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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Entre o sangue e as lágrimas, a Ucrânia sua para ser “europeia”

JOÃO RUELA RIBEIRO
(em Kiev) 25/07/2016 - 07:38
Manifestação na praça Maidan, a favor da integração na União Europeia, em Dezembro de 2013 REUTERS/GLEB

As mudanças no país são muito poucas e pequenas, mas começam a surgir, embora em Bruxelas ninguém prometa uma integração rápida.


É provável que, por estes dias na Ucrânia, haja poucos homens com mais pressão aos ombros do que Artem Sytnyk. 
Mas a tranquilidade com que este procurador de 36 anos se dirige a um grupo de jornalistas quase faz esquecer que ele é o primeiro director da Agência Nacional Anti-Corrupção (NABU) da história do país. 
Em pouco mais de um ano desde que foi criada, a NABU já abriu mais de cem investigações, sobretudo centradas em juízes e magistrados, e deteve 25 pessoas. 
“É o tipo de progresso que a sociedade espera de nós”, resume Sytnyk, que trabalhou como procurador entre 2001 e 2011, quando se afastou da magistratura em protesto contra as políticas para a Justiça do ex-Presidente, Viktor Ianukovich.

Há muito trabalho a ser feito na Ucrânia para dar continuidade àquilo que motivou a série de protestos iniciados no final de 2013 e que culminaram no derrube de Ianukovich. 
Nos livros de História, esse processo é lembrado como a Revolução da Dignidade, mas ninguém se atreve a dizer que essa revolução terminou. 
A corrupção endémica continua a ser um dos grandes entraves ao desenvolvimento desta ex-república soviética, a classe política mantém os vícios do clientelismo e continua habituada à falta de prestação de contas e os oligarcas continuam a ter uma influência considerável nos assuntos públicos. 
Algumas mudanças reais vão sendo alcançadas, como a criação da NABU, mas quem tomou parte nos protestos na praça Maidan diz ver outras revoluções, mais pequenas, mas igualmente importantes.

Apesar do voluntarismo da nova agência, não houve qualquer condenação de personalidades relevantes e mesmo os casos menores raramente se traduzem em algo de significativo. 
O problema, diz Sytnyk, está nos tribunais superiores que não cumprem a sua parte por integrarem o sistema que a agência quer derrubar. 
Para poder passar aos famosos oligarcas e aos políticos, é necessário “purgar” o sistema judicial. 
A tarefa está longe de ser fácil, ou segura, como mostrou o caso recente de um juiz de Odessa que foi apanhado a receber um suborno e atirou sobre os inspectores.

Uma das revoluções operadas pela NABU, que tem recebido aconselhamento do FBI, é a sua própria existência. 
Sytnyk fala de uma “independência funcional” em relação ao poder político e judicial. 
O processo de selecção é muito rigoroso e os candidatos a inspectores têm de passar por várias fases de exames, não só de conhecimentos, mas também de personalidade e honestidade, incluindo um teste de polígrafo. 
Dentro da agência, há ainda uma divisão responsável em exclusivo por investigar casos internos de agentes suspeitos de corrupção. 
Num ano de funcionamento ainda não houve qualquer processo aberto, diz Sytnyk, mas há uma vigilância constante aos mais de 150 inspectores: é comum haver, por exemplo, testes de rotina para avaliar a permeabilidade dos agentes a situações em que podem estar a ser corrompidos. 
“Vou ter tolerância zero à corrupção e estou empenhado em alcançar resultados sem qualquer receio ou favores das personalidades políticas em questão”, escrevia Sytnyk, na altura em que a agência foi inaugurada.

Fome de transparência

Há muitas causas para que um site possa ceder por causa do tráfego excessivo: a espera por um novo gadget electrónico, o lançamento de bilhetes para um concerto do mais recente fenómeno pop ou a saída de mais um episódio da série de dragões e mortos-vivos mais popular do momento. 
Mas acompanhar a negociação de um contrato público em tempo real deve estar bem para baixo nesta lista.

Foi o que aconteceu com um dos primeiros concursos públicos do Ministério da Defesa ucraniano mediado por uma nova plataforma electrónica, em Junho do ano passado. Um conhecido blogger alertou para o acontecimento que se aproximava e disse aos seus seguidores para acompanharem a licitação. 
Esta fome de transparência apanhou de surpresa até os próprios criadores da ProZorro, um grupo de activistas que participaram nas manifestações na Maidan. 
Os jovens, vindos de áreas como a Informática, Gestão ou Finanças, calcularam que as más práticas que envolviam os contratos públicos causavam perdas no valor de dois mil milhões de euros todos os anos para os cofres do Estado. 
Surgiu então a ideia de criar uma plataforma electrónica onde instituições públicas e fornecedores estabelecessem contacto e fosse possível aceder a toda a informação relativa a cada negócio e acompanhá-los em tempo real. 
Em pouco mais de um ano, foram feitos mais de 130 mil negócios através deste sistema e a ProZorro foi galardoada num concurso mundial de contratação. 
Desde Abril que todas as agências governamentais, assim como as empresas estatais monopolistas, estão obrigadas por lei a usar este serviço.

O deputado Alexei Ryabchyn diz não ser possível “saltar etapas” no desenvolvimento da Ucrânia. 
“Gosto sempre de dar o exemplo da Roménia, que mesmo sendo membro da UE continuou a ser um país corrupto e só após dez anos de reformas é que venceram a luta anti-corrupção. 
Nós não temos fundos europeus, nem apoios europeus como os Estados-membros, mas temos a vontade desesperada do povo ucraniano em querer aproximar-se da Europa”, diz o parlamentar do partido pró-europeu Pátria (Batkivshchyna), liderado pela carismática e polémica ex-primeira-ministra, Iulia Timochenko.

O caminho europeu da Ucrânia não tem sido fácil, mesmo se se ignorar a guerra no Leste que já fez quase dez mil mortos. 
Em Abril, um novo Governo tomou posse, depois de meses de crise política. 
Vários ministros encarados como “reformistas” abandonaram o executivo, sem esconder o desânimo pela lentidão das reformas e pela manutenção dos velhos hábitos corruptos. 
Um deles foi Aivaras Abromavicius, um lituano com passado na banca de investimento e que era titular da pasta da Economia, cuja saída do Governo, em Fevereiro, foi um dos primeiros sintomas de que o espírito reformista e pró-europeu dos novos líderes ucranianos estaria a esmorecer.

O Fundo Monetário Internacional decidiu adiar o pagamento da segunda tranche do programa de assistência financeira de 36 mil milhões de euros concedido em 2014 e a pressão para que o novo Governo faça avançar as reformas tem aumentado. 
Em Kiev para avaliar os primeiros cem dias do novo Governo, o comissário europeu responsável pela Política de Vizinhança e Alargamento, Johannes Hahn, assume que a corrupção é o grande obstáculo ao desenvolvimento da Ucrânia. 
Três meses depois da visita anterior, Hahn diz que começa a ser adoptada a “legislação necessária” para lidar com a corrupção: “O básico está lá, agora trata-se de implementar:”

Uma das reformas que mais impacto está a ter na vida quotidiana dos ucranianos é a do sector do gás. 
Desde a independência, em 1991, que a Rússia manteve os subsídios ao gás consumido na Ucrânia, criando preços artificialmente baixos. 
Com a anexação da Crimeia e a quebra quase total das relações diplomáticas e económicas entre os dois países, o mercado ucraniano passou a ficar privado desses subsídios. 
“A Naftogaz [empresa pública ucraniana de distribuição de gás] era usada maioritariamente como um instrumento para fazer duas coisas: primeiro, para subornar o eleitorado através de enormes subsídios pré-pagos e, em segundo lugar, para práticas corruptas”, disse o novo director da empresa, Andrei Kobolyev, em entrevista ao Wall Street Journal. 
Agora, os preços estão sujeitos às flutuações normais do mercado, o que significou um choque inicial de uma subida para o quádruplo da conta paga pela maioria dos consumidores.

O corte com a Rússia tem outras implicações económicas. 
Entre 2013 e 2014, as trocas entre os dois países caíram mais de 40%, o que não foi compensado pelo crescimento de 12% das trocas com os países da UE. 
“Não podemos, de um dia para o outro, compensar as perdas devidas às restrições da Rússia”, admite Hahn. 
O comissário diz que houve um financiamento de 200 milhões de euros aos países que assinaram acordos de comércio livre com Bruxelas — Ucrânia, Moldávia e Geórgia — para que os tratados sejam “acomodados”.

Continuar a revolução

Há, porém, uma recusa muito forte em não deixar o desenho do futuro da Ucrânia apenas nas mãos das instituições internacionais ou dos políticos. 
Nos últimos dois anos, começaram a proliferar as mais diversas associações cívicas, como os voluntários para apoiar deslocados internos da Crimeia e das zonas ocupadas do Leste, grupos para monitorizar os orçamentos locais ou para desenvolver e propor reformas em diversas áreas. 
Uma delas é o Pacote de Reanimação de Reformas, uma organização não-governamental, financiada pela US Aid e pela Comissão Europeia, que reúne mais de 300 especialistas e think-tanks que se têm debruçado sobre várias áreas de políticas públicas e que já participaram na elaboração de 85 diplomas legislativos. 
Uma das grandes prioridades é a reforma judicial, diz-nos um dos responsáveis na sede da associação, cujas paredes brancas, frases inspiradoras e um exército de computadores Macintosh lembram uma start-up.

Mykhailo Zhernakov começa por notar que a confiança da sociedade nos tribunais varia entre os 4% e os 12%. 
“Em alguns inquéritos, está ligeiramente abaixo da confiança nos media russos”, diz o ex-juiz. 
Uma vez mais, é a corrupção que mina o sistema. 
Zhernakov diz que há duas formas de alguém se tornar juiz na Ucrânia: “Paga um suborno incrivelmente alto; ou então tem ligações com alguém de alto nível.”

O acesso à carreira de magistrado é, portanto, um dos pontos mais sensíveis na reforma judicial. 
Actualmente, é um comité composto maioritariamente por juízes, académicos e advogados, e que está muito dependente da administração presidencial, que escolhe os juízes do Supremo Tribunal. 
Se este modelo não for mudado, “podemos livrar-nos dos juízes de Ianukovich e acabar por ter os juízes de Poroshenko”, avisa Zhernakov.

Quando as últimas tendas foram levantadas da Praça da Independência, Oleg Slabospitsky, de 27 anos, pôs-se uma pergunta que era, naquele momento, transversal aos jovens ucranianos: “Questionei-me se seria mais eficaz no Exército ou a controlar o trabalho do Governo.” 
A guerra começava a rebentar no Leste da Ucrânia contra os separatistas pró-Moscovo, mas Oleg percebeu que havia tanto a fazer pelo futuro do seu país num escritório em Kiev como na frente de batalha. 
Tornou-se assessor pro bono de um deputado independente e está envolvido na reforma para a descentralização administrativa.

Recorda agora os tempos em que passava os dias na Maidan e lamenta a pouca mobilização que se seguiu. 
“Toda a gente queria participar na altura, era algo de moderno e popular, mas agora temos muito trabalho, não há concertos todos os dias, não há manifestações”, diz. Calcula que apenas 10% dos manifestantes estejam hoje envolvidos de alguma forma em associações cívicas. 
“Se todas as pessoas que participaram na Euromaidan se envolvessem no processo de reformas, acho que teríamos um país novo em dois anos.”

É impossível saber quanto tempo irá demorar até a Ucrânia se tornar no país imaginado na Maidan, ou mesmo se esse dia irá chegar. 
A integração europeia é o objectivo último, mas ninguém quer alimentar falsas esperanças. 
“Não devemos especular sobre nenhum futuro possível, para não falar de nenhum prazo”, disse o comissário europeu, Johannes Hahn, admitindo, porém, que há expectativa de que o regime de vistos para viajar para a UE seja abolido no Outono.

Isto é sabido em Kiev, mas, por agora, o empenho é em fazer as reformas necessárias que foram adiadas nas últimas duas décadas. 
Alexei Ryabchyn diz que “não é justo dizer à UE ‘aceitem-nos como somos’”. 
“Quando construirmos as nossas instituições, quando abrirmos os nossos mercados, quando cumprirmos os nossos orçamentos sem pedir assistência, mas competindo por investimento, aí estaremos perante um país diferente.”

O país ainda não mudou como queriam os activistas da Maidan, mas há pequenas revoluções que se vão fazendo. 
As ruas de Kiev estão apinhadas de pessoas nesta altura do ano. 
Onde antes a polícia e os manifestantes entravam em confronto, agora há concursos de dança. 
O país está mais pobre — no ano passado, a moeda perdeu mais de 60% do seu valor face ao dólar — e as esplanadas estão vazias, mas as pessoas contentam-se com os muitos quiosques que animam os passeios das largas avenidas e onde o café e os sumos são substancialmente mais baratos.

A capital está longe de ser uma cidade deprimida. 
“Os pequenos negócios começaram a florescer, mesmo sendo difícil em termos económicos”, conta Myroslava Karpyn, 27 anos, que trabalha em marketing e participou nas manifestações na Maidan. 
“As pessoas querem fazer a sua própria roupa, querem fazer os seus sapatos, querem fazer gelados e querem vendê-los”, diz.

Kate Voznytsya, 29 anos, que participou nas manifestações e editou filmagens feitas por outros activistas, conta que recentemente foi a uma festa de recolha de fundos para uma revista cultural, algo “pouco provável” há dois anos. 
Aos sábados, é habitual grupos de pessoas juntarem-se para limparem as suas ruas, conta Myroslava. 
”Acho que começámos a viver nestes standards mais europeus, pelo menos no nosso imaginário — e eles são mais elevados do que os reais.”

O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia.


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