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terça-feira, 12 de abril de 2016

"O MPLA sempre tratou os dissidentes da pior forma" - 27 de maio de 1977 em Angola - 2ª parte da entrevista com Dalila Mateus

Deutsche Welle
ANGOLA
12.05.2012


Vamos tentar perceber os contornos internos e externos da perseguição violenta dos chamados "fraccionistas" pelo MPLA de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, durante a qual morreram milhares de pessoas.
início da retirada dos cubanos de Angola em 1989

A historiadora portuguesa Dalila Mateus publicou com o seu marido Álvaro Mateus o livro “Purga em Angola” sobre este episódio da história angolana. 
Nesta segunda parte da entrevista à DW, ela fala sobre os contornos dos acontecimentos.
Um papel importante no 27 de maio de 1977 tiveram os soldados cubanos, que lutaram ao lado do MPLA de Agostinho Neto (na foto: início da retirada dos cubanos de Angola em 1989).
De acordo com Dalila Mateus, muito da história de Angola e sobre o 27 de maio de 1977 ainda estará por contar, porque falar destes acontecimentos tornou-se um tabu, pelo clima de medo que se instalou naquele país. 
Toda a documentação que tem recolhido está depositada na Torre do Tombo em Lisboa e Dalila Mateus tem esperanças que, a seu tempo, o Tribunal Penal Internacional possa debruçar-se sobre estes atos para que seja feita justiça em nome das vítimas e dos seus familiares.

DW África: Muitas vítimas eram militantes do MPLA, considerados "heróis" da luta contra os portugueses. Como se explica tanta violência dentro de um movimento de libertação?
Dalila Cabrita Mateus: O MPLA era, de facto, uma frente, agrupando gente de diferentes quadrantes políticos e sociais: comunistas pró-soviéticos, pró-chineses, pró-titistas, nacionalistas negros, terceiro-mundistas e muitos outros, que estão dentro do MPLA.
Mas Neto trata esta frente como um partido leninista, construído sobre o princípio do chamado centralismo-democrático, mas com muito centralismo e pouca democracia. 
Ele é presidente, é o secretário-geral e é o tesoureiro. 
E quem não pensa como ele é dissidente ou "fraccionista".
E estes dissidentes são tratados sempre da pior forma. 
A Assembleia que elege Neto para presidente, elege para vice-presidente Matias Miguéis, também negro. 
Matias Miguéis era adepto de Viriato da Cruz. 
Em 1965, foi levado para Dolisie [hoje Loubomo, uma cidade da República do Congo] e morto. 
A partir daqui, a partir desta data, a execução dentro do MPLA passa a ser a forma de resolver o problema das dissidências.
Soldados cubanos e angolanos durante a guerra civil em Angola

DW África: Muitos protagonistas do levantamento do 27 de maio eram militares da chamada 1ª Região Militar, que lutaram contra o colonialismo português? Porquê?
DM: De facto, perto da capital [Luanda], formou-se um grupo de guerrilha, cujos primeiros elementos foram participantes no 4 de Fevereiro de 1961. 
Praticamente não tinham ligações com o MPLA, que só uma vez, através de um destacamento comandado por Monstro Imortal [nome de guerra de João Jacob Caetano, comandante do MPLA], conseguiu chegar até eles, levando-lhes alguns alimentos e armas.
Quem são estes homens da 1ª Região Militar? 
Apoiavam-se nas redes clandestinas que se iam formando na cidade de Luanda. 
Resistiram 13 anos aos ataques do exército português, da polícia política portuguesa, a PIDE, e até da FNLA [movimento de libertação concorrente]. 
E nunca foram aniquilados.
No Congresso de Lusaka, foi o seu representante, Nito Alves, que salvou Agostinho Neto. 
O qual começou por lhe "pagar" promovendo-o. 
Mas, depois, expulsou-o, prendeu-o e, finalmente, mandou-o matar.
Parece ter sido fuzilado. 
Depois, segundo as nossas informações, a sua cabeça andou decepada por Luanda, em cima duma carrinha. 
Finalmente, segundo dizem, terão atirado o corpo ao mar.

DW África: Muitos dos angolanos que estudaram na União Soviética foram chamados de volta e executados. Porquê tanto medo dos que tinham ligações com a União Soviética?
DM: Não só da União Soviética, mas de todos os países de Leste e mesmo de Cuba. 
E o problema não era o medo dos comunistas. 
Eram simples bolseiros que se formavam nas universidades. 
Na esmagadora maioria não eram comunistas, nem se interessavam pela política. 
O problema era outro.
Nas explicações oficiais sobre o 27 de Maio, uma das versões era que se tratava de um golpe dos comunistas, apoiado pela União Soviética e pelo PCP [Partido Comunista Português].
Essa versão destinava-se a facilitar o "namoro" aos Estados Unidos da América, que na altura apoiavam a FNLA e a UNITA [os dois movimentos angolanos de libertação concorrentes ao MPLA].
Ora como não havia comunistas suficientes para justificar esta atuação, então inventaram-nos. 
Mandaram, então, regressar os bolseiros nos países de Leste, que pensavam ir para o Congresso do MPLA. 
Estes homens são convencidos que vão a Luanda para participar no Congresso do MPLA. Mas, ao desembarcarem, foram presos. 
E, segundo um antigo dirigente do MPLA que eu entrevistei, acabaram por ser degolados.
Da matança, só escapou o filho de Neto e um amigo que estudavam na Roménia.

DW África: José Eduardo dos Santos estudou na União Soviética, em Baku, licenciou-se em Engenharia de Petróleos. Mesmo assim escapou à repressão. Como explica isso?

José Eduardo dos Santos matinha relações estreitas com o bloco soviético (aqui com Erich Honecker, secretário-geral do partido comunista da RDA - República Democrática da Alemanha)

DM: Quanto a Eduardo dos Santos, dirigente do MPLA, também esteve para ser preso. 
Mas não por ter estudado na União Soviética. 
Mas sim, pensamos nós, que correu este risco pelo facto de, sendo presidente de uma comissão de inquérito ao fraccionismo, ter assinado um relatório em que ele próprio que negava a existência desse fraccionismo.
Pelo menos, na Cadeia de S. Paulo, um dos carrascos dizia muitas vezes que, para quem queria ouvir, só faltava prender Lopo de Nascimento (o primeiro-ministro) e o Eduardo dos Santos. 
Que só não foi preso, porque o governador do Lubango, onde se encontrava, não o deixou prender.

DW África: Qual era o modelo do "Poder Popular" que Nito Alves defendia?
DM: No nosso livro dizemos que Nito Alves padecia das limitações de quem vivera muitos anos isolado e acossado. 
Se pensamos como viveu esta gente na 1ª Região, eles estavam sistematicamente a ser acossados pelo exército português, pela PIDE e pela FNLA.
Portanto, Nito Alves encontra um manual marxista e transforma este manual numa espécie duma nova Bíblia, onde ele encontra soluções para todos os problemas.
Mas estas limitações vão levar a estas manifestações, que por vezes podem parecer – ou são – de radicalismo e de dogmatismo. 
As suas "Treze Teses" são de facto um texto insuportável, com dezenas de citações a propósito e, sobretudo, a despropósito.
No entanto, quem aparecia a defender soluções radicais eram Neto e alguns dos seus homens, que, de vez em quando, falavam da "revolução proletária".
Não ouvimos isto de Nito Alves. 
Ele e os elementos mais esclarecidos do seu grupo retorquiam que era um disparate, pois em Angola não existia uma classe operária capaz de realizar tal revolução. 
E preferiam falar de uma democracia popular.

DW África: Era um modelo democrático ou comunista, inspirado na União Soviética?

Dalila Cabrita Mateus - historiadora portuguesa

DM: O modelo soviético não tinha qualquer sentido em Angola, até porque a maioria dos operários e técnicos qualificados eram portugueses. 
E é um erro pensar que eram ideológicos os problemas que preocupavam Neto e os seus próximos.
O que os preocupava era, em primeiro lugar, a denuncia que os nitistas faziam da corrupção, que estava a acontecer. 
E davam exemplos concretos dessa corrupção.
Preocupava-os, em segundo lugar, a influência dos nitistas nas organizações populares eleitas nos musseques [os bairros pobres de Luanda]. 
Eram eleitas as organizações populares e essas organizações tinham um papel fundamental.
E preocupava-os, em terceiro lugar e principalmente, a possibilidade real de os "nitistas" virem a conquistar a maioria dos delegados no próximo Congresso [do MPLA].

DW África: Além de fraccionismo, Nito Alves foi também acusado de racismo. Com razão?
DM: De facto, Nito Alves foi acusado de racismo por ter afirmado que "no dia em que, em Angola os cidadãos varredores de ruas forem não só negros, mas mestiços e brancos também, o racismo desaparecerá". 
Aí estava o "racismo das lagartixas", acusava o Jornal de Angola.
Só que a citação estava incompleta. 
Nito Alves dissera também que o racismo teria desaparecido no dia em que "os camaradas angolanos de origem europeia" puderem ascender "aos mais altos órgãos do MPLA e às responsabilidades administrativas e outras no aparelho de Estado".
Admitir que brancos e mestiços, considerados "angolanos de facto e de direito", pudessem ocupar cargos de topo no MPLA ou no Estado não é uma posição racista.

DW África: Algumas vítimas do 27 de maio tinham tido ligações estreitas ao Partido Comunista Português (PCP), que, por sua vez, era um aliado do MPLA na luta anticolonial. Que papel teve o PCP nos acontecimentos?

Capa do livro Sita Valles - Revolucionária, Comunista até à Morte (1951-1977)

DM: A única pessoa que foi directamente acusada pelo MPLA de ser do PCP era Sita Valles, que fora dirigente da UEC – União dos Estudantes Comunistas. 
Mas Sita Valles já não era membro do PCP.
Um mês depois do 27 de Maio, Sérgio Vilarigues, membro do Secretariado e da Comissão Política do PCP vai a Luanda e dá uma entrevista ao oficioso Jornal de Angola. 
Em setembro, a editora comunista publica a versão dos dirigentes do MPLA sobre os acontecimentos. 
E nesse mesmo mês de setembro, o vice-director da DISA, ainda hoje conhecido em Angola pelo "assassino", encabeça uma delegação do MPLA presente na Festa do jornal comunista Avante!
Assim, se houve participação do PCP foi ao lado do Presidente de Angola [Agostinho Neto] e dos "vencedores" do 27 de Maio.

DW África: Como se explica o facto de, fora de Angola, poucos conhecerem a repressão do 27 de maio quando, ao mesmo tempo, todo o mundo conhece as atrocidades cometidas pelo ditador chileno Augusto Pinochet, mais ou menos na mesma época, mas que "apenas" causaram a morte de aproximadamente 3.000 pessoas?
DM: Difícil seria que fosse doutro modo.
Primeiro porque, mesmo em Portugal, o caso foi silenciado. 
Na imprensa portuguesa era surpreendente a ausência duma posição activa de denúncia das violações flagrantes dos mais elementares direitos do homem.
Segundo, porque em regra e em relação à África, só quando as barbaridades atingem enormes proporções é que elas são notícia.
Terceiro, porque a diplomacia dos interesses continua a ter muita força.

DW África: Será preciso uma Comissão da Verdade do 27 de maio de 1977 para chegar a uma verdadeira reconciliação em Angola?

Agostinho Neto - o "vencedor" do 27 de maio de 1977

DM: Tenho muitas dúvidas que assim possa acontecer 35 anos depois dos acontecimentos, quando muitos dos principais actores já faleceram ou abandonaram a vida política, uma tal comissão não me parece ser possível, nem importante.
Nesta altura, afigura-se mais sensata e oportuna uma acção que envolva dois aspectos:
Primeiro: o esclarecimento e o assumir de responsabilidades pelo próprio MPLA.
Segundo e principalmente: que se faça uma busca e a entrega das ossadas dos mortos para que as famílias possam fazer o luto da sua dor.
Autor: João Carlos
Edição: Johannes Beck

"Ainda hoje tenho pesadelos com este horror" - 27 de maio de 1977 em Angola - 1ª parte da entrevista com Dalila Mateus

Deutsche Welle
ANGOLA
12.05.2012


Há 35 anos, no dia 27 de maio de 1977, começou um dos períodos mais negros de Angola. Neste dia houve manifestações em Luanda a favor de Nito Alves. A seguir, milhares de angolanos são torturados e assassinados.

No dia 27 de maio de 1977 populares manifestaram-se em Luanda a favor de Nito Alves, na altura ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do partido no governo MPLA. 
As manifestações das massas foram na altura classificadas pelo Presidente de Angola, Agostinho Neto, como uma tentativa de golpe de estado.

Nos dias e meses a seguir ao 27 de maio de 1977, os apoiantes de Nito Alves, os chamados "fraccionistas", são expulsos do MPLA. 
Dezenas de milhares são torturados e assassinados sem julgamento.

Falamos com a historiadora portuguesa Dalila Cabrita Mateus sobre este episódio da história angolana. 
Ela publicou com o seu marido Álvaro Mateus o livro “Purga em Angola”, lançado em 2007 (agora na sexta edição). 
Neste Contraste apresentamos a primeira parte da entrevista da pesquisadora à DW.

DW África: Qual foi o episódio que mais a marcou durante as pesquisas sobre os acontecimentos de maio de 1977?
Dalila Cabrita Mateus: As entrevistas a antigos presos políticos barbaramente torturados marcaram-me particularmente. 
Para a minha tese de doutoramento, já tinha ouvido presos angolanos, moçambicanos e guineenses, que me contaram as torturas infligidas pela PIDE. 
Depois, para o livro sobre o 27 de maio, ouvi presos angolanos narrar o que sofreram nas cadeias. 
Ainda hoje sonho, tenho pesadelos, com este horror.
Um dos últimos presos que ouvi, depois de narrar o que lhe tinham feito, encostou-se a uma porta e da sua boca saiu um suspiro enorme. 
Tinha desabafado. 
Disse-lhe: "O senhor conseguiu, enfim, desabafar." 
Mas eu, que ando há anos a ouvir o sofrimento de todos os presos políticos, com quem desabafo?
A gravação e a transcrição de todas estas entrevistas estão hoje depositadas na Torre do Tombo.

DW África: Consegue resumir num minuto o que aconteceu de facto no 27 de maio de 1977?

Dalila Cabrita Mateus - historiadora portuguesa

DM: Alguns pequenos grupos armados tomaram cadeias, com o propósito de libertar gente sua que estava presa. 
Por exemplo o Batalhão Feminino tomou a cadeia de São Paulo. 
Estavam presos dezenas de elementos do grupo de Nito Alves e José Van Dunem. 
Eles próprios, como se comprova pela gravação escutada das emissões da rádio em Angola e por alguns testemunhos, estavam detidos.
Um pequeno grupo tomou a Rádio, com o objectivo de apelar a uma manifestação em frente ao Palácio. 
Dos musseques [os bairros pobres de Luanda] afluíram centenas e centenas de manifestantes, que começaram por se dirigir ao Palácio. 
Tendo sido recebidos a tiro, começaram a concentrar-se em frente à Rádio.
Não há, pois, qualquer golpe de Estado. 
O que há é uma manifestação e algumas acções militares para libertar presos e tomar a rádio. 
"Insurreição desarmada de massas", lhe chamou o historiador inglês David Birmingham.
O objectivo era provocar uma alteração radical da política, seguida de uma insurreição. 
Mas o meio era uma simples manifestação, e isso prova-se hoje através das imagens, na altura obtidas pela própria Televisão Popular de Angola.

DW África: Tomaram a Cadeia de São Paulo, a sede da polícia política DISA e a Rádio Nacional, mas não o Palácio Presidencial. Porquê uma estratégia tão mal concebida?
DM: Tomaram de facto a Cadeia de S. Paulo, mas nunca tomaram a sede da DISA. 
E não queriam tomar o Palácio Presidencial. 
"Plano louco e mal concebido", diz o historiador inglês Birmingham.
Mas não queriam realizar de facto um golpe de Estado. 
Confiavam na superioridade de forças que tinham, entre os militares da 9ª Brigada e na população. 
E nunca terão imaginado que os cubanos fossem intervir com tanques para dispersar a manifestação e tomar o quartel da 9ª Brigada.

DW África: O levantamento dos apoiantes de Nito Alves e José Van Dúnem pode ser considerado um golpe de Estado?
DM: Num golpe de Estado ou numa insurreição, toda a gente o sabe que se tomam locais, com militares e civis armados; tomam-se a Presidência e os ministérios, a polícia política, os correios e as telecomunicações, os quartéis, o aeroporto, entre outros.
Se não havia um plano para tomar nada disso e a grande acção é uma manifestação de gente desarmada, como é que se pode falar dum golpe de Estado?

DW África: Qual foi o papel dos soldados cubanos na repressão do "golpe"?
DM: Os cubanos foram mandados intervir por Fidel Castro, depois de este ter falado com Agostinho Neto. 
Fortemente armados e utilizando tanques, acompanharam a polícia política DISA e ocuparam a rádio, dispersaram os manifestantes e, depois, tomaram o quartel da 9ª Brigada. 
Quem o declara é o general cubano Rafael Moracen. 
Depois, os cubanos ainda colaboraram nos interrogatórios de presos.

DW África: O que aconteceu com os detidos do movimento do 27 de maio?
DM: Os participantes no 27 de Maio foram presos e torturados. 
Muitos foram sumariamente fuzilados, sem qualquer tipo de julgamento. 
Outros foram mandados para campos de concentração e ali morreram. 
Os que podem ser considerados os mais felizes, são aqueles que acabam ser libertados ao fim de dois anos de tantas torturas e de terem passado tão mal.
Mas nem só os participantes foram presos. 
Foi também detida muita gente que pouco tinha a ver com os acontecimentos. 
Uns, porque possuíam bens que eram cobiçados. 
Outros, porque eram amigos ou familiares dos chamados "fraccionistas". 
Ainda outros, porque tinham criticado ou manifestado o seu descontentamento com a forma como as coisas corriam. 
Outros porque tinham tido azar e estavam na rua. 
Finalmente outros porque eram intelectuais ou estudantes, grupos sociais particularmente visados.

DW África: Qual foi o destino de Nito Alves e José Van Dúnem?
DM: Foram presos e sumariamente fuzilados, sem que tivessem sido acusados e julgados.

DW África: Como funcionava a Comissão das Lágrimas?
DM: A Comissão, a que o povo chamou das Lágrimas, foi criada pela Direcção do MPLA, com o objectivo de selecionar depoimentos sobretudo de intelectuais presos no 27 de Maio. E por isso era constituída por elementos considerados "intelectuais". 
Essa Comissão interrogava, provocava e decidia se o preso devia ou não ser entregue aos militares e às polícias; isto é, se ia ou não para a tortura.

DW África: Qual foi o papel dos escritores angolanos Pepetela e Luandino Vieira nessa Comissão das Lágrimas?
DM: De facto, na Comissão estiveram Pepetela e Luandino Vieira, mas também Manuel Rui Monteiro, Henrique Abranches, Costa Andrade e muitos outros. 
Aos presos que ouvimos e que passaram por aquela Comissão ouvimos referências às perguntas provocatórias de Pepetela e de Costa Andrade.

DW África: Até que ponto foi usada a tortura?
DM: Todos os presos, sem excepção, foram barbaramente torturados. 
Não foram só os presos que ouvimos que se referiram às torturas. 
A própria Amnistia Internacional, num documento de Dezembro de 1981 sobre os acontecimentos, faz alusão às muitas torturas usadas.
Espancamentos com martelos e barras de ferro, chicotadas, queimaduras com cigarros, choques eléctricos execuções simuladas, e ainda algumas originalidades tradicionais, tudo isso foi usado para torturar os presos.

Guerrilheiros na luta anti-colonial em setembro de 1969 (fotografia de arquivo da União Soviética) - muitas vítimas do 27 de maio eram antigos combatentes da luta contra o colonialismo português

DW África: Quantas pessoas perderam a vida no total?
DM: Há cálculos diversos. 
A Fundação 27 de Maio, formada por antigos presos de 27 de Maio, fala de 80.000 mortos. O jornal Folha 8 de 60.000. 
Adolfo Maria, militante da chamada "Revolta Activa" e o juiz angolano José Neves, que participou numa Comissão de Inquérito aos acontecimentos, apontam para 30.000 mortes.
A Amnistia Internacional avançou com uma estimativa que vai de 20.000 a 40.000. 
Um elemento da polícia política DISA, entrevistado por mim, dizia terem sido apenas 15.000 mortos. 
Eu e meu marido, no livro que escrevemos, ficamos pelo número mais vezes referido. Seriam, pois, uns 30.000.

DW África: Quem eram os responsáveis pela violência?
DM: Autores materiais houve muitos, entre militares e elementos da DISA, a polícia política. 
Mas a própria DISA era dirigida por uma Comissão Nacional de Segurança, cujos responsáveis máximos eram Agostinho Neto, Lúcio Lara, Iko Carreira, Rodrigues João Lopes (Ludy) e Henrique Santos (Onambwé).
Os mandantes são, pois, facilmente identificáveis. 
Além de Agostinho Neto (ele mesmo ou através do seu chefe de gabinete), Iko Carreira, Lúcio Lara, João Luís Neto (Xietu) e Henrique Santos (Onambwé). 
Mas também tiveram os seus conselheiros, designadamente alguns embaixadores que não tiveram tento com a língua.

Nelson Mandela em 1952 - o seu movimento, o ANC, tinha muitas fracções, lembra Dalila Mateus

DW África: Então está a dizer que o principal responsável é o primeiro presidente da República de Angola, Agostinho Neto?
DM: É evidente. 
Nós afirmamos que as principais responsabilidades recaem por inteiro sobre Agostinho Neto, o presidente de Angola.
Aqui cabe a lembrar o que pensaria ou faria Nelson Mandela, se estivesse na mesma situação. 
Referindo-se à governação de Creonte, na Antígona de Sófocles, sua peça preferida, Nelson Mandela dizia que "não se pode julgar um homem completamente, o seu carácter, os seus princípios, o seu sentido de justiça, até ter mostrado o que vale no governo do seu povo".
Ora, Neto não se preocupou com o apuramento da verdade. 
É este o grande problema. 
Dispensou os tribunais, declarando publicamente que não iria perder tempo com julgamentos. 
Está na televisão, qualquer pessoa pode ver isto. 
Admitiu que fizessem justiça sumária pelas próprias mãos.
Ora, se compararmos de novo com Nelson Mandela: o ANC [African National Congress, o movimento de libertação da África do Sul] tinha 36 grupos e fracções. 
Mandela queria que vissem uma grande tenda que podia acolher muitos e variados pontos de vista. 
E sabia que não se podiam cortar os laços com a juventude, por muito excessiva e simplista que fosse, pois não se constrói o futuro sem aqueles que o irão viver.
Imaginemos, então, por momentos, que, em vez de Mandela, a África do Sul teria tido por presidente Agostinho Neto. 
Em que banho de sangue não se teria mergulhado?

Samakuva: "Reconciliação com as vítimas do 27 de maio ainda não foi conseguida"

Deutsche Welle
ANGOLA
24.05.2012

A DW África falou com o presidente da UNITA, o maior partido da oposição angolana, sobre a reconciliação entre o Estado e as vítimas do 27 de maio de 1977. Segundo Isaías Samakuva, ainda há muito caminho a percorrer.
Isaias Samakuva é o líder da UNITA, o maior partido da oposiSo em Angola

DW África: O que é que pensa sobre esta data memorável para os angolanos, uma data em que muitas pessoas foram mortas?
Isaías Samakuva (IS): Infelizmente a história de Angola tem muitas datas tristes. 
Mas temos que aceitar que a nossa história é feita precisamente dessas datas. 
O 27 de maio de 1977 foi um dia em que milhares de angolanos quiseram manifestar o seu desagrado pela situação que o país vivia na altura. 
Infelizmente esses compatriotas, esses manifestantes, foram massacrados bárbaramente e muitos morreram.

DW África: O que sabe sobre o número de vítimas?
IS: Os números são contraditórios. 
Alguns falam de dezenas de milhar de mortos, outros falam mesmo de centenas de milhar. De qualquer das maneiras morreram muitos angolanos e, por isso, o 27 de maio de 1977 é uma data que deve ser relembrada. 
Creio que este ano os militantes das causas do 27 de maio estarão mais uma vez a lembrar não só os massacres, como também as causas que quiseram defender naquela altura.

DW África: Não acha que chegou o momento de todos os angolanos se reconciliarem e esquecerem as divisões do passado?
O líder da UNITA disponibilizou-se a comentar o "27 de maio", um conflito "interno" no seio do MPLA
IS: Nós andamos há anos a falar do processo de reconciliação nacional, mas o processo de reconciliação, a que estamos a assistir, ainda não terá atingido os seus objetivos. 
Em vez de se materializar o processo de reconciliação nacional, o que está a acontecer é um agravamento daquilo que se passou. 
É notória a vontade de reconciliação dos sobreviventes do 27 de maio. 
Eles querem virar a página. 
Mas infelizmente isso não tem acontecido. 
Eu conheço muitas famílias que continuam à procura de certidões de óbito dos seus familiares mortos no 27 de maio. 
Ora isso dificulta o processo de reconciliação. 
Para nós seria desejável que esse e outros aspetos fossem resolidos.
Autor: Manuel Vieira (Luanda)
Edição: António Cascais / António Rocha

William Tonet: "Os crimes nunca prescreverão"

Deutsche Welle
ANGOLA
25.05.2012

A DW África falou com advogado e jornalista angolano William Tonet que, em 1977, trabalhava no gabinete de Nito Alves. Hoje é uma das vozes que denunciam as atrocidades cometidas por ordem do presidente Agostinho Neto.

DW África: O que, representa, para si, o 27 de maio?
William Tonet (WT): Nós conhecemos em África, depois de uma independência, uma das maiores chacinas seletivas do ponto de vista ideológico. 
E essa chacina foi cometida para acabar com a liberdade de pensamento e de expressão.

DW África: Os números das vítimas são divergentes...
WT: Não me repugna falar em mais de 60 mil ou um número próximo dos 80 mil de assassinatos, porque aqueles que dirigiram a chacina nunca estiveram preocupados com a quantidade. 
Bastava que alguém dissesse que aquele indivíduo talvez... para ser imediatamente preso. 
Se perguntar a eles: quantas pessoas prenderam, eles não sabem responder, mas sabemos que eles ficavam contentes quando, num dia, matavam mais cem ou mais duzentos. 
E muitos dos assassinos estão vivos. 
Eles têm que assumir isso. 
Veja quantos denominados responsáveis do 27 de maio sobraram?

DW África: Não acha que os crimes prescreveram, 35 anos depois?
WT: São crimes contra a humanidade, não prescreveram. 
E não prescreveram porque as pessoas responsáveis, que ainda estão vivas, não fazem nenhum esforço por se penitenciarem. 
Eles só vêem o poder, não vêem as consequências. 
Esse crime não prescreve. 
Os crimes da segunda guerra mundial também não prescreveram e não irão prescrever. 
Há pessoas à beira dos cem anos a serem responsabilizadas civil e criminalmente na Europa, e aqui em Angola também vai haver isso. 
Infelizmente nós não temos uma cultura de reconciliação. 
O MPLA tem medo de liderar um processo, como fez a África do Sul. 
Em África, Angola não está a dar um bom exemplo de uma política de verdadeira reconciliação nacional, ao contrário da África do Sul.

DW África: Porque é que o tema 27 de maio continua a ser um tabú em Angola?
WT: Porque as pessoas não pensam o país, e quando as pessoas - em vez de pensarem o país - pensam o poder, a verdade torna-se tabú. 
Eu costumo dizer: todos os movimentos de libertação cometeram erros graves, violações graves dos direitos humanos. 
Mas aqui em Angola só se fala da FNLA e da UNITA, como se os outros fossem um poço de pureza, mas não foram. 
É preciso que nós tenhamos a coragem de refazer a história e penitenciarmo-nos todos e dizer que foi num dado momento, que as circunstâncias foram estas, mas vamos reencontrar-nos em vez de continuarmos a cavalgar, uns no poder e outros com um sentimento de revolta.
Autor: Manuel Vieira (Luanda)
Edição: António Cascais / António Rocha

27 de maio de 1977 em Angola: "Supressão de Agostinho Neto tinha antecedentes", diz William Tonet

Deutsche Welle
CONTRASTE
31.05.2012


No período em torno de 27 de maio de 1977, o jornalista angolano William Tonet trabalhava no gabinete de Nito Alves, então Ministro da Administração Interna, e acompanhou a perseguição aos "fraccionistas".

 Agostinho Neto

Hoje, William Tonet é um dos poucos jornalistas que escreve sobre o 27 de maio em Angola. A DW África falou com ele e começou por abordar os antecedentes.

DW África: O que aconteceu, por exemplo, com Matias Miguéis, então vice-presidente que havia abandonado o MPLA por dissidências, tendo-se filiado na FNLA [a Frente Nacional de Libertação de Angola] em 1965?

William Tonet (WT): Naturalmente, não foi pacífica a chegada do presidente Agostinho Neto ao MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola]. 
Por aquilo que se conhece da nossa história, enquanto movimento de libertação, o MPLA era, de facto, no ano [de 1960] um movimento congregador e que tinha uma direção mais ou menos colegial, portanto, com a chegada de Agostinho Neto, que foi convidado para liderar o movimento, é o início de uma série de dissidências: Agostinho Neto, em vez de se constituir como elemento congregador, foi um elemento divisor.

William Tonet é um dos poucos que hoje mencionam o 27 de maio de 1977

É com Agostinho Neto que surgem os grandes movimentos de dissidências. 
Tivemos, de facto, o caso horripilante do vice-presidente Matias Miguéis. 
Ora, nós sabemos que Agostinho Neto foi preso nas condições em que foi preso, ele não havia sido torturado como ele veio a torturar aquele que foi vice-presidente [Matias Miguéis] e que mais se bateu para a sua libertação das mãos do jogo colonial português. 
Matias Miguéis, por ordens expressas de Agostinho Neto foi preso, enterrado vivo com a cabeça de fora cerca de 48 horas. 
Depois disso, não resistiu. 
E era humilhado, uns [urinavam-lhe] na cabeça, outros cuspiam, outros pontapeavam, [algo] que até o próprio colonialismo não havia feito a angolanos que tinham um dedo de testa. 
E um exemplo é o próprio Agostinho Neto.

DW África: O que aconteceu com a chamada revolta de leste, um grupo de guerrilheiros do MPLA do leste de Angola que não concordou com a política da ala de Agostinho Neto?

WT: É preciso esclarecer que, no MPLA, nós nunca tivemos uma revolta do leste. 
Tivemos esse movimento de 65, depois tivemos um outro movimento em 66, em que houve uma queimada de pessoas acusadas de feitiçaria e que [supostamente] estavam a tentar derrubar o presidente Agostinho Neto em Brazzavile [República do Congo]: à cabeça temos o comandante Paganini, mas houve um movimento que é a "rebelião da jibóia", comandada por Katuwe Mitwe, que foi uma reivindicação de guerrilheiros.

Ora, quem foi fazer o inquérito na frente leste foi o então outro vice-presidente, Daniel Júlio Chipenda e, chegado lá, ao abordar o comandante Katuwe Mitwe e a direção, perguntou se aquilo era mesmo uma rebelião – porque rebelião [acontece quando] alguém que se confronta de fora para dentro – e se eles achavam ainda que eram do MPLA e que reivindicavam apenas uma determinada situação. 
E a maioria das pessoas disse que, de facto, se tratava de uma revolta.

Já havendo revolta ativa, por analogia, sugeriu-se que, em vez de ser a rebelião da jibóia – porque afinal era uma reivindicação face a determinadas políticas da direção, até porque era no leste – ficasse revolta do leste. 
Portanto, foi uma sugestão então avançada pelo vice-presidente que foi o coordenador da comissão de inquérito sobre a rebelião da jibóia.

DW África: Muitos dos protagonistas do 27 de maio eram militares da chamada Primeira Região Militar. O que diz sobre os que lutaram contra o colonialismo português em Luanda? 

WT: É preciso distinguir que não eram só militares que integravam o movimento contestatário. 
O MPLA configurou-se como um partido, um movimento que englobava e respeitava várias tendências. 
Mas depois começou a ter um cariz muito mais ditatorial, de abafamento. 
Basta ver que o comandante Nito Alves – que era uma pessoa [até das mais comprometidas] com a ideologia comunista – batia-se por algumas situações que estavam muito próximas de Agostinho Neto. 
Ora, foi graças a uma estratégia do comandante Nito Alves que o presidente Agostinho Neto não perdeu completamente a direção do MPLA.

Portanto, se houver honestidade política e intelectual das pessoas, e um dia que a história do MPLA [seja] feita despida de paixões, veremos que o primeiro presidente democraticamente eleito na história do MPLA foi Daniel Júlio Chipenda no Congresso de Lusaka. 
Então, no próprio movimento do 27 de maio, tínhamos o comandante Nito Alves, mas temos logo a secundar o Zé Van Dúnem. 
O Zé Van Dúnem é da luta clandestina, não provém verdadeiramente da guerrilha, era um preso político de S. Nicolau, a Sita Valles também, portanto nós temos um conjunto de gente que não eram elementos da guerrilha.

Agostinho Neto (esq.) com Fidel Castro - os cubanos ajudaram a combater os fraccionistas do grupo de Nito Alves

O que se pretendia era que houvesse uma clarificação ideológica, não é possível que um movimento de libertação que vinha lutando contra o colonialismo português, que falava contra o imperialismo norte-americano, que depois de 1974, o presidente Agostinho Neto tivesse ido para o Canadá negociar a manutenção dos americanos da Chevron nas plataformas petrolíferas, quando o principal [financiador] de então do MPLA eram os soviéticos e os soviéticos também eram uma potência em petróleo. 
Isto aconteceu, porque houve necessidade de alguns questionarem o rigor e a precisão da nossa corrente ideológica. 
O que é que iríamos seguir de facto? 
A esquerda comunista ou centro esquerda ou o liberalismo? 
E isso Neto não chegou a clarificar.

DW África: Falemos de Nito Alves. Qual era o modelo do poder popular que Nito Alves defendeu? Alguns investigadores dizem que o poder popular foi considerado uma ameaça a Agostinho Neto. 

WT: É preciso repor a verdade histórica: o pai da criança não é Nito Alves. 
O próprio movimento tinha isso como elemento aglutinador e congregador das vontades para a luta de libertação. 
Basta [vermos as vezes em que a expressão "poder popular" foi usada] pelo próprio presidente Agostinho Neto. 
Se o poder reside no povo, era preciso que o povo estivesse presente em todos os atos.

Por outro lado, a materialização dessa orientação foi expressa numa resolução do próprio Conselho da Revolução e da própria direção do MPLA. 
O MPLA realizou eleições democráticas para os órgãos do poder local, poder popular local, portanto comissões populares eleitas. 
Ora, não podia haver uma expressão tão profunda, mas os atos serem distintos.

Se isso preocupava? 
Preocupava, porque, ao mesmo tempo que se prendia a expressão, as pessoas gostariam de continuar a nomear responsáveis eleitos pelas populações das comissões de bairro, dos municípios e aí [começaram] as contradições, porque alguns achavam que, pelo facto de terem vindo da mata, poderiam imediatamente ser responsáveis.

Aliás, quando se parou esse movimento de pendor comunista, nós vimos o que aconteceu. Nada mais evoluiu, porque pessoas que não estavam identificadas com as regiões, com os bairros, começaram a ser nomeadas e é o descalabro que ainda hoje nós vamos conhecendo.

Autor: Manuel Vieira (Luanda)
Edição: Marta Barroso/Johannes Beck