto político é que esta decisão judicial representa, obviamente, uma vitória ampla de João Lourenço, que tem, pelo menos, duas vertentes.
Vitória sobre Portugal.
Angola demonstra o seu poder e capacidade de vergar Portugal, país cada vez mais dependente de interesses económicos e financeiros.
Ao vergar Portugal, Lourenço consolida o seu poder e popularidade internamente.
No fim de contas, é o homem que bateu o pé à antiga potência colonial e venceu.
Isso fará de Lourenço, também, um herói popular, uma espécie de Rainha Ginga dos nossos tempos.
Portanto, temos uma vitória em toda a linha para o Governo de Angola.
Obtém o que quer, e mostra a sua força, interna e externamente.
E, no entanto, que benefício retirará disso o povo angolano?
Manuel Vicente sairá impune, a ideia de combate à corrupção em Angola mostrar-se-á vazia e sem conteúdo, e um novo Grande Homem-Forte (João Lourenço) impor-se-á cada vez mais.
É isto que queremos?
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