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quinta-feira, 24 de março de 2016

O livro proibido que pôs o regime angolano a tremer

João de Almeida Dias   -   24 Outubro 2015
O Observador teve acesso a uma cópia integral do livro que Luaty Beirão e outros 14 ativistas angolanos liam e debatiam — gestos que resultaram na sua prisão. Leia o resumo alargado da obra proibida

Antes do livro que agora abala Angola, já havia o livro que tem abalado o mundo, revolução após revolução. 
“Da Ditadura Para a Democracia”, escrito pelo norte-americano Gene Sharp em 1993, serviu então como uma proposta genérica de formas pacíficas para combater a ditadura em Mianmar (na altura Birmânia). 
Desde então, o livro tem sido fonte de inspiração noutras revoluções. 
Foi assim, por exemplo, no Egito e na Tunísia de 2011. 
E, agora, na Angola de 2015, onde o jornalista Domingos da Cruz ousou reescrever o livro adaptando-o à realidade do seu país.

Tudo começou com um post no facebook. 
“O Domingos uma vez fez um post com os dizeres do Gene Sharp. 
E aí nós pedimos para ele reescrever o livro daquele autor, adaptando-o à realidade angolana. 
Queríamos uma coisa igual, que nós pudéssemos usar aqui para debater formas de combater a nossa ditadura e de mudar a mentalidade das pessoas daqui de forma pacífica”, disse em junho e ao Observador a ativista angolana Laurinda Gouveia, entretanto constituída arguida.

Assim nasceu o livro “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura — Filosofia Política da Libertação para Angola”
Embora nunca tenha sido editado, a obra de Domingos da Cruz circulou entre os ativistas que debatiam o livro todos os sábados. 
A 20 de junho, quando já iam no sétimo capítulo, foram surpreendidos pela polícia. 
Foram detidas 15 pessoas, entre elas o rapper Luaty Beirão, que mantém uma greve de fome desde 21 de setembro, e Domingos da Cruz.

Eis o que a acusação do Ministério Público angolano escreveu sobre o livro original: “Esta obra, de Gene Sharp, inspirou as chamadas revoluções (…) que derrubaram os respetivos Governos e Presidentes e cujas consequências de tão nefastas deixaram os países atingidos completamente na desgraça, destruídos pelo vandalismo e pelas guerras que se seguiram.”

O Observador publica agora um resumo da obra.

Domingos da Cruz fez bem em deixar uma nota inicial referindo que “a maior parte das ideias são do filósofo norte-americano Gene Sharp”, uma vez que a estrutura do seu ensaio segue quase religiosamente a do livro original. 
Porém, coube ao jornalista angolano transferir essas ideias para a realidade angolana.

Tal como acontece na obra original, a versão angolana faz vários apelos para que a “ditadura” seja derrubada de forma “pacífica”. 
Existe, porém, uma dicotomia clara entre o “ditador” e as “forças democráticas”, sendo estabelecido que nunca estes últimos devem negociar com o primeiro. 
Mesmo assim, apenas em duas passagens são referidos atos violentos, embora com a ressalva de que estes não devem “nunca atingir pessoas e bens privados eticamente adquiridos”. 
O próprio ditador tem a sua segurança salvaguardada no caso do derrube do regime, sendo-lhe garantida “passagem segura e pessoal e familiar até um aeroporto internacional (…) por razões humanistas”.

Pragmático nalgumas partes, ingénuo noutras, este livro é acima de tudo um documento de trabalho — uma espécie de rascunho em estado avançado. 
Como tal, fizemos uma seleção alargada das suas passagens mais importantes. Por respeito ao autor, transcrevemos as passagens ao abrigo do antigo ortográfico, por ter sido essa a opção de Domingos da Cruz.

Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura

Filosofia Política da Libertação para Angola

Domingos da Cruz

Nota obrigatória

Não tenho mérito nenhum sobre as ideias contidas neste livro. Com excepção de alguns capítulos, a maior parte das ideias são do filósofo norte-americano Gene Sharp, extraídas da sua obra, “Da ditadura à democracia. 

Se tenho algum mérito, talvez decorrerá do facto de ter adaptado o seu pensamento à realidade angolana.

Introdução

“O grupo hegemónico e o ditador atingiram um nível de ascensão no controle da sociedade em que o único caminho parece-me ser a via pacífica, a resistência civilizada ao estilo de Mahatma Ghandi, Nelson Mandela e todas as resistências contemporâneas que assistimos na Tunísia e no Burkina Faso.”

“Pegar em armas levaria a ditadura a agradecer, na medida em que teria legitimidade tanto interna quanto externa para exterminar. 
Por outro lado, usar armas seria atingir um dos ângulos mais fortes do ditador. 
Ele tem mais armas que os democratas (que se pode obter), assim como logística e toda engenharia financeira. 
Usar armas demonstra que somos igualmente selvagens como o ditador e perderíamos autoridade moral e legitimidade democrática.”

“Se formos capazes de mobilizar os oprimidos, certamente terão confiança para acreditar na sua capacidade de desintegração e erosão definitiva da ditadura. No momento em que estivermos na rua em massa, dar-se-á o desequilíbrio na correlação de forças a nosso favor e dali a comunidade internacional apoiará as forças pró-democracia.”


“Em síntese, vale reter o seguinte: 
a) a luta pacífica — desafio político ou desobediência civil — é o melhor caminho para a conquista da liberdade e democracia; 
b) a guerra não garante vitória aos democratas e as possibilidades de perdas humanas do lado das forças democráticas é inevitável; 
c) um Golpe de Estado representa retrocesso civilizacional e viabilizaria o nascimento de nova ditadura militar; 
d) o povo angolano é “órfão”, por isso, deve contar exclusivamente com as suas forças internas que virão da solidariedade e da confiança colectiva; 
e) as possibilidades da comunidade internacional ajudar-nos são boas quando já estivermos a segundos de ruir o edifício da ditadura; 
f) finalmente, os democratas devem ter cuidado com ajudas de última hora porque visam interesses instalados. 
Caso sejam necessárias, há que celebrar acordos que beneficiem socialmente os cidadãos. 
E de preferência envolver as múltiplas fontes de poder democrático nas negociações como forma de demarcar-se da imagem anterior. 
Os acordos devem ser claramente de esquerda.”


I. Chaves prévias para enfrentar e detonar a ditadura com realismo político

“Importa esclarecer que o desafio político, a resistência, não se podem confundir com o pacifismo cristão. 
Pelo que a desobediência civil pressuporá acções muito ténues de distinguir entre o pacífico e o violento. 
Por exemplo, queimar pneus nas avenidas com vista a pôr fim à cooperação dos indecisos com a ditadura e consequentemente travar o curso normal do autoritarismo e as instituições que a sustentam.”

“Para mim, a revolução Egípcia e Líbia cometeram somente um erro: as forças democráticas sabiam o que não queriam, mas não sabiam o que queriam com a clareza que a desobediência civil exige.”

“… [as] forças democráticas devem igualmente contar com personalidades individuais com autoridade moral e um percurso claramente democrático e que se opõem com clareza e espinha dorsal à ditadura.”

“Quando o activista souber o que é de facto democracia, saberá que na ditadura não se promove conferência, workshop, seminário, palestra ou espaços de negociação e debates infrutíferos para mudar o regime. 
Estas actividades só são úteis quando visam mobilizar para atingir claramente o alvo: ditador”

“Tomar consciência do realismo na luta para remover a ditadura pressupõe que os democratas saibam que: 
1. Infelizmente as ditaduras na sua quedam levam consigo vidas; 
2. Lutamos não porque amamos a morte. Luta-se porque amamos a vida, mas a vida com abundância e plenitude. Lutamos porque somos radicais no amor a nós e à comunidade.

“Aqueles que escalam as cataratas e montanhas para a liberdade, devem olhar para história e perceber que a escolha pela luta pacífica funcionou em muitas partes do mundo. 
Temos os seguintes exemplos de quedas de ditaduras de forma pacífica desde 1980: Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Alemanha Oriental, Checoslováquia, Eslovénia, Madagáscar, Mali, Bolívia, Filipinas, Nepal, Coreia do Sul, Chile, Argentina, Haiti, Brasil, Uruguai, Malásia, Tailândia, Bulgária, Hungria, URSS, etc.”

“Indivíduos que se beneficiam da ditadura, num claro acto de desrespeito, desespero e manipulação, chamam os manifestantes pacíficos como sendo incultos e de baixo nível. Estes bandidos que querem manter os benefícios financeiros e materiais provenientes da ditadura devem ser completamente ignorados e digo porquê. 
Mandela tinha baixo nível? 
Steve Biko era ET, por acaso? 
J. P. Sartre, cuja grandeza intelectual o levou a ganhar o Nobel, vocês, membros da ditadura, chegaram ao seu nível?
(…) Foram todos manifestantes cuja grandeza moral e intelectual não encontramos igual no grupo hegemónico. 
Enganam os bois e toda a massa militantes, cujos cérebros não funcionam em virtude da lavagem cerebral ao longo dos anos. Bandidos de uma figa!”

“Independentemente do mérito da opção de violência, no entanto, uma coisa é certa. 
Ao depositar a confiança nos meios violentos, escolhe-se exactamente o tipo de luta em que os opressores quase sempre têm a superioridade. 
Os ditadores estão equipados para aplicar violência esmagadora (…). 
Os ditadores têm quase sempre superioridade em equipamento militar, munições, transportes e tamanho das forças militares.”

“Pessoas hostis às ditaduras devem procurar outra opção: o desafio político, indignação transformadora que ultrapassa o descontentamento, a desobediência civil, a resistência democrática, em definitiva devem optar pela seguinte fórmula: RRR = Raiva, Revolta e Revolução.”

“Não existem eleições sob ditaduras como instrumento de mudança política significativa. Eleições são simplesmente armas para manter o poder com legitimidade externa e interna frente aos seus parceiros. 
Ditadores não estão no negócio de autorizar eleições que possam removê-los dos seus tronos.”


“Como parece estar evidente, é necessário que um grupo de cidadãos e organizações se juntem de maneira ultra secreta para criar um plano estratégico de luta de médio e longo prazo. 
É importante não haver preocupação com número de pessoas ou organizações. 
Não havendo organizações, pode ser somente personalidades com criatividade e espírito pragmático.”


II. Nunca, nunca, jamais negociar como ditador

“A negociação tem riscos graves. 
As negociações comportam armadilhas das quais pode ser impossível sair a médio e longo prazos, uma vez que a negociação está a dar-se num contexto de desequilíbrio de poder na correlação de forças e o oponente é um ‘selvagem político’ sedento de poder e com vontade universal de manter os interesses instalados há longos anos.”

“Um factor importante que ajudará os actores do desafio político a não negociarem é definir com clareza o alvo e o objectivo: destituir o ditador e construir uma sociedade aberta. 
Tudo o que não deitar a baixo o ditador e seu regime deve ser evitado. 
É o caso da negociação. 
Não devemos esquecer que a negociação dá tempo ao regime para reorganizar as suas estruturas e recursos que se encontram em pânico no momento em que a revolução está em marcha.”

“Nesses tipos de conflitos, a única função adequada das negociações pode ocorrer no final de uma batalha decisiva em que o poder dos ditadores tenha sido efectivamente destruído e eles buscam passagem segura pessoal e familiar até um aeroporto internacional. 
Nesses casos, por razões humanistas, devemos permitir saída em segurança.”


III. Fontes de onde vem o poder para detonar o ditador

“O grau de liberdade ou a tirania em qualquer governo é, consequentemente, em grande parte um reflexo da determinação relativa dos súbditos de serem livres e sua disposição e capacidade de resistir aos esforços para escravizá-los.”

“Neste caso, só a aplicação do desafio político permanente levará ao uso do poder totalitário, que por sua vez se vai desgastando. 
Estará sob tensão e eclodirá inevitavelmente em algum momento.”

“Se a ditadura foi amplamente bem sucedida em destruir ou controlar organismos independentes da sociedade, será importante para os resistentes criarem novos grupos sociais e instituições independentes, ou reafirmar o controlo democrático sobre os organismos sobreviventes ou parcialmente controlados.”

“Naturalmente, nada disto significa que fragilizar e destruir as ditaduras é fácil, nem que toda tentativa será bem sucedida. 
E certamente não significa que a luta está livre de baixas porque aqueles que ainda servem os ditadores provavelmente reagirão em um esforço para forçar a população a retomar a cooperação e a obediência. 
Por isso, devemos lembrar sempre a recomendação encorajadora de Nelson Mandela: “Por mais difícil que seja a batalha, não nos vamos render. 
Dure o tempo que durar, não nos vamos cansar”.


“Por outro lado, é necessário ter bem clara a ideia de que a resistência ao autoritarismo é pacífica mas não pacifista, ao estilo da visão cristã. 
Dão-me uma bofetada à esquerda e eu disponibilizo a direita. 
Não! 
Quando for necessário dever-se-á atear fogo em instituições e partir lugares simbólicos com vista a bloquear o funcionamento daquilo que sustenta a ditadura, mas nunca atingir pessoas e bens privados eticamente adquiridos, sob pena de cometermos actos que contradizem a democracia que juramos querer instituir.”


IV. Fraqueza das ditaduras

“O núcleo duro que lidera o movimento para democracia (não chefe, mas liderança que pode ser colegial ou individual aberta rotativa), deve, logo no princípio, estabelecer uma metodologia de trabalho onde se possa evitar debates infantis e infrutíferos.”


“A conclusão então é clara: apesar da aparência de força, todas as ditaduras têm fraquezas, ineficiências internas, rivalidades pessoais, deficiências institucionais, e conflitos entre organizações e departamentos. 
Essas fraquezas, ao longo do tempo, tendem a tornar o regime menos eficaz e mais vulnerável às mudanças de condições e resistência deliberada. 
Nem tudo o que o regime se propõe a realizar será completado. 
Às vezes, mesmo as ordens directas de Hitler nunca foram aplicadas porque aqueles abaixo dele na hierarquia se recusaram a cumpri-las. 
O regime ditatorial pode, às vezes, até mesmo desmoronar rapidamente, como já observamos.”



V. A aplicação do poder da resistência democrática: exercitando o poder

“A luta não violenta é um meio muito mais complexo e variado que a violência. 
Em vez disso, a luta é travada por armas psicológicas, sociais, económicas e políticas aplicadas pela população e as instituições da sociedade. 
Estas têm sido conhecidas sob vários nomes de protestos, greves, não-cooperação, boicotes, ruptura e o poder do povo.”

“Cerca de duas centenas de métodos específicos de acção não violenta foram identificados e há certamente dúzias de outros. 
Esses métodos são classificados em três grandes categorias: protesto e persuasão são demonstrações largamente simbólicas, incluindo paradas, marchas e vigílias (54 métodos). A não cooperação é dividida em três subcategorias: 
a) não cooperação social (16 métodos); 
b) não cooperação económica, incluindo boicotes (26 métodos) e greves (23 métodos), e 
c) não cooperação política (38 métodos). A intervenção não violenta, por meios psicológicos, físicos, sociais, económicos ou políticos, tais como jejum, ocupação não violenta, e governo paralelo (41 métodos) é o grupo final.”

“Alguns métodos de luta não violenta exigem que as pessoas pratiquem actos não relacionados com suas vidas normais, tais como a distribuição de folhetos, operação de imprensa clandestina, greves de fome, ou sentar-se nas ruas. 
Esses métodos podem ser difíceis de serem realizados por algumas pessoas, excepto em situações muito extremas.”

“Por exemplo, as pessoas podem comparecer ao trabalho, ao invés de fazer greve, mas, então, deliberadamente trabalhar mais devagar ou de forma menos eficiente do que o habitual (…). 
Pode-se ir a cultos religiosos em que o acto expresssa, não só as convicções religiosas, mas também as convicções políticas.”

“A disciplina não violenta é a chave para o sucesso e deve ser mantida, apesar de provocações e brutalidades pelos ditadores e seus agentes.”

“A disciplina não violenta é também extremamente importante no processo de jiu-jitsu político. 
Neste processo, a brutalidade crua do regime contra os activistas claramente não violentos se reflecte politicamente contra a posição dos ditadores, causando discórdia em suas próprias fileiras, bem como fomentando suporte aos resistentes entre a população em geral, os defensores habituais do regime e terceiros.”

“A luta não violenta produz mudança de quatro maneiras. 
O primeiro mecanismo é o menos provável, embora tenha ocorrido. 
Quando os membros do grupo adversário, inimigo, estão emocionados com o sofrimento da repressão imposta aos corajoso resistentes não violentos, ou estão racionalmente persuadidos de que a causa dos opositores é justa, eles podem vir a aceitar os objectivos dos resistentes. Esse mecanismo é chamado de conversão.

(…) Se os problemas não são os fundamentais as demandas da resistência democrática numa campanha limitada não são consideradas ameaçadoras e o conflito de forças alterou as relações de poder em algum grau, o conflito imediato pode ser encerrado através de um acordo, uma divisão da diferença, um compromisso. 
Este mecanismo é chamado de acomodação. 
Muitas greves são resolvidas dessa maneira, por exemplo, com ambos os lados alcançando alguns dos seus objectivos, mas não conseguindo tudo o que queria.

(…) As forças militares do ditador podem se tornar tão pouco confiáveis que elas simplesmente não mais obedecem às ordens de reprimir os resistentes (…). 
Isso é chamado de coerção não violenta.”

“Em algumas situações extremas de condições de produção de coerção não violenta são levadas ainda mais longe. 
O chefe dos adversários, de facto, perde toda a capacidade de agir e sua própria estrutura de poder desmorona (…). 
As tropas do adversário e polícia se amotinam. 
Os habituais apoiantes do adversário ou a população repudiam sua antiga liderança, negando que eles tenham qualquer direito de governar (…). 
O quarto mecanismo de mudança, a desintegração do sistema dos oponentes é tão completa que nem sequer têm energia suficiente para se render. 
O regime simplesmente se estilhaça.


VI. A necessidade inevitável de planeamento estratégico

“Chegamos a um ponto mais do que chave. 
Sem um plano estratégico de luta, não será possível a erosão da ditadura. 
Tal plano deverá ser um documento construído com todo o o cuidado, e nele deverá conter o objectivo central, as acções de curto, médio e longo prazo, a logística, as questões financeiras e possíveis fontes monetárias para suportar a luta.”

“Embora a espontaneidade tenha algumas qualidades positivas, com frequência ela tem inconvenientes. 
Frequentemente, os resistentes democráticos não previram as brutalidades da ditadura, de modo que eles sofreram gravemente e a resistência desmoronou. 
Às vezes, a falta de planeamento dos democratas deixou decisões cruciais ao acaso, com resultados desastrosos. 
Mesmo quando o sistema opressor foi derrubado, a falta de planeamento sobre como lidar com a transição para um regime democrático contribuiu para o surgimento de uma nova ditadura.”

“Infelizmente, muitas vezes a maioria das pessoas em grupos de oposição democrática não entende a necessidade de planeamento estratégico, ou não está acostumada ou treinada a pensar estrategicamente. 
Esta é uma tarefa difícil. 
Constantemente perseguidos pela ditadura e oprimidos por responsabilidades imediatas, os líderes da resistência muitas vezes não têm a segurança ou o tempo para desenvolver habilidade de pensamento estratégico.”


“O resultado de tais falhas de planeamento estratégico é, muitas vezes, drástico: a força é dissipada, as ações são ineficazes, a energia é desperdiçada em questões de menor importância, as vantagens não são utilizadas, e os sacrifícios são em vão (…). 
Uma mistura estranha de actividades mal planejadas não moverá à frente uma resistência mais significativa. 
Em vez disso, é mais provável que permita à ditadura aumentar seus controles e poder.”


VII. Estratégia de planeamento

“É preciso lembrar que contra uma ditadura o objectivo da grande estratégia não é simplesmente derrubar ditadores, mas instalar um sistema democrático e tornar impossível a ascensão de uma nova ditadura. 
Para realizar estes objectivos, os meios escolhidos de luta terão de contribuir para uma mudança na distribuição de poder efectivo na sociedade. 
Sob a ditadura, a população e as instituições da sociedade civil têm sido muito fracas e o governo forte demais. 
Sem uma mudança nesse desequilíbrio, um novo conjunto de governantes, se assim o desejarem, ser tão ditatoriais quanto os antigos. 
A ‘revolução palaciana’ ou um golpe de Estado, portanto, não é bem-vinda.”

“A principal força da luta deve ser suportada a partir do interior do próprio país. 
Na medida em que assistência internacional vem, ela será estimulada pela luta interna.”

“Se houvesse patriotas ricos e disponíveis para ajudar as forças democráticas, eu preferiria o dinheiro proveniente de um angolano, mas todos minimamente racionais sabem quem possui dinheiro, de onde proveio tal dinheiro e a que grupo pertence. 
Por isso, fontes financeiras angolanas para a revolução estão fora de hipótese. 
Aliás, a forma como se apossaram do erário é um dos motivos da luta. 
Fonte financeira para revolução só por milagre!”

“Quando a grande estratégia de luta tiver sido cuidadosamente planeada, há razões sólidas para torná-la amplamente conhecida. 
O grande número de pessoas necessárias para participação podem estar mais dispostas e capazes de agir se elas compreenderem a concepção geral, bem como instruções específicas. Este conhecimento pode potencialmente ter um efeito muito positivo sobre o seu moral, sua vontade de participar e agir adequadamente.”

“No planeamento das estratégias para as campanhas específicas de resistência selectiva e para o desenvolvimento a longo prazo da luta de libertação, os estrategistas do desafio político precisarão considerar várias questões e problemas:


  • Determinação dos objectivos específicos da campanha e sua contribuição para a execução da grande estratégia
  • Consideração dos métodos específicos ou armas políticas que podem ser melhor utilizadas para implementar as estratégias escolhidas (…).
  • Determinação se, ou como, as questões económicas devem estar relacionadas com a luta global essencialmente política. Se as questões económicas devem ser proeminentes na luta, será preciso cuidado para que os problemas económicos possam realmente ser sanados após o término da ditadura (…).
  • Determinação com antecedência de que tipo de estrutura de liderança e sistema de comunicações funcionará melhor para iniciar a luta de resistência (…).
  • Comunicação de notícia de resistência à população em geral, às forças dos ditadores e à imprensa internacional. Alegações e relatórios devem sempre ser rigorosamente factuais. Exageros e alegações infundadas minarão a credibilidade da resistência.
  • Planos para actividades sociais, educacionais, económicas e políticas auto-suficientes e construtivas para atender às necessidades do povo durante o conflito iminente. (…)
  • Determinação do tipo de ajuda externa desejável em apoio à campanha específica ou à luta geral de libertação. Como pode a ajuda externa ser bem mobilizada sem tornar a luta interna dependente de factores externos incertos?”


“Tacticamente, para ocasiões específicas, as advertências adequadas à população e os resistentes sobre a repressão esperado seriam necessários, de modo que eles conheçam sobre a repressão esperada seriam necessárias, de modo que eles conheçam os riscos de participação. 
Se a repressão pode ser grave, os preparativos para a assistência médica aos resistentes feridos devem ser feitos.”


VIII. Aplicando o desafio político ou desobediência civil

“Em situações em que a população se sente impotente e assustada é importante que as tarefas iniciais para o público sejam de baixo risco, acções de fortalecimento da confiança. Estes tipos de acções — tais como o uso de uma roupa de uma forma incomum — pode registar publicamente uma opinião divergente e proporcionar uma oportunidade ao público de participar de forma significativa nos actos de dissidência.”

“A maior parte das estratégias de campanhas na luta de longo prazo não deve visar a queda completa e imediata da ditadura, mas sim ganhar objectivos limitados. 
Nem todas as campanhas exigem a participação de todos os sectores da população.”

“A acção inicial é susceptível de assumir a forma de protesto simbólico, ou poder ser um acto simbólico de não cooperação limitada ou temporária. 
Se o número de pessoas dispostas a agir for pequeno, então o acto inicial pode, por exemplo, envolver a colocação de flores num local de importância simbólica. 
Por outro lado, se o número de pessoas dispostas a agir é muito grande, então uma parada de cinco minutos de todas as actividades ou alguns minutos de silêncio podem ser usados. Em outras situações, alguns indivíduos poderiam realizar uma greve de fome, uma vigília num local de importância simbólica, um breve boicote estudantil das aulas, ou um ‘sit-in’ temporário num escritório importante.”

“… os estudantes podem realizar greves sobre uma questão educacional; líderes religiosos e fiéis podem se concentrar na questão da liberdade religiosa; trabalhadores ferroviários podem meticulosamente obedecer às normas de segurança, de modo a atrasar o sistema de transporte ferroviário; jornalistas podem desafiar a censura através da publicação de artigos com espaços em branco onde artigos proibidos teriam aparecido, ou a polícia pode falhar repetidamente em localizar e prender integrantes da oposição democrática procurados. Dividir as campanhas de resistência em fases, por assunto e grupo populacional permitirá que determinados segmentos da população descansem enquanto a resistência continua.”

“O grau de lealdade das forças militares, tanto soldados quanto oficiais, à ditaduras precisa de ser cuidadosamente avaliado, e uma decisão deve ser tomada quanto a se os militares estão abertos à influência das forças democráticas.”

“… será necessário planear como oficiais militares simpáticos aos democratas podem ser levados a compreender que nem um golpe militar, nem uma guerra civil contra a ditadura é necessária ou desejável.


Oficiais simpáticos aos democratas podem desempenhar um papel vital na luta democrática, por exemplo, através da propagação de descontentamento e não cooperação das forças militares, encorajando ineficiências deliberada e ignorando silenciosamente as ordens, e apoiando a recusa de realizar a repressão. 
Os militares também podem oferecer várias modalidades de assistência não violenta positiva ao movimento pró-democracia, incluindo passagem segura, informações, alimentos, suprimentos médicos, e assim por diante.”


IX. Desintegrando a ditadura. Aleluia, aleluia!

“Conforme foi discutido em páginas anteriores, a cooperação, obediência e submissão são essenciais para que o ditador seja poderoso. 
Sem acesso às fontes de poder político, o poder dos ditadores se enfraquece e, finalmente, se dissolve. 
A retirada de apoio é, portanto, a principal acção necessária para desintegrar uma ditadura.”

“O acesso ao ditador aos recursos materiais também afecta directamente o seu poder. 
Com o controle de recursos financeiros, o sistema económico, a propriedade, recursos naturais, transportes e meios de comunicação nas mãos de adversários reais ou potenciais do regime, outra importante fonte de seu poder fica vulnerável ou removida. 
Greves, boicotes e crescente autonomia da economia, comunicações e transporte enfraquecerão o regime.”

“Mesmo quando a ditadura controla todo o governo, às vezes é possível organizar um ‘governo paralelo’ e democrático. 
Isto cada vez mais operaria como um governo rival para o qual a lealdade, respeito, cooperação são dadas pela população e pelas instituições da sociedade. 
A ditadura, então, consequentemente, em bases crescentes seria privada destas características de governo. 
Eventualmente, o governo democrático paralelo pode substituir completamente o regime ditatorial, como parte da transição para um regime democrático. 
No devido tempo, então, uma Constituição seria aprovada e as eleições realizadas como parte da transição.”

“Os democratas devem calcular como a transição da ditadura para o governo interino será tratada no final da luta. 
É desejável naquele momento estabelecer rapidamente um novo governo funcional. 
Mas ele não deve ser apenas o velho governo com novas pessoas. 
É necessário calcular que secções da antiga estrutura governamental (como a polícia política) devem ser completamente abolidas devido ao seu carácter inerentemente antidemocrático, e que secções manter para serem submetidas a esforços de democratização posteriores. 
Um completo vazio governamental poderia abrir caminho para o caos ou para uma nova ditadura.”


“Quando confrontado com uma população cada vez mais capacitada e o crescimento de grupos e instituições democráticas independentes — que a ditadura é incapaz de controlar — os ditadores descobrirão que sua aventura inteira se está desfazendo (…). 
A ditadura se desintegraria diante da população desafiadora.”


X. Alicerces para uma democracia real e durável

“Ninguém deve acreditar que com a queda da ditadura uma sociedade ideal aparecerá imediatamente. 
A desintegração da ditadura simplesmente fornece o ponto de partida, em condições de maior liberdade, para esforços de longo prazo para melhorar a sociedade e satisfazer as necessidades humanas de forma mais adequada.”

“No contexto angolano, efectivamente é necessária uma nova Constituição. 
Os democratas, em colaboração com os cidadãos deverão introduzir o direito à resistência para garantir a continuidade e aprofundamento da democracia. 
Este direito é igualmente um instrumento preventivo contra a arbitrariedade e o autoritarismo que podem minar a democracia.”

“O efeito da luta não violenta não é apenas enfraquecer e remover os ditadores, mas também dar poder aos oprimidos. 
Esta técnica permite que as pessoas que antes se sentiam apenas peões ou vítimas exerçam o poder directamente, a fim de obter por seus próprios esforços, maior liberdade e justiça. Esta experiência de luta tem importantes consequências psicológicas, contribuindo para o aumento da auto-estima e auto-confiança entre aqueles anteriormente impotentes (…). 
A população com experiência na utilização de desafio político, menos provavelmente será vulnerável às futuras tentativas de ditaduras.”

“Existem três conclusões importantes às ideias esboçadas aqui:


  • A libertação em relação às ditaduras é possível;
  • Reflexão muito cuidadosa da planeamento estratégico serão necessários para alcançá-la, e
  • Vigilância, trabalho árduo e luta disciplinada, muitas vezes a grande custo, serão necessários.


A frase muito citada ‘a liberdade não é livre’ é verdadeira. 
Nenhuma força externa virá para dar aos povos oprimidos a liberdade que eles tanto desejam. 
As pessoas terão de aprender a conquistar, elas mesmas, aquela liberdade. 
Fácil não pode ser.”


XI. Os métodos e técnicas de acção não violenta: Raiva, Revolta e Revolução (RRR) na prática

(Nota: O 11º capítulo, como o título indica, elenca 198 formas de luta pacífica contra uma ditadura. Para facilidade de leitura, vamos apenas enumerar as várias categorias que dividem o conjunto destas medidas)

Declarações formais; comunicação com uma audiência mais ampla; representações em grupo; actos públicos simbólicos; pressões sobre os indivíduos; teatro e música; procissões; homenagem aos mortos; assembleias públicas; retirada e renúncia; ostracismo de pessoas; não cooperação com os eventos sociais, costumes e instituições; retirada do sistema social; acção por parte de consumidores; acção por parte dos trabalhadores e produtores; acções por intermediários; acção de proprietários e gerentes; acção por parte dos titulares de recursos financeiros; acção de governos; greves simbólicas; greves agrícolas; greves de grupos especiais; greves industriais comuns; greves restritas; greves multi-industriais; combinações de greves e fechamentos económicos; rejeição da autoridade; não cooperação dos cidadãos com o governo; alternativas dos cidadãos à obediência; acção de funcionários do governo; acção governamental doméstica; acção governamental internacional; intervenção psicológica; intervenção física; intervenção social; intervenção económica; intervenção política.

“A lei só é lei quando é justa. 
Toda a lei injusta não é lei, por isso deve ser negada a sua prática porque serve interesses instalados com vista a beneficiar uma facção de delinquentes, que usam a capa do Estado para justificar seus fins.”

“O dever moral da partilha entre os guerreiros pela democracia decorre de uma visão utilitarista e ubuntu, que consiste na promoção da ‘felicidade do maior número’ de companheiros de luta. 
Não há felicidade individual quando o outro não atingiu tal felicidade. 
A felicidade individual funda-se na felicidade colectiva e vice-versa.”


“A economia de resistência à tirania passa também no terreno da afectividade, no fortalecimento público de uma imagem positiva dos militantes pró-democracia. 
A gestão das emoções dos militantes pela liberdade, pressupõe solidariedade expressa com vigor nas redes sociais, em cartazes, actos públicos ou cerimónias culturais ou outras. 
Quando um democrata está detido, doente, vaia a julgamento, etc., é necessária a presença física dos companheiros. 
Tal presença mantém os ânimos fortes para a luta e derrota o inimigo.


XII. A urgência e necessidade de um “projecto político filosófico de nação”

“Depois da elaboração do plano estratégico de luta contra o ditador e toda sua máquina, os militante pela democracia devem obrigatoriamente elaborar um projecto político filosófico de nação, para que durante o processo de luta não haja os seguintes riscos inevitáveis, caso não tenham tal plano: 
1. Serem acusados de aventureiros que não sabem o que fazem; 
2. Não têm uma visão ideológica de futuro para o país pós-ditadura que pretendem derrubar; 
3. Irresponsáveis que não têm um plano de transição e governação de curto, médio (plano de transição) e longo prazo (plano de governação) após a queda da cultura do mal.”


“As propostas dos militantes pela democracia devem distinguir-se claramente de todos os grupos tradicionais existentes. 
Não se pode assemelhar nem à oposição falsária, menos ainda ao projecto do ditador. 
A originalidade do projecto filosófico de nação é uma condição fundamental para o sucesso filosófico.

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