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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

MUNDO 
LUANDA LEAKS


Dulce Neto  texto
17 fevereiro 2020  17:52


Isabel dos Santos escreveu uma carta a João Lourenço para negociar depois do arresto dos bens
A filha de José Eduardo dos Santos pediu negociações explícitas numa carta  de página e meia enviada depois do arresto de bens. A recusa de João Lourenço levanta dificuldades, avisa Marcelino Moco
Isabel dos Santos fotografada no Hotel Ritz em Lisboa, onde deu uma entrevista ao Observador em Dezembro de 2019, poucos dias antes de ver od seus bens serem arrestados pela justiça angolana

Isabel dos Santos pediu mesmo ao Presidente angolano para negociar, pouco depois de os seus bens e contas terem sido arrestado pela justiça angolana e da divulgação do Luanda Leaks. A mulher mais rica de África - mantém o lugar, apesar do escândalo, e figura na 14ª posição no ranking dos milionários africanos, divuldado na quarta-feira pela revista Ceoworld - escreveu uma carta de uma página e meia a João Lourenço em que dez um pedido explícito de negociações nos parágrafos quarto e quinto.

Num deles, fundamenta o solicitado com o estado da economia nacional e a responsabilidade social, propondo uma plataforma segura de cooperação. Ou seja a abertura de conversações que poderiam levar à devolução dos 1,1 mil milhões de dólares (cerca de mil milhões de euros) que a filha mais velha do ex-Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, alegadamente deve ao Estado angolano, em troca do levantamento do arresto. 
Através da assessoria de imprensa de Isabel dos Santos, o Observador enviou perguntas sobre esta iniciativa, mas não recebeu qualquer resposta até a publicação do artigo.

A carta não obteve o efeito desejado. João Lourenço foi perentório na entrevista  dada à Deutsche Welle a 3 de fevereiro. "Nós gostaríamos de deixar aqui garantias muitas claras de que não se está a negociar". Nem prevê fazê-lo no futuro. "Mais do que isso, não se vai negociar, na medida em que houve tempo, houve oportunidade de o fazer. Portanto, as pessoas envolvidas neste tipo de actos de corrupção tiveram seis meses de período de graça para devolverem os recursos que indevidamente retiraram do país", garantiu.

As afirmações do Presidente angolano surgiram três dias depois de o Expresso ter dito que as negociações estavam em curso, citando mesmo o procurador-geral da República - "É um sinal ainda ténue". No entanto, Hélder Pitta Grós apressou-se a desmentir a notícia, tal como o faria depois o advogado Sérgio Raimundo, tido como o porta-voz angolano da estratégia de Isabel dos Santos, ao Público.

Mas terá João Lourenço equacionado seriamente esse caminho? Fontes políticas angolanas contactadas pelo Observador dividem-se. Há quem admita que a possibilidade de negociar com Isabel dos Santos esteve durante algum (pouco) tempo em cima da mesa presidencial, tendo sido afastada depois de alguns comentários nas redes sociais da filha de José Eduardo dos Santos que desagradaram a Lourenço. (Aliás, Isabel dos Santos só terá parado com as suas publicações sobre o assunto nas redes sociais depois de o pai lhe ter pedido para ficar calada). Em sentido contrário há quem assegure que Lourenço excluiu à partida essa possibilidade, o que vem reforçar a tese daqueles que veem uma certa selectividade na grande bandeira da sua governação: o combate à corrupção.

Uma prova disso seria o facto de Manuel Vicente parecer estar a ser poupado - o que João Lourenço negou nessa única entrevista que deu pós-Luanda Leaks, lembrando o período de imunidade de que ainda goza o ex-vice-Presidente e assegurando que "o caso está a ser tratado pela PGR". Um outro indício seria o facto de haver negociações com alguns altos quadros do Estado acusados de envolvimento em esquemas de corrupção, como é o caso de Manuel Rabelais, antigo ministro da Comunicação Social, de um ex-governador do Banco Nacional de Angola e de alguns generais do MPLA.
"Crimes de quem? De todos os que dirigiram o MPLA? Vão todos para a cadeia?
Marcolino Moco, ex-primeiro-ministro de José Eduardo dos Santos preferia uma solução diferente da que está a ser seguida por João Lourenço em alguns casos de corrupção.

A Opção de João Lourenço traz algumas dificuldades, analisa Marcolino Moco, ex-primeiro ministro de José Eduardo dos Santos (de 1992 a 1996), que foi eliminado politicam,ente (e humilhado publicamente) pelo ex-Presidente, mas que tem sido uma voz ponderada no meio angolano. Autor de um livro a ser lançado brevemente em Portugal, "Angola: Por uma nova partida", o advogado defende, em declarações ao Observador, uma "justiça restaurativa" mais do que uma justiça que prioriza mandar "este ou aquele" para a prisão.

Sobre o facto de poderem estar em causa crimes, Marcolino Moco argumenta: "Crimes de quem? De todos os que dirigiram o MPLA nesse período? Vão todos para a cadeia? O país pára? O MPLA entrega o poder a outra formação político-partidária? Tem lógica? É exequível? Não é. " Trata-se, defende, de crimes que "foram autorizados durante muitos anos". Este foi, sublinha Marcolino Moco, um "problema político, e a solução deve ser política; o que provocou este enriquecimento da Isabel e aquela desordem toda de pessoas que só trabalhavam para elas e não para o país, foi o sistema político". Outra saída, como a que está a ser aplicada, traz inevitavelmente, problemas.

"Muito antes de a máquina punitiva entrar em funcionamento, chamei a atenção para o facto de que a dimensão do desvio do erário público atingira tais proporções durante os últimos 15 anos do mandato de José Eduardo dos Santos que não podia ser resolvida com uma justiça do tipo punitiva ocidental. Houve muitas irregularidades em todo o sistema; sobretudo o partido no poder, o MPLA, tem culpa no cartório em tudo o que aconteceu".

Um cenário que, enuncia, foi facilitado por alguns factores, como a "opacidade comunicacional" - "não se podia falar desta coisa do desvio do dinheiro". Ou o de "os tribunais terem sido proibidos de agir contra". Pelo contrário: "O Tribunal Constitucional, por exemplo, foi 'obrigado' a emitir um acórdão que dizia que os ministros e os titulares do Estado não podiam ser chamados a serem investigados pela Assembleia Nacional sem autorização do chefe do governo".

Ora, resume, o jurista, "havia uma licença para o desvio, toda a gente estava envolvida".,Aliás, há dias, "o próprio Presidente reconheceu isso mesmo", refere Marcolino Moco, aludindo à entrevista à Deatsche Welle em que João Lourenço afirmou: " Ninguém pode dizer que não fazia parte do sistema. Todos nós fizemos parte do sistema".