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quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A “guerra civil fria” que a Rússia tenta acabar

100 ANOS DA REVOLUÇÃO RUSSA
Manuel Carvalho,
Em Moscovo 1 de Novembro de 2017, 9:03
Lenine e Estaline ou nem Lenine nem Estaline. 

O extremismo da era soviética deixou marcas e uma Rússia quer apagá-as com engenharia aplicada à História: viver o bom, apagar o mau. 

Mas há imagens que impedem o esquecimento da revolução. 

Como um grupo de rapazes num museu de Moscovo.

Algures a meio de uma visita ao museu, um grupo de rapazes com seus seus 12 anos de divulgação e pesquisa sobre uma enorme fotografia colada na parede. 
Aí, uma família de camponeses russos fotografados poucos anos antes da "Grande Revolução Socialista" de 1917 expõe com crueza condição de vida nos campos da Rússia nos tempos do czar Nicolau II. 
Os rostos são magros. 
O olhar cavernoso. 
Os cabelos enriçados. 
As roupas, umas calças remendadas e uma túnica tradicional, indigentes. 
Os pés estão descalços e, pelo que se percebe entre uma falta de nitidez da imagem, sujos. 
Os rapazes perdem uma atenção naquela imagem e não nas metralhadoras, nas fardas, nas tarjas coloridas ou nos cartazes esteticamente ousados ​​com que se fez e celebrou a revolução. 
O Museu da História Contemporânea da Rússia, o que é mais importante e o que é mais conhecido como o mundo desconhecido: o da miséria absoluta do tempo dos czares. 
Ou, por outras palavras, uma força motriz da Revolução.

Vladimir Legoida está longe de ser um dos entusiastas da insurreição, mas é capaz de entender o apelo à indignação daquela imagem no contexto daquela exposição, entre outros objetivos, pretende "ajudar uma sociedade contemporânea a tirar lições da História". Vladimir, formado em Relações Internacionais e Pós-Graduado em Ciência Política com um sobre um religião civil nos Estados Unidos e diretor do departamento de comunicação do Sínodo Sagrado da Igreja Ortodoxa da Rússia e percebe que na origem da revolução viu uma vontade de "trazer (em 1861), que os condenava a dependerem dos proprietários nobres, que são negados os mais cultos direitos de autor (em 1861) Cívicos, que os condenava a ciclos perpétuos de pobreza. 
Não havendo um problema com as causas das revoltas que entre Fevereiro e Novembro de 1917 derrubaram um regime com 300 anos e criaram a primeira república "popular" do mundo, o que falta para uma Rússia se orgulha do seu maior contributo para a História europeia (com a sua influência decisiva na derrota alemã em 1945) de sempre?

O problema não é o que falta, mas o que existe. 
E não inconsciente colectivo da Rússia existe Lenine e existe Trotski e existe Lavrenti Beria (o implacável carrasco do KGB) e existe Estaline. 
"Há quem diga que ainda vivemos uma espécie de guerra civil fria entre brancos (os apoiantes da Igreja e da monarquia derrotados) e os vermelhos", diz Vladimir Legoida. 
Mas esse não é o único problema. 
Mesmo entre Lenine e Estaline há divergências de opinião a provar que na complexa História russa do século XX tudo está longe de ser fácil. 
"A sociedade mudou de posição nos últimos dez anos na sua avaliação de Lenine e de Estaline", diz Konstantin Mogilevskiy, historiador e membro da Diretoria da Sociedade Histórica da Rússia (que Presidente Vladimir Putin indicou para organizar o programa da efeméride). 
Pessoas como ele, que nasceram depois das denúncias da barbárie de Estaline, no XX Congresso do Partido Comunista, em Fevereiro de 1956, aprenderam que "Lenine fez muitas coisas boas para a Rússia, ao contrário de Estaline".

Agora, porém, continua Konstantin Mogilevskiy, como opiniões mudaram. 
Lenine mudou a Russia personificada no retrato que prendeu a atenção dos rapazes no museu, mas hoje é uma realidade diversa do passado vagamente remoto. 
Estaline, pelo contrário, continua a ser ainda para as gerações mais velhas a personificação de um tempo mitificado. 
"Ele representa para muitos anos de juventude", repara Mogilevskiy. 
Fosse por convicção ou por anos sucessivos de propaganda e lavagem ao cérebro, alguns dos russos que nasceram nos anos de 1930 e 1940 não são o seu funeral. 
E, mais importante do que isso, Estaline é o rosto do momento em que é uma Rússia que funciona no estado de superpotência. 
"As pessoas estão a mudar como as suas opiniões sobre as réplicas em massa", como tristemente famosas purgas que assassinaram milhares de opositores no final dos anos de 1930. 
Mas, por outro, Estaline "é o grande vencedor da II Guerra Mundial", nota o historiador.

Para um país que depois do czar Pedro, o Grande (1672-1725) sempre teve como primeira ambição afirmar-se como uma potência europeia, esta vitória tem um peso incomparável. 
O dia 8 de Maio, dados da capitulação da Alemanha, é uma grande festa nacional. 
O Dia em que como tropas vindas do Leste foram enviadas para travar o avanço dos alemães que estão ao alcance das portas de Moscovo é outro feriado (4 de Novembro). 
A outrora designada como "Grande Guerra Patriótica" talvez seja o único momento da era soviética que não divide como opiniões, o que colocar Estaline em posição confortável para ser acolhido nos discursos oficiais. 
"Temos de aceitar a nossa História como ela é, como suas grandes vitórias e como suas páginas trágicas", dizia esta semana Vladimir Putin na inauguração do Mural do Pesar que homenageia os milhões de vítimas das purgas, das formas de importação ou exportação de empresas e letais de dissidentes na Sibéria.

É esta a razão principal para o evento, que é o principal responsável pelo desenvolvimento de eventos. 
"Não se trata de uma celebração. 
O que nos importa é um reflexão sobre o acontecimento de facto ", diz Konstantin Mogilevskii, ainda que é uma tomada de poder na sequência de uma revolta de operários e de soldados para um campo minado para a procura de factos. 
Vladimir Legoida vai mais longe: "Nós não usamos a palavra celebração, dizemos que está em causa é um dado muito importante da nossa História, que mudou a vida na Rússia e influenciou todo o mundo", precisa. 
Ao despir o centenário da revolução de qualquer tipo de objeto, ao esvaziá-la de qualquer análise subjetiva, o Comité Organizador pretende essencialmente deixar o campo aberto para uma ciência (a História). 
Uma tarefa difícil.

"Queremos é evitar o que se fazia nos tempos soviéticos, quando a visão da História, o que aconteceu era exatamente a visão que eles queriam", diz Konstantin Mogilevskii. ~
"Agora, não é assim: o programa da organização é determinado pelo comité organizador. 
O governo não é o responsável, diz o historiador especializado sem mandado de Piotr Stolipin, um primeiro ministro reformista que acabaria assassinado em Setembro de 1911. De resto, acrescenta Konstantin, "o próprio presidente da Sociedade Histórica da Rússia notou que, pela primeira vez em muitos anos, não é o governo a dizer como se desenvolvia o passado ". 
O presidente, Sergei Nariyshkin, não é um historiador. 
Preside à Sociedade Histórica e lidera do SVR, um serviço de informações e de divulgação próximo do ministério dos Negócios Estrangeiros.

Todo este esforço de redução de uma revolução a factos assépticos denuncia uma tentativa de evitar atritos. 
Mesmo uma Igreja Ortodoxa, uma das principais vítimas da perseguição soviética, ensaia um discurso conciliador sempre que fala do estalinismo ou da revolução. 
Na sua intervenção ao lado de Vladimir Putin na inauguração do Mural do Pesar, o Patriarca dos Ortodoxos, Cirilo I, uma pergunta: "Porquê aconteceu esta tragédia no século XX?". 
E uma resposta: "Porque não se pode construir uma sociedade feliz sem Deus". 
E ficou por aqui. 
Por muito que a ligação da cúpula ortodoxa à herança dos czares seja conhecida, "não podemos pintar toda uma história soviética apenas com núcleos negras. 
Também há boas coisas ", diz Vladimir Legoyda.

Para evitar dissídios entre estas duas franjas da sociedade russa que, afinal, resistem barricadas há mais de um século, o melhor mesmo seria juntá-las na organização dos eventos. 
O número de membros do comité ronda os 60, de historiadores a artistas, gente da cultura e da sociedade civil. 
Como é a sua regra de criação excluída dos políticos, não há nomes formalmente indicados nem pelo Governo. 
Nem pelo Partido Comunista, que organizou na Frente de Esquerda promete fazer uma comemoração própria dos eventos. 
Não é essencial, porém, o objetivo "é pegar nas coisas boas do passado e projectá-las para o futuro", diz Legoida. 
"Não podemos deixar que como divisões do passado passados ​​continuem a existir na vida dos nossos filhos", acrescenta.

Esse ideal purificado, despido de atritos e de clivagens, é o melhor que serve uma ambição da Rússia Sagrada, essa velha identidade que germinou na Moscovo original, consagrou-se com os Romanov, resistiu à era soviética e renasce na era de Putin. 
Vladimir Legoyda nota que a igreja ou os seus ministros "não podem fazer política", mais do que o conceito sagrado e ideal delineado pela identidade cultural, sem dúvida, no poder espiritual da Catedral de Kazan e o poder político do Kremlin. 
O governo da igreja já não é procurado pelo poder (quem manda é o Patriarca), mas nenhum exercício do poder do Estado permanente é uma ideia antiga do "bom czar". 
"Ao contrário do que acontece não Ocidente, na Rússia, quem é vendido como uma espécie de" pai da Nação ", não como um gestor eficaz e competente", diz Vladimir Legoida. 
Seja um czar, seja um comissário do povo ou um presidente.
Não gigante euroasiático, essa figura paternal associada ao poder atravessou três regimes num século e permanece real. 
Será eterna? 
Aí, vale a pena regressar à fotografia da família miserável de camponeses exposta no "Código da Revolução". 
A Rússia, de acordo com um relatório do banco Credit Suisse de 2015 é, entre como economias desenvolvidas, mais desigual do mundo, na qual 10% mais afluentes dominam 87% de toda a riqueza nacional. 
Para quem procura lições na Revolução para projetar o futuro, talvez este facto seja um bom começo. 

manuel.carvalho@publico.pt

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