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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O CAMPO DA MORTE

 O CAMPO DA MORTE
Rafael Marques De Morais

INTRODUÇÃO 

Os 50 casos de execuções sumárias reportados neste relatório ocorreram entre Abril de 2016 e Novembro de 2017, sobretudo nos municípios de Cacuaco e Viana, os mais populosos de Luanda. Cerca de metade da população da capital do país, estimada em sete milhões de habitantes, vive nesses dois municípios.
Trata-se de uma pequena amostra ilustrativa de uma actividade metódica e sistemática que afecta muitas outras centenas de vítimas: o assassinato, por parte de operacionais do Serviço de Investigação Criminal (SIC) — dirigido pelo comissário Eugénio Pedro Alexandre —, de jovens tidos como delinquentes ou simplesmente indesejados.
Não se trata de casos esporádicos, mas sim de um mecanismo de exterminação montado pelo SIC, com a colaboração de alguns cidadãos, os quais indicam, através de listas ou apenas verbalmente, os jovens a serem abatidos, sem qualquer procedimento de investigação. A título de exemplo, o jovem Abega (ver Caso n.º 18) foi confundido com um outro, de nome Drogba, um presumível delinquente. Foi levado para as traseiras de um autocarro e atingido com dois tiros, um no olho esquerdo e outro nas costas.
Acreditando que ele estava morto, os polícias abandonaram-no, mas Abega sobreviveu para contar a sua história.
Depois de, em Abril de 2017, termos reportado e partilhado todos os casos em nossa posse, recolhidos à data, com o ministro do Interior, Ângelo de Barros Veiga Tavares, verificou-se um longo período de acalmia, que coincidiu também com a campanha eleitoral e o primeiro mês pós-eleitoral. Depois das eleições de 23 de Agosto e da tomada de posse do novo presidente a 26 de Setembro, a 30 de Setembro, porém, os agentes do SIC voltaram às campanhas de assassinatos.
Para além de Cacuaco e Viana — os dois municípios sobre os quais incide o nosso levantamento de casos — também no município do Cazenga ocorreram incontáveis assassinatos. Alguns casos constam da lista descritiva do relatório e, pelo seu carácter inaugural e paradigmático, este município merece lugar de destaque na introdução.
Na realidade, a comuna do Kikolo, onde ocorreu grande parte dos assassinatos, era até recentemente parte do município de Cacuaco, mas foi dividida administrativamente para fins eleitoralistas. Grande parte do seu território passou a estar sob jurisdição do Cazenga. Cacuaco tornou-se o principal bastião eleitoral da oposição. A anexação de grande parte do
Kikolo (o foco maior da UNITA) ao Cazenga, onde o partido no poder — o MPLA — domina, facilita a correcção da assimetria eleitoral a favor do MPLA.
No relatório, mantemos o Kikolo como parte integral de Cacuaco, porque grande parte da população local, e não só, ignora a mudança administrativa.
Nos casos onde o comando municipal da Polícia Nacional no Cazenga tem jurisdição operacional, fazemos a devida referência.
O primeiro caso de retorno pós-eleitoral à campanha de execuções sumárias, devidamente identificado, ocorreu precisamente no Cazenga.
Por volta das três da madrugada de 30 de Setembro de 2017, os jovens Milton e Lami-Py dirigiam-se a casa, no bairro da Mabor, vindos de uma festa na Casa Dubai, no bairro Hoji-Ya-Henda, quando foram apanhados na perseguição de dois supostos delinquentes, um dos quais conhecido por Jó do Boy, por operacionais do SIC.
Segundo testemunhas oculares, os quatro agentes estavam devidamente identificados com coletes do SIC, e faziam a perseguição a pé, enquanto outros dois seguiam num Toyota Land-Cruiser branco de vidros fumados.
António Domingos Miguel, pai de Milton, narra o sucedido através dos depoimentos recolhidos junto dos vizinhos e outras testemunhas oculares.
A 28 de Setembro, na cidade de Malanje, onde ambos viviam, Milton informara-o de que visitaria a mãe em Luanda naquele fim-de-semana. E assim fez.
“A 50 metros de casa, os jovens foram surpreendidos pelo SIC. Os vizinhos que escutaram pela janela disseram-me que o meu filho ainda conversou com os homens do SIC. Explicou-lhes que vivia em Malanje, tinha terminado o curso de electrónica.”
Durante a conversa, um dos agentes fez um disparo para o chão e, segundo dois jovens que assistiam, a bala atingiu a perna esquerda de Milton, que logo gritou por socorro. Uma vizinha abriu a porta para atestar o bom carácter dos jovens.
“Os rapazes imploraram, disseram que nunca foram bandidos. Os homens do SIC ainda consultaram as suas listas de alvos a abater, mas um deles fez logo um disparo que atingiu Milton no peito. O meu filho morreu na estrada”, conta o pai.
Por sua vez, Lameth, ao ver o amigo tombado, encetou a fuga aos gritos de socorro. Tentou entrar em casa da vizinha, que, em vão, alertou os perseguidores de que os jovens eram “bons” filhos do bairro. “Cala a boca e fecha a porta, se não queres morrer”, ameaçou um dos agentes, segundo depoimentos recolhidos no local.
Lameth fugiu por um beco sem saída, o mesmo por onde seguira Jó do Boy. Escondeu-se na casa de banho (separada da casa) de uma vizinha.
“Fuzilaram-no na casa de banho, à queima-roupa, com um tiro do lado direito da cabeça e outro da testa, no canto onde estava de cócoras. Deixaram-no aí”, relata um dos vizinhos.
“O meu vizinho Bebucho, que assistiu a tudo, foi quem apanhou o Jó do Boy na fuga.
Os agentes algemaram-nos a ambos e ali mesmo perguntou ao Bebucho se este os tinha visto a matarem os seus amigos. Libertaram-no”, conta o pai de Milton.
Acto contínuo, os agentes conduziram Jó do Boy à esquadra policial do Hoji-ya-Henda.
Os corpos dos malogrados foram recolhidos pelo SIC, por volta das cinco da manhã, sem qualquer perícia legal. O comandante Quintas, dirigiu-se ao local do crime para se inteirar do caso e, diante de vários residentes, disse apenas:
“Mais um mau trabalho."
“O Jó do Boy foi morto nessa mesma noite pelo SIC, e o seu corpo depositado directamente na morgue. Os familiares foram ter com o meu vizinho, que explicou apenas tê-lo agarrado. Um agente teve pena da família e, a 2 de Outubro, informou-os de que o Jó do Boy fora morto no mesmo dia e que o seu corpo se encontrava na morgue, entre os não identificados”, refere António Domingos Miguel.
É assim que, tipicamente, estes “esquadrões da morte” operam. Organizados em grupos armados com beneplácito oficial, procedem a assassinatos selectivos extrajudiciais com finalidades específicas1
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Jeffrey A. Sluka (ed.), Death Squad: The Anthropology of State Terror (The Ethnography of Political Violence), Filadélfia, 2000.

A HISTÓRIA DOS ESQUADRÕES DE MORTE

Na história moderna, os “esquadrões da morte” foram iniciados pelo Partido Comunista bolchevique, após o seu triunfo na Revolução Russa de 1917. Através da sua polícia política, a Cheka, os bolcheviques procediam à eliminação, sem qualquer julgamento, dos “inimigos do povo”. Este método foi aprofundado pela NKVD (Comissariado do Povo para os Assuntos Internos) de Estaline, que se destacou pela criação de listas de alvos a abater
e pela imposição de quotas de assassinatos a executar2
Do lado oposto, na Alemanha nazi, as Unidades Móveis de Extermínio das SS também se
especializaram nos assassinatos extrajudiciais de inimigos do Reich, de judeus e de outras minorias3

A metodologia utilizada é sempre a mesma: o assassinato baseado em listas criadas por grupos com apoio do poder político. Em Viana não é diferente: um vendedor de cartões de recarga telefónica, Simão Catequele, é responsável por elaborar a lista de extermínios do seu bairro, Mulenvos de Cima. Nessa lista, inclui dois vizinhos, que são levados para a esquadra local, onde agentes policiais lhes esfolam as costas com catanas. Aparentemente, trata-se de um ajuste de contas, um caso passional em que Catequele usou o poder arbitrário da sua lista para que as forças do Estado eliminassem os seus rivais (ver Casos n.os 31 e 36).
O modelo dos “esquadrões da morte” foi adoptado em vários países, sobretudo em ditaduras.
Um dos casos mais próximos de Angola ocorreu no Brasil durante a Ditadura Militar de 1964-1985. O relatório brasileiro posterior aos eventos descreve-os da seguinte forma: “A formação de grupos [esquadrões da morte] se deu em São Paulo no final dos anos 1960. O Esquadrão paulista surgiu justificado numa espécie de ‘ofensiva contra o crime’. Os agentes envolvidos foram apontados como autores de tortura e morte de civis e presos políticos.” Muitas vezes, acrescenta o relatório, estes grupos estavam George Leggett, The Cheka: Lenin’s Political Police, Oxford,1987.
Richard Rhodes, Masters of Death: The SS-Einsatzgruppen and the Invention of the Holocaust, Nova Iorque, 2003.

envolvidos com a criminalidade, agindo a favor “de diversos interesses, com ligações directas com as economias criminais, como, por exemplo, o jogo do bicho, a prostituição e também o tráfico de entorpecentes, além de torturas e assassinatos”4

E esta é uma primeira questão que se coloca em Angola: os “esquadrões da morte” obedecem a ordens da hierarquia e do poder político ou estão ao serviço de organizações ligadas ao crime?
Em todo o caso, as duas realidades, a política e a criminosa, acabam por se confundir. No Brasil, o mesmo aconteceu. Roberto Abreu Sodré, por exemplo, à época governador de São Paulo, foi um dos principais defensores dos “esquadrões da morte”, afirmando que estes acabavam com os marginais.
O que posteriormente se comprovou foi que estes esquadrões matavam quem quer que se lhes opusesse, marginal ou não, quem se opusesse ao governo e/ou aos interesses das organizações criminosas que patrocinavam os polícias.
Para demonstrar que a estratégia do extermínio não combate o crime, a Human Rights Watch reportou, em 2015, o assassinato policial de cerca de 3345 pessoas no Rio de Janeiro5 , onde as estatísticas criminais aumentam todos os dias, e a insegurança também6

Presentemente, um dos países mais assolados por execuções extrajudiciais são as Filipinas. Segundo dados publicados7, mais de 3600 pessoas foram assassinadas nas Filipinas desde 1 de Julho de 2016, ou seja, desde que Rodrigo Duterte tomou posse como presidente e iniciou a sua guerra contra as drogas e o crime. Os assassinatos em massa provocaram preocupação internacional e geraram um clima de anarquia e de terror.
Para o nosso relatório, devido às semelhanças com o caso angolano, interessa revelar o esquema de funcionamento da campanha de morte promovida pelo governo e as autoridades das Filipinas. Tal como em Angola, o governo recorre às forças de autoridade para executar os seus planos de aniquilação de cidadãos indesejados.
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Comisão da Verdade do Estado de São Paulo, disponível [online] em http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-i-cap2.html (acedido a 12-10-2017).
HRW, “Brazil police abuses feed cycle violence”.  ttps://www.hrw.org/news/2017/01/12/brazil-police-abuses-feed-cycle-violence
https://www.hrw.org/news/2016/07/07/brazil-extrajudicial-executions-undercut-rio-security
7 Kate Lamb, Philippines secret death squads: officer claims police teams behind wave of killings, disponível [online] em https://www.theguardian.com/world/2016/oct/04/philippines-secret-death-squads-police-officer-teams-behind-killings
(08-03-2017).

De acordo com informações transmitidas por um alto oficial filipino, a polícia e os serviços secretos do seu país organizaram equipas de operações especiais que “neutralizam” (i. e. matam) os indesejáveis. Este oficial deixa bem claro: o governo criou esquadrões de morte para matar os criminosos. Existem dez equipas de operações especiais da polícia, que foram recentemente formadas e são altamente secretas, cada uma com 16 membros. Essas equipas são coordenadas para executar uma lista de alvos:
suspeitos de utilização de drogas, traficantes e criminosos em geral. Nas Filipinas, os assassinatos ocorrem maioritariamente durante a noite, com os oficiais encapuçados e vestidos de preto.
As operações decorrem de modo simples: os polícias acertam os seus relógios, e têm um minuto ou dois para extrair os indivíduos-alvo de suas casas, matando-os de imediato — com rapidez e precisão, sem testemunhas.
Depois, despejam os corpos na cidade vizinha ou debaixo de uma ponte.
Como veremos, em Angola o modus operandi é o mesmo. A diferença mais evidente é a maior impunidade e descontracção com que os agentes policiais angolanos actuam — à luz do dia, como os fuzilamentos no Campo da Escolinha, bairro 6, perante uma audiência de alunos em recreio, por vezes interrompendo jogos de futebol para as matanças.
Um dos efeitos, aparentemente contraditórios, das políticas de extermínio de “marginais” é a forma como os verdadeiros mandantes e beneficiários do crime acabam por ser protegidos pelo abate dos mais fracos.
Não por acaso, o filho do presidente das Filipinas foi recentemente acusado, no Senado, de ser um dos grandes traficantes de droga das Filipinas.
E no entanto, assim que tomou posse, Rodrigo Duterte esclareceu as suas intenções, anunciando que ofereceria medalhas e dinheiro aos cidadãos que matassem traficantes de droga. “Cumpra com o seu dever e se, de caminho, matar mil pessoas porque está a cumprir com o seu dever, eu protegê-lo-ei.”8
Noutra alocução, no mesmo dia, Duterte declarou: “Se conhece algum drogado, mate-o você mesmo, porque obrigar os pais a fazê-lo será muito doloroso.”9
Portanto, o corolário lógico dessa ordem seria a carta-branca para que as autoridades policiais matassem o seu filho sem qualquer averiguação nem julgamento. Entretanto, obviamente o filho de Duterte reagiu à acusação do Senado recorrendo à presunção de inocência e a todos os meios legais disponíveis para se defender.
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8 http://time.com/4495896/philippine-president-rodrigo-duterte/
9 Idem

A DINÂMICA DAS EXECUÇÕES SUMÁRIAS EM ANGOLA
Em Angola, como se sabe, os maiores bandidos encontram-se entre os dirigentes políticos e sua rede clientelar. A aceitar a lógica que preside às execuções extrajudiciais sancionadas pelo governo, qualquer cidadão pode matar os dirigentes corruptos e cleptomaníacos, não os sujeitando a qualquer julgamento ou processo legal. No entanto, o governo angolano parece considerar que só os pilha-galinhas, os pequenos ladrões e delinquentes, merecem ser abatidos, e que os grandes criminosos, os grandes corruptos verdadeiramente responsáveis pela miséria do país, não podem ser tocados.
Acreditam sem dúvida que estas campanhas de extermínio geram entre o povo a ilusória sensação de que algo está a ser feito pela sua segurança. E assim, no barulho das luzes, os tubarões do crime seguem caminho tranquilamente.
Várias são as consequências do comportamento delinquente de inúmeros dirigentes e funcionários públicos que roubam o dinheiro destinado ao exercício das funções do Estado, ou que se apoderam dos recursos naturais e patrimoniais do país — terras e tudo o mais que lhes possa garantir lucro ou poder. Isto para não mencionar o esbulho permanente de bens, negócios e actividades profissionais levadas a cabo por meros cidadãos, desde investidores até pequenos comerciantes e zungueiras.
Os dirigentes criminosos deixaram Angola com a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo; com cerca de 20 milhões de pessoas no limiar da pobreza (num total de 24 milhões de habitantes). Que se saiba, nenhum dirigente foi até hoje punido pela morte desnecessária dos infantes angolanos, nem pela miséria a que condenam quotidianamente 20 milhões de pessoas.
São estes mesmos dirigentes que promovem campanhas de assassinato de marginais. Que conceito têm, então, de “marginal”? Marginal é aquele que rouba o telemóvel ou aquele que conduz à morte, todos os anos, milhares e milhares de crianças por conta dos seus actos delinquentes? Ou ambos?
E qual deles o pior? Afinal de contas, o que é mais grave: deixar os hospitais sem meios para salvar vidas ou roubar um telemóvel?

No decurso das nossas investigações, muitas testemunhas contactadas foram peremptórias ao afirmar que os bandidos tiram a vida de inocentes e, por isso, merecem morrer também. “Bandido bom é bandido morto”, repetiram incontáveis cidadãos residentes nos locais de crime e nas redes sociais. Nunca lhes ocorria o facto de não haver pena de morte em Angola e de termos uma Constituição que consagra a presunção de inocência. Se o alegado bandido cai nas mãos das autoridades, porque não julgá-lo e punilo de acordo com a legislação em vigor?
Para se compreender a gravidade das reacções de grande parte dos cidadãos às execuções sumárias, veja-se o caso de Marcolino Hossi “Litana” e seus amigos (ver Caso n.º 47). A 5 de Maio de 2016, Litana, de 22 anos, e outros dois jovens foram fuzilados no “Campo da Morte” (como se tornou conhecido o campo junto à Escola Primária e do 1º Ciclo do Ensino Secundário nº 5113, no bairro 6), em Viana, com crianças a assistir. Conforme relata Pedro Fito, primo de Litana, “muitos [transeuntes e residentes locais] vieram aplaudir a acção do SIC, dizendo ‘bem feito’, porque os jovens atormentavam a população e a polícia estava a fazer um bom trabalho”. Ainda de acordo com o seu relato, “a população pisoteou os corpos dos malogrados. Outros diziam que [os mortos] estavam a ressuscitar e atiravam-lhes areia”.
Perante cidadãos partidários de acções do Estado que violam a Constituição e demais legislação angolana, ainda por cima de modo desumano e cruel, para que servem afinal as leis?
Por que motivo a sociedade angolana parece em grande parte apoiar, sem questionar, as execuções de presumíveis pilha-galinhas e ladrões de telemóveis, muitas vezes inocentes, mas não dos reis do crime? A estes, nem sequer se lhes pede que se sujeitem às leis vigentes no país — porquê?
A política de assassinatos do governo assenta num plano demagógico: ao abater o vizinho supostamente criminoso, num bairro pobre, isso tem impacto no ethos da comunidade, e a população sente que o Estado está a combater o crime. Em contrapartida, quando se mata um inocente, é apenas um mau trabalho (como lamentou o comandante Quintas).
Entre as comunidades pobres, o ministro, o general, o governador — que moram em zonas privilegiadas e não têm qualquer contacto directo com a população — acabam por ser apenas figuras do imaginário. Estas comunidades encontram-se também distantes, excluídas, da chamada classe média e dos supostos sectores intelectuais e de intervenção cívica — que deveriam ser os mediadores entre o poder, a elite reinante e maioria da população.

Devido ao enorme distanciamento entre o poder e o povo, aquilo que os ministros, os generais, os governadores, suas famílias e associados fazem ou o que lhes acontece não é sentido pelos pobres e excluídos como tendo impacto nas suas vidas diárias. Como resultado, a esmagadora maioria da população sente que o combate ao crime passa por matar o vizinho delinquente, e não por prender o ministro que rouba o dinheiro destinado a apetrechar hospitais e a comprar medicamentos para o povo. Impossibilitado de sair do ciclo de exclusão económica, social e cultural, sem condições dignas de vida, muito menos qualquer espécie de literacia, este mesmo povo não é capaz de associar a falta de empregos — que afecta profundamente a juventude e potencia a delinquência — à má governação. É este o cenário que sustenta a estratégia das execuções extrajudiciais.

PARA QUE SERVEM AS LEIS E O DIREITO À VIDA? 
O respeito pela vida humana, em Angola, nunca foi uma premissa dos governantes, que sempre viram na violência arbitrária e na impunidade as principais formas de controlo da ordem e de manutenção do poder. Por consequência, a desvalorização da vida humana enraizou-se na sociedade.
Nos comentários das redes sociais sobre execuções sumárias, verifica-se que muitos cidadãos celebram a morte dos supostos delinquentes. Para esses cidadãos, não é necessário qualquer raciocínio sobre o Estado de direito.
Conforme procurámos demonstrar, esta perspectiva é induzida pelo distanciamento dos poderes públicos em relação ao povo. O objectivo destas execuções é precisamente explorar e alimentar os medos mais directos das populações, como forma de afastar ainda mais o cidadão das reivindicações sobre os seus direitos elementares, incluindo o direito à vida.
As execuções sumárias comprovam que, em Angola, o suposto Estado de direito apenas serve de capa para legitimar os detentores do poder e como instrumento de impunidade para os mais fortes. Por exemplo, o governo angolano proclama alto e bom som a sua soberania — evocando leis, protocolos internacionais e imunidades que concede a refinados ladrões — para tão-somente impedir que o ex-vice presidente Manuel Vicente seja julgado em Portugal, onde é acusado de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e falsificação de documentos. Manuel Vicente é um dos dirigentes que mais saquearam Angola e que mais contribuíram para empobrecer a população. Ao mesmo tempo, neste “Estado de direito” não se aplicam quaisquer leis que defendam os mais fracos.
Não defendemos bandidos, assim como não defendemos os actos arbitrários do governo. Defendemos, sim, a justiça e o Estado de direito. Se existem leis, há que fazê-las cumprir.


O CONTRADITÓRIO
A 26 de Abril de 2017, escrevemos ao ministro do Interior, comissário-chefe Ângelo de Barros Veiga Tavares, informando-o acerca do trabalho de investigação sobre as execuções sumárias em Cacuaco e Viana. A mesma carta também foi endereçada ao então comandante-geral da Polícia Nacional, comissário-geral Ambrósio de Lemos; ao procurador-geral da República, general João Maria de Sousa; ao presidente da Assembleia Nacional, comissário-chefe (res.) Fernando da Piedade Dias dos Santos; e ao então ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira.
A 29 de Maio, o ministro Veiga Tavares concedeu-nos uma audiência, na presença de dois assessores, durante a qual referiu ter encaminhado o relatório para a Procuradoria-Geral da República para averiguações, escusando-se a tomar quaisquer medidas.
Afirmámos ao ministro que não tínhamos qualquer razão para suspeitar de que as ordens de execução sumária proviessem dele, mas entendíamos que, enquanto responsável político e administrativo do SIC, a ele competia empreender todas as acções necessárias para punir os responsáveis e os executores, além de garantir a actuação legal dessa força policial.
Apesar de toda a informação detalhada que fornecemos ao ministro e às restantes entidades acima mencionadas, não fomos até ao momento notificados da abertura de qualquer processo de investigação, fosse por parte da Procuradoria-Geral da República, fosse por parte do Ministério do Interior. Não obtivemos sequer uma resposta formal à nossa carta e respectivo relatório de casos.
Para conhecimento público, abaixo transcrevemos o conteúdo integral dessa carta.

CARTA AO MINISTRO (26 DE ABRIL DE 2017)

                                         Exmo. Sr. Ministro do Interior, Sr. Ângelo de Barros Veiga Tavares
                                         [C/C: Comandante-Geral da Polícia Nacional, Comissário-Geral
                                         Ambrósio de Lemos
                                         Procurador-Geral da República, General João Maria de Sousa
                                         Presidente da Assembleia Nacional, Comissário-Chefe (Res.)
                                         Fernando da Piedade Dias dos Santos
                                         Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Sr. Rui Mangueira]

                                         Luanda, 26 de Abril de 2017

                                         Assunto: Execuções extra-judiciais em Cacuaco e Viana

Exmo. Sr. Ministro do Interior,

Na qualidade de jornalista e defensor dos direitos humanos, tenho estado a investigar, há vários meses, uma série de execuções sumárias levadas a cabo nos municípios de Cacuaco e Viana.
Estas execuções sumárias têm sido regulares e, regra geral, são imputadas a colaboradores ou agentes do Serviço de Investigação Criminal.
Até ao momento, consegui obter a devida identificação de perto de cem indivíduos indefesos que foram executados no período de um ano. Além destes casos devidamente identificados, obtive ainda informações sobre mais dezenas de casos de execuções sumárias.
Portanto, a minha investigação contabilizou perto de 200 execuções sumárias. Quer isto dizer que, em apenas um ano, pelo menos 200 indivíduos foram assassinados, sem direito a julgamento nem a qualquer tipo de defesa, ao que tudo indica por forças da lei.
A maioria dos fuzilados — mas nem todos — tem antecedentes de detenção ou cumpriu penas de prisão, o que dá a entender que estas execuções sumárias são uma forma brutal e criminosa que as autoridades encontraram para “eliminar” a delinquência. Algumas das vítimas, porém, são inocentes, e tive a oportunidade de entrevistar dois sobreviventes: o marceneiro Emílio Manuel Mbaxi, de 22 anos, foi atingido com três tiros (abdómen, membros superior e inferior), a 21 de Janeiro de 2017; o taxista Pedro Avelino Eduardo “Abega”, de 25 anos, foi atingido com um tiro no olho e outro nas costas, que lhe atravessou o abdómen, a 4 de Fevereiro passado. Os seus testemunhos são bem elucidativos acerca dos crimes em série que estão a ser cometidos alegadamente por agentes ou colaboradores do SIC. Vale a pena, Senhor Ministro, ouvir as suas experiências.

Nos termos do artigo 4.º, n.º 3 b) do seu Estatuto, o SIC é um serviço executivo central do Ministério do Interior, a par da Polícia Nacional, mas independente desta.
Assim, o responsável imediato pelo SIC é o Ministro do Interior, a quem compete dirigir e superintender os serviços executivos centrais (artigo 7.º c) do referido Estatuto).
Tendo em conta que a autoria das referidas execuções sumárias tem sido sistematicamente
atribuída a agentes ou colaboradores do SIC, pedimos que o Senhor Ministro — enquanto hierarquia máxima dessa instituição policial —intervenha urgentemente, para travar e prevenir futuros crimes alegadamente cometidos por esses agentes.
Assim, pela presente, solicito os V/ bons ofícios no sentido de me conceder uma audiência para apresentar — com garantias de segurança para as vítimas sobreviventes, os familiares, as testemunhas e amigos denunciantes — os resultados preliminares da minha investigação.
Outrossim, poderei submeter as minhas questões por escrito.
No final de Maio ou princípio de Junho, deverei publicar um relatório completo com os resultados da minha investigação, de modo a tornar públicos estes graves crimes. Nesse relatório, gostaria de poder afirmar que as autoridades competentes actuaram entretanto, por todos os meios e com toda a sua eficiência, tendo conseguido estancar a onda de assassinatos e tendo implementado medidas correctivas e formativas para que semelhantes horrores não se repitam no futuro.
Na expectativa de merecer a V/ atenção, subscrevo-me com saudação patriótica.

Sinceramente,

Rafael Marques de Morais


METODOLOGIA
Dois factores essenciais determinaram a escolha dos municípios de Viana e de Cacuaco, em Luanda, como locais de investigação.
Em primeiro lugar, foi aqui que se registou a ocorrência sistemática e geograficamente concentrada de execuções sumárias.
Por exemplo, ao longo de vários meses, os agentes do SIC fuzilaram muitos jovens no bairro 6, município de Viana, todos eles no campo junto à Escola Primária e do 1º Ciclo do Ensino Secundário nº 5113 em plena luz do dia. Tornou-se comum que os alunos assistissem aos fuzilamentos enquanto decorriam os intervalos das aulas e, muitas vezes, os matadores interrompiam o jogo de futebol para realizarem o seu trabalho. Apesar de não
ter sido possível identificar a maioria das vítimas do “Campo da Morte”, por terem sido para lá levadas de outras zonas de Viana, conseguimos contactar dezenas de testemunhas, a partir das quais pudemos compreender o modus operandi dos assassinos ao serviço do Estado.
Em Cacuaco, António Bernardo, cujo filho foi fuzilado a 27 de Janeiro de 2017 frente a sua casa, descreveu o modo como eram perpetradas as execuções no bairro do Cauelele: “São mesmo os do SIC. Eles matam e depois os polícias da esquadra vêm recolher os corpos. Eles estão a matar por bairros. Iniciaram no Compão e agora passaram para o nosso bairro.”
Em segundo lugar, contámos com a colaboração de 15 assistentes de campo, todos residentes nas áreas onde ocorreu o maior número de assassinatos. O seu contributo foi essencial para identificarmos os casos e para estabelecermos o primeiro contacto com os familiares das vítimas, que depois entrevistámos.
Em alguns casos, não foi possível realizar entrevistas presenciais. Devido à actividade intensa dos informadores locais do SIC e às constantes rondas dos próprios matadores e agentes policiais, a tensão nos bairros afectados era excessiva. Nesses casos, optámos por entrevistar telefonicamente os familiares, junto dos quais se encontrava um dos nossos assistentes. A presença do assistente passava despercebida nestes bairros, mas dava garantias aos entrevistados sobre o nosso compromisso com os direitos humanos, e contribuía para esbater o medo que as pessoas sentiam perante o clima de terror.

Efectuámos a recolha directa de depoimentos orais de testemunhas, familiares, vizinhos e sobreviventes. Houve também casos em que, de forma anónima, agentes envolvidos nas matanças ou chamados a “limpar” o local do crime contribuíram para reconstituir determinadas operações. Sempre que possível, para cada caso, cruzámos vários depoimentos de fontes diferentes, de modo a verificar e contra verificar os relatos.
Muitos familiares, testemunhas e vizinhos inicialmente entrevistados por telefone, sentindo-se mais confortáveis, acabaram por optar espontaneamente por um contacto pessoal com o investigador principal, em locais neutros onde pudessem falar à vontade.
Os depoimentos prestados por familiares e amigos não serviram, em momento algum, para inocentar as vítimas dos eventuais delitos que cometeram em vida. Trata-se do testemunho que cada um tem direito a prestar, cabendo-nos apenas fazer o seu enquadramento. Algumas famílias assumiram abertamente que os seus familiares assassinados haviam sido delinquentes, e houve mesmo quem tivesse exprimido alívio pela sua morte.
Para além dos depoimentos, tivemos também a oportunidade de recolher vários documentos: certificados de autópsia, mandados de soltura, fotografias e outros elementos que nos permitiram um melhor apuramento dos factos. De fora, ficaram mais de uma centena de vítimas. Apesar de as suas mortes estarem confirmadas, não obtivemos informação suficiente para as incluir neste relatório. Na zona dos Mulenvos de Baixo, em Viana, por exemplo, seguimos relatos de fuzilamentos regulares, em números que ultrapassavam cinco a oito vítimas por cada operação. Depois das execuções, os corpos eram atirados para valas ou lixeiras. Todavia, talvez porque — conforme sugeriram os moradores locais — a maioria dos fuzilados fosse desconhecida naquela zona, não conseguimos aprofundar as investigações.
Os casos que se seguem foram organizados por ordem cronológica, começando pelo mais recente.

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