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sábado, 22 de setembro de 2018

Alta tensão nas forças armadas

MILITAR
Rafael Marques de Morais
22 de Setembro de 2018

O comandante-chefe das Forças Armadas de Angola (FAA) tem estado a promover, com gestos simbólicos mas extraordinários, a reconciliação com o passado de guerra, através da permissão do enterro familiar de ex-inimigos, como Jonas Savimbi e o seu sobrinho, general Ben-Ben.

É preciso muito mais, incluindo a contabilização oficial, nome por nome, de todos os mortos da guerra, civis e militares, para que milhares de famílias angolanas possam, final e legalmente, reconhecer a morte dos seus entes queridos e exorcizar os fantasmas da guerra.

No entanto, os gestos do general Lourenço têm sido torpedeados pela sua própria cadeia de comando. 
As FAA estão a passar por um período de alta tensão que não se registava desde o fim da Guerra, em 2002. 
A dedicação aos estudos e ao aprimoramento profissional da maioria dos oficiais oriundos da UNITA – e, concomitantemente, do Sul de Angola – é alvo de combate. 
No final da guerra, muitos desses oficiais tinham apenas o ensino primário concluído e hoje ostentam orgulhosamente diplomas do ensino superior.

O exemplo de Nunda
Recapitulemos a recente intervenção do Tribunal Supremo, que iliba o ex-chefe de Estado-Maior General (EMG) das FAA, general Geraldo Sachipengo Nunda, dos quatro crimes de que foi acusado a 15 de Junho passado: associação de malfeitores, tráfico de influências, abuso de poder e cumplicidade na tentativa de burla. Trata-se do famoso caso da “burla tailandesa” ou dos “50 mil milhões”, como também é conhecido.

O general Nunda desertou da UNITA em 1993. 
Dos chamados “provenientes”, é o que atingiu o posto mais alto da carreira militar nas FAA, tendo sido considerado pelos seus pares como o melhor chefe do EMG das FAA de sempre. 
Também se dedicou aos estudos, sendo actualmente doutorando em História na Universidade de Évora, Portugal. 
A Nunda coube-lhe a estratégia de aniquilamento do seu próprio tio e ex-comandante supremo, Jonas Savimbi, morto em combate em 2002.

Três meses antes, a 3 de Março, o procurador-geral da República, general Hélder Pitta Grós, foi ao gabinete do general Nunda exigir a sua autodemissão. 
Este recusou, por se considerar inocente, mas João Lourenço demitiu-o ainda assim, um mês depois.

O laboratório de intrigas
Para se perceber o que se passa nas FAA é imperativo lembrarmos um texto publicado pelo Maka Angola há quatro anos, a 4 de Junho de 2014, e que nunca foi desmentido.

Segundo o artigo, o então chefe do Serviço de Inteligência Militar (SISM), o general Zé Maria, de triste memória, havia criado “um laboratório de ideias com vista a criar um clima de instabilidade” no seio das FAA. 
Era a estratégia de “purificação das FAA” através de um processo intriguista de afastamento dos generais oriundos da UNITA, também classificados como “sulanos”. 
O alvo principal era o general Nunda.

Faziam parte do laboratório, conforme reportámos na altura, como um triunvirato, o então adjunto do chefe de Estado-Maior General para a Educação Patriótica, general António Egídio de Sousa Santos “Disciplina”, e o responsável pelo Gabinete de Estudos de Segurança da Casa de Segurança do presidente da República, tenente-general João António Santana “Lungo”. 
Egídio substituiu Nunda no comando do EMG das FAA.

No mesmo artigo, alertámos para o facto do referido “laboratório” ter estado a disseminar intrigas ao nível das FAA, segundo as quais “o general Nunda tem estado a privilegiar a formação e promoção de oficiais provenientes da UNITA, com o objectivo de controlar efectivamente o exército e, desse modo, facilitar a tomada do poder pela via militar”.
General Nunda

Os homens do Sul
Em Junho passado, depois de o general Nunda ter sido acusado de pertencer a uma associação de malfeitores, o ora chefe do EMG das FAA, general Disciplina, chamou ao seu gabinete o chefe da Direcção Principal de Preparação de Tropas e Ensino, general Adriano Makevela “Mackenzie”.

Segundo soube o Maka Angola junto de fontes fidedignas, o encontro serviu para o general Disciplina comunicar ao seu subordinado que este tem “dado muitas bolsas de estudo aos homens do Sul”. 
O general Disciplina é natural de Malanje, do grupo etnolinguístico kimbundu.

O que inicialmente era uma estratégia de associação dos generais que integraram as FAA oriundos do então braço armado da UNITA, as FALA, assumiu agora contornos de uma campanha “tribalista” contra os “homens do Sul”.

Por ironia, foi um “homem do Sul”, o general Nunda, quem também autorizou a bolsa de estudo de António Egídio de Sousa Santos, o kimbundu, para o seu pós-doutoramento em França, de que continua a beneficiar.

Certamente, o primeiro dado que o general Disciplina prefere ignorar é o facto de a maior representação étnica no exército ser precisamente do Sul, enquanto região originária do maior grupo etnolinguístico do país: os ovimbundu. 
Estes, por sua vez, sempre foram, de acordo com dados empíricos, o grupo predominante na liderança da UNITA.

Segundo, é consabido, ao nível das FAA, que a responsabilidade primária pela selecção de militares para formação é do almirante Emílio de Carvalho “Bibi”, chefe da Direcção Principal de Pessoal e Quadros do EMG das FAA. 
O Almirante Bibi, um kimbundu originário do Kwanza-Norte, ocupa o mesmo cargo desde a criação das FAA, em 1992.

Desmoralizado como um dos “homens do Sul”, o general Mackenzie pediu a demissão e a passagem à “inactividade temporária”, para se dedicar à formação académica. 
O Maka Angola sabe que a causa principal do seu pedido de demissão assenta no facto de se ter sentido ofendido no seu orgulho patriótico e na sua identidade, por ter visto a sua carreira atacada por ser um “homem do Sul”.

Dos generais da UNITA que haviam integrado a primeira Comissão Conjunta Político Militar (CCPM) e Comissão Mista de Verificação e Fiscalização (CMVF) do Processo de Paz, em 1991, apenas o generais Mackenzie e Peregrino Isidro Wambu Chindondo se mantêm no activo.

 A distracção do comandante
O uso do “tribalismo” nas FAA, como factor de intriga e arma de arremesso em disputas internas, já havia sido abordado na era de Nunda, que havia pedido bom senso às partes. Há quatro anos alertávamos: “A estratégia fundamental do triunvirato é forçar a conotação dos generais oriundos da UNITA, ao abrigo dos Acordos de Paz, com a direcção política da UNITA e promovê-los como uma ameaça permanente à manutenção do poder do MPLA, sobretudo na era pós-Dos Santos.”

A “distracção” do comandante-chefe das FAA, general João Lourenço, parece ter sido aproveitada na sua recente decisão de proibir o general Peregrino Isidro Wambu Chindondo de participar numa conferência na Universidade Nova de Lisboa, de 10 a 16 deste mês. 
A justificação do presidente apenas piora a situação e pode ser vista como mesquinha: “não se trata de um simples funcionário público, trata-se de um oficial general no activo”. Ora, o general tem autorização presidencial para estudar numa universidade estrangeira e não pode participar de um encontro internacional nesta mesma universidade? 
Quem aconselha o presidente? 
Não faz sentido.

O actual conselheiro do chefe do EMG das FAA para a Área Jurídica e Contratual, general Wambu, é doutorando na Universidade Nova de Lisboa em Direito e Segurança, e lecciona Direito na Universidade Metodista de Angola. 
De 2003 a 2006, foi responsável pelo Instituto Superior de Estudos Militares (ISEM) das FAA.

João Lourenço tem a faculdade moderadora de ser filho de pai kimbundu, de Malanje, de mãe do Sul, Namibe, e de ter crescido entre Benguela e Bié. 
Não há etnias hifenadas em Angola e, por isso, João Lourenço tanto pode ser kimbundu como pode ser sulano. 
Não é metade-metade. 
Mas pode fazer melhor e assumir-se apenas como presidente de todos os angolanos.

Por isso, o presidente e comandante-chefe deve compreender o perigo da estratégia de politização étnica que o general Disciplina faz questão de promover abertamente enquanto primeiro comandante das FAA.

As FAA têm sido o principal pilar de integração e reconciliação nacional, bem como o principal factor de estabilidade política no país. 
Um general que se afirma como “bom pastor” e que trata os soldados como o seu “rebanho”, classificando-os pelo local de nascimento, é um verdadeiro perigo.

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