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terça-feira, 22 de março de 2016

Histórico do MPLA admite uma ‘Comissão de Verdade’ sobre o golpe de 27 de Maio


10 novembro 2015


Lisboa - Numa entrevista repleta de revelações, Lopo do Nascimento considera que o golpe de 27 de maio, liderado por Nito Alves, “contou com o apoio do KGB”, os serviços secretos da então União Soviética, “ou de elementos do KGB em Angola”

Fonte: Expresso
“Uma ferida não sarada, que não se vê mas dói interiormente” – é como Lopo do Nascimento se refere ao golpe de 27 de Maio de 1977, a maior tragédia da história do MPLA, que poderá ter custado 30 mil mortos. 
O ex-primeiro-ministro de Angola considera este número “exagerado”, mas reconhece que “foi morta muita gente” – “não morreu, foi morta!” Deixa como sugestão a abertura “de um debate” sobre aqueles acontecimentos dramáticos que enlutaram a sociedade angolana, mediante a criação de uma “Comissão de Verdade, como houve na África do Sul”, para fazer o balanço e apaziguar os crimes do apartheid.

Numa entrevista repleta de revelações, concedida ao Expresso em Lisboa a propósito dos 40 anos da independência de Angola, Nascimento considera que o golpe, liderado por Nito Alves, “contou com o apoio do KGB”, os serviços secretos da então União Soviética, “ou de elementos do KGB em Angola”. 
Ele próprio, na qualidade de primeiro-ministro, deslocou-se a seguir a Moscovo, tendo apresentado ao líder soviético Leonid Brejnev “uma lista de membros do KGB que estavam metidos no golpe”, para serem retirados de Angola, o que aconteceu.

“UMA LIMPEZA INTERNA” FEITA PELA DISA

Na interpretação deste quadro histórico do MPLA, o golpe foi aproveitado para efectuar uma “limpeza interna”, efectuada pela temível DISA, a Direcção de Informação e Segurança de Angola. 
Nascimento revela que ele próprio foi procurado em sua casa pela segurança do regime, por suspeita de “ligação aos fraccionistas”. 
Valeu-lhe a sua equipa de guarda-costas, chefiada por militares cubanos, que ameaçaram disparar sobre os homens da DISA. 
A seguir refugiou-se em casa do próprio Presidente da República, Agostinho Neto, no Futungo.

À data da independência, 11 de Novembro de 1975, Lopo do Nascimento era primeiro-ministro do Governo de Transição, tendo permanecido no cargo no primeiro governo do MPLA, até finais de 1978. 
Apesar de estar à frente do governo aquando do golpe, ignora o número de vítimas mortais. “Não sei. 
Nem ninguém sabe.” 
Foi depois ministro de várias pastas, governador da Huíla durante a guerra civil, secretário-geral do MPLA e deputado. 
Com 73 anos, empresário privado, Lopo do Nascimento retirou-se da vida política em 2012. “Gosto de sair pelos meus pés”, explicou.

Leia a entrevista com Lopo do Nascimento na Revista E da edição do Expresso de 7 de Novembro
Há 40 anos, quando Angola se tornou independente, foi o primeiro-ministro do MPLA.
Uma das vozes mais independentes do regime, fala das relações com Cuba e a União Soviética e condena "a limpeza interna", feita pelos serviços de segurança no 27 de Maio, em que os golpistas tiveram o apoio do KGB.

Os 40 anos da independência de Angola, no próximo dia 11 de novembro, são o pretexto para uma entrevista com este histórico do MPLA, de 73 anos.
Primeiro-ministro do Governo de Transição e do primeiro gabinete após a independência, foi das primeiras vozes a ouvir-se contra o modelo económico e político decalcados da União Soviética, e contra a intolerância do MPLA.
Sempre discreto, afastou-se da vida política há três anos.
Empresário privado, falou ao Expresso numa nas cíclicas passagens por Lisboa, ditadas por razões de saúde - e antes da greve da fome de Luaty Beirão.

Onde estava no 25 de Abril?
Na Argélia.
A notícia correu logo, porque havia lá muitos portugueses (como o Manuel Alegre) e brasileiros que tinham fugido da ditadura.

Quando regressou a Luanda?
Depois dos acordos de cessar-fogo com as forças armadas portuguesas.
Integrei a primeira delegação do MPLA que entrou em Luanda, em setembro de 1974, dirigida pelo Lúcio Lara.
Era membro e secretário do bureau político.

Quando conheceu o Jonas Savimbi (da Unita) e o Holden Roberto (da FNLA)?
O Holden quando se fez a reunião de Mombaça, antes da cimeira do Alvor: uma reunião dos três movimentos para acertar posições. 
Quando o conheci era o homem que dava murros na mesa!
Não tinha nada a ver com o homem completamente diferente com quem tive relações mais estreitas muito mais tarde.
É como alguém que não acredita em nenhuma religião e depois se torna religioso.

E com que impressão ficou de Savimbi?
De alguém que falava muito bem e que parecia ter boas ideias.
Mas eu já tinha lido toda a correspondência dele com os madeireiros e o exército colonial, no Leste, que me fora dada por elementos do MFA de Angola.

A boa impressão do Savimbi ficou um pouco mitigada, mas as indicações do Presidente Neto era que procurássemos esquecer isso e chegar a um entendimento com a UNITA, contra a FNLA, que era muito mais forte e possuía armamento.

Esteve no Alvor. Acreditou que os acordos iriam ser cumpridos?
Aquilo tinha muitas falhas, mas foi o acordo possível.
Na minha perspectiva pessoal aquilo poderia andar em função da atitude das tropas portuguesas.
Achava que elas não iam deixar aquilo descambar, o que foi um erro de análise.
A tropa portuguesa queria ir-se embora e não se ver em mais confusões.
"Eu não vou morrer no fim da picada!" - pensavam.
Além disso, em Portugal havia pontos de vista diferentes e era preciso conciliar.
O Spínola tinha uma perspetiva sobre a independência de Angola: criar vãrios partidos numa base étnica, incluindo um partido para os brancos, e fazer primeiro um referendo.
O caminho que se estava a seguir era o de criar uma nova Rodésia.

Acha que havia o propósito de criar um regime branco?
Acho que sim.
E o comportamento. nessa fase, de uma parte da população bran ca (principalmente dos motoristas de táxi), só podia levar à sua saída.
Ainda fui a Lisboa para reuniões mais ou menos secretas com a Unita, numa espécie de castelo para os lados de Cascais, para ver se chegávamos a um entendimento.
E chegámos, só que a UNITA, quando saiu dali, foi ter com os sul-africanos e mudou tudo.

O que foi decidido nessas reuniões?
Fazer um governo, depois do 11 de novembro, entre o MPLA e a UNITA, e arranjar os argumentos políticos para dizer que a FNLA não podia participar.
Tenho comigo as atas.

O Governo de Transição tinha três primeiros-ministros, um de cada partido... Você era do MPLA.
Embora tivesse estado em Brazzaville e Lusaca, eu era conhecido com um homem do interior.
Nos movimentos de libertação há sempre uma certa desconfiança entre os que fizeram a guerrilha e os que estiveram no interior.

Quem fez a guerrilha pode pensar que os que estiveram no interior, se calhar, andaram a colaborar...

Apesar de ter estado preso duas vezes durante mais de seis anos.
Sim, sim.
Mas é normal.
Para o cargo de primeiro-ministro houve uma votação no Comité Central e as pessoas votaram em mim.
Mas como eu era do interior, muitos camaradas do exterior, principalmente das Forças Armadas, não estavam muito de acordo.
O Agostinho Neto, que estava na Tanzânia, mandou dizer:"O melhor é ser o camrada Lopo, porque conhece internamente o país e as pessoas, tem relações com os serviços e precisamos que as pessoas fiquem.
"Mais tarde, para o governo da independência, o bureau político decidiu que eu deveria continuar.

O seu ministro  da Economia, o português Vasco Vieira de Almeida, disse-me que os restantes ministros iam armados para as reuniões.
Li essa entrevista.
Nem eu nem o primeiro-ministro da UNITA, José Ndele, íamos armados.
Mas cada um de nós ia quase com um exército de seguranças, que ficavam lá fora.

E o primeiro-ministro da FNLA?
Os da FNLA estavam todos armados e não duvido que houvesse alguns do MPLA ou da UNITA.
Os tipos da FNLA tinham uma estratégia de mostrar força, de meter medo às pessoas.

Você andava armado?
Nunca.
Nem sei dar um tiro para matar um passarinho...
Nunca tive formação militar.

A única que tive foi depois da independência, em Luanda, quando os soviéticos deram aos dirigentes algumas lições de estratégia militar e de organização da economia.

Entretanto, aproximava-se a data da independência.
Pouco antes da independência o exército do MPLA estava muito fraco, porque uma parte dos soldados tinha ido com o Chipenda.
Fizemos um grande recrutamento de jovens, que foram para os centros de instrução que montámos rapidamente e onde os cubanos mamdaram as chamadas Katyushas...

Os famosos órgãos de Estaline?
Exatamente.
Levaram alguns para Kifangondo, onde havia uma barragem, para construírem uma barreira.
Fui lá ver aquilo e quando voltei, a minha mulher perguntou-me:"Então, vamos aguentar ou não?"
"Os cubanos dizem que ninguém vai conseguir passar, mas não estou convencido.
Penso que a FNLA vai conseguir passar.
Mas não digas nada a ninguém..."

Mas não passaram!
Não passaram, porque também não tinha uma avaliação correta da capacidade dos órgãos de Estaline.
Quando os cubanos começaram a disparar aquilo parecia uma fogueira.
E depois abriu-se a barragem...

Os cubanos entraram antes dos soviéticos?
Vieram por iniciativa própria.
Nem informaram os soviéticos, que só souveram depois.
As relações do Presidente Neto com a direção soviética não eram muito boas.

Porquê?
Eu tenho uma interpretação, que é apenas minha.
O Presidente Neto era muito amigo do Tito, da Jugoslávia, e havia aquelas 'makas' da URSS com o Tito.
Os soviéticos tinham receio de que ele seguisse o caminho do Tito.
A Jugoslávia sempre ajudou o MPLA, talvez porque o Tito fosse um antigo guerrilheiro.
Quando chegámos a Luanda, em setembro de 1974, a URSS tinha suspendido a ajuda ao MPLA.

De armamento?
Armamento e outras coisas.
Foram os Presidentes do Congo, Marien Ngouabi, e da Argélia, Boumédiène, que falaram com os soviéticos e lhes disseram que era preciso voltar a dar ajuda.
Quando Fidel os informou que ia para Angola é que os soviéticos recomeçaram a ajuda militar, mas mesmo assim ficava em Brazzaville.

Tinha de ir buscar o armamento a Brazzaville?
Em barcos que os argelinos nos tinham dado e que traziam o armamento para Luanda.
No princípio de novembro houve uma reunião da OUA com os três movimentos em Kampala.
Eu é que dirigi a delegação do MPLA.
Em nome da OUA, o Idi Amin propôs-nos adiar a independência de modo a tentar acalmar as coisas.
A decisão deveria ser tomada à noite, mas eu simulei uma doença para não ir à reunião, que teve de seu suspensa.
O Idi Amin foi ao hotel falar comigo.
Em vez de um médico levou um 'quimbandeiro' (ou feiticeiro).
"Está doente?"
"Sim", respondi, e queixei-me de dores de cabeça e de outras coisas.
Não voltámos à reunião e felizmente que a UNITA também disse que não estava de acordo com o adiamento da independência.

Foi a primeira vez que um feiticeiro tratou de si?
Foi [risos].
Não resultou, porque eu não tinha nada!

A 11 de novembro os soviéticos ainda não estavam em Angola?
Não.
Só tinham enviado armamento.

Lidou pessoalmente com Fidel?
Sim.
Veio uma vez a Luanda e quem o acompanhou fui eu.
E estive em Havana várias vezes, com ele e com o irmão, Raúl Castro, e o Jorge Risque, que era o membro da direção do Partido Comunista cubano que estava em Luanda.

E com o líder soviético Brejnev?
Várias vezes.
Brejnev, Kossiguine, Gromyko.

Chega-se aos acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Foi uma tentativade golpe de Estado?
Nós, do MPLA, principalmente os da minha geração, carregamos coonosco esta ferida não sarada, que não se vê mas dói interiormente.
Apesar de já se terem passado 38 anos.
Pessoalmente mantenho a mesma dúvida: vamos esquecer assim, não falando no caso, para que o tempo nos acalme, ou vamos abrir um debate, tipo Comissão de Verdade como houve na África do Sul?
Tenho esta dúvida.
Mas o 27 de Maio foi uma tentativa de alguns camaradas para mudar o regime, com o apoio do KGB ou ded elementos cdo KGB em Angola.
E que os nossos serviços  de segurança aproveitaram para liquidar muitos angolanos do interior - principalmente estes.

A sua vida esteve em risco nesses dias?
Eu era do interior!
Não digo que tenha sido o Presidente Neto que me salvou, mas ajudou a salvar...
Foi ele que me disse para sair de onde estava, na residência do Palácio, e para ir para o sítio onde ele vivia, lá para o Futungo.


Houve um grupo de golpistas que foi a sua casa.
Não!
Era gente ligada ao regime.
Naquela altura a minha segurança, tal como a do Presidente, era constituída por cubanos e angolanos.
Os cubanos disseram que se alguém  entrasse ou avabçasse, abririam fogo.
Foram lá tentar prender-me, porque diziam que eu estava ligado aos fracionistas.

Foi procurado por alegados aliados seus?
Aliados não é o termo correto.
Era gente que trabalhava comigo, ligado à segurança do regime.

Era gente da Direção de Informação e Segurança de Angola, a DISA?
Sim.

Houve um aproveitamento da situação para uma limpeza interna?
Uma limpeza interna.
E houve muita gente, muitos jovens, que foram mortos assim.
Não tinham nada a ver com o 27 de Maio, mas ...

Fala-se em 30 mil mortos.
Acho esse número exagerado.
Foi morta muita gente.
Não morreu - foi morta!

O primeiro-ministro da época não sabe quantas pessoas morreram?
Não sei.
Nem ninguém sabe.

Qual foi a posição dos cubanos?
Não se meteram.
Só intervieram quando o Presidente Neto deu indicações para intervirem na Rádio Nacional, que os golpistas haviam tomado.

E qual foi a posição da União Soviética?
Fui pouco depois à União Soviética falar com Brejnev e pedi-lhe para retirar alguns elementos do KGB que estavam a trabalhar em Angola.

Não foi uma iniciativa sua, claro.
Foi da direção do MPLA e do Presidente Neto.
Levei uma lista de membros do KGB que estavam metidos no golpe.
Não era para uma expulsão no sentido formal, mas para serem retirados e evitar confusões.
Disse-me que não acreditava que gente dele estivesse metida, mas mandou retirá-los.

Era uma lista grande?
Três ou quatro pessoas

Diplomatas? Conselheiros militares?
Não eram diplomatas.
Era gente ...
Como direi?
Que trabalhavam na embaixada da URSS mas que parecia que não tinham postos, para estarem à-vontade.

Conhecia-os?
Conhecia um.
Quando cheguei a Luanda o embaixador soviético já tinha recebido ordens para serem afastados.
O próprio embaixador não sabia o que faziam.

Conhecia certamente o Nito Alves, o líder do golpe.
Sim.
As atitudes que foi tomando não me surpreenderam.
Tinha uma relação muito mais estreita com um amigo dele, o David Aires Machado ('Minerva'), e muitas vezes lhe chamei a atenção  para o facto de estarem a querer ir rapidamente para mudanças que a situação não permitia.

O que pretendiam: tomar o poder ou tinham um modelo diferente?
Tinham um modelo diferente.
Os ataques que exprimiam nas reuniões do Comité Central eram a criticar a maior parte da direção, que era social-democrática e não socialista ou comunista.
E os sociais-democratas não podiam fazer nenhuma revolução!

E você era mais social-democrata dos sociais-democratas?
Nós tínhamos uma boa relação, porque eu conhecera o Nito Alves antes da independência, éramos ambos do interior.
Da mesma forma que conhecia o José Van-Dúnem.
Os nossos pais eram amigos.
Defendiam um extremismo para o qual a sociedade não estava preparada.

Tinham simpatia pelo modelo soviético?
Sim, disso nunca tive dúvidas.

Conhecia também a Sita Valles?
Conhecia.
Solidamente formada sob o ponto de vista político, ideologicamente forte, com uma grande influência nas pessoas que lhe estavam mais próximas.

Era angolana, estudara em Portugal e militara no PCP. Daí que muitas vezes se estabeleça uma ligação entre o PCP e os golpistas.
Mas eu não partilho dessa ligação, em termos de organização.
Uma coisa foi haver membros do PC que estavam em Angola e se meteram naquilo; outra coisa é a organização em si - e eu não acredito nisso.
Pelo menos as conversas que tive com Álvaro Cunhal e outros dirigentes nunca me fizeram pensar que pudesse haver uma ligação.

Houve um militar português que foi preso: Costa Martins. Conhecia-o?
Conheci bem o Costa Martins.
Trabalhou com o "Minerva" no Ministério do Trabalho.

Costa Martins pertencera em 1975 ao Conselho da Revolução. A sua prisão e tortura não perturbaram as relações entre Portugal e Angola?
Foram momentos muitos difíceis.
Muito difíceis.
Era preciso, não direi bom senso, mas muita acalmia para não colocar as relações numa situação mais complexa e difícil do que já estavam.

O que podia fazer o primeiro-ministro numa situação daquelas, em que o poder estava na rua?
A situação exigia uma intervenção dos que também tinham as espingardas e metê-las na rua.
Na estrutura organizativa do Estado, tudo o que respeitasse à defesa, segurança, ordem interna e relações externas, era unicamente da responsabilidade do Presidente e não do primeiro-ministro.

Não está a alijar responsabilidades?
Eu?
Não!
As minhas responsabilidades são para assumir, as boas e as más.

Entretanto, Agostinho Neto teve de ser operado na URSS. Sabia dos seus problemas de saúde?
Sabia.
Foi operado em julho ou agosto de 1979 - e eu deixei de ser  primeiro-ministro em dezembro de 1978.

Perdeu a confiança de Neto?
Houve aí alguns problemas e intrigas, que acontecem muitas vezes nos partidos.
Criou-se um problema comigo.
Nem todos os camaradas da direção do partido aceitaram as acusações que me foram feitas.

Que acusações?
A ideia fulcral era que, estando o Presidente doente, havia países amigos que pensavam que eu devia ser preparado para o substituir.
Numa situação daquelas, era uma acusação muito séria, principalmente vinda dos serviços de segurança.

Foi acusado de preparar o terreno para substituir o Presidente Neto?
Isto é muito complicado...
Os serviços de segurança (ou de inteligência) dos países socialistas tinham muito a vocação de olharem para dentro, de se vigiarem uns aos outros por causa da luta pelo poder - e às vezes até olhavam pouco para fora...
Nós também tínhamos essa deformação.

Cuba era um dos países apostados em prepará-lo?
Era o país mais presente, com quem eu tinha mais relações ao nível da governação.

Fidel não gostou nada dessa suspeição e até deu ordens para retirar quadros de Angola.
A coisa não foi bem aceite e houve uma certa tensão.
Felizmente que a questão foi posteriormente resolvida e esclarecida.

Nessa altura foi para a ONU, na Etiópia.
Estive lá um ano.
Depois da morte de Neto e da eleição do Presidente José Eduardo, ele pediu-me para voltar para o Governo, como ministro do Comércio Externo.
Ele também era uma das pessoas que se opuseram aquela acusação.

Era a mesma gente que o tinha procurado no 27 de Maio?
[Silêncio]

Esses órgãos têm nomes ...
Isso já passou, não é conveniente.
Alguns já morreram.

José Eduardo dos Santos foi eleito pelo Comité Central. Foi o único nome?
Sim.
Muita gente falou no Padalé, ou noutros, mas no Comité Central, sob proposta do bureau político, apresentada pelo camarada Lúcio Lara, a eleição foi unânime.
Quando morreu o Presidente Neto, fomos aconselhados por dois países amigos, o Congo e a Argélia, para termos cuidado na escolha, que não houvesse pressa, mas que devíamos ter em conta duas questões seria bom que não fosse nem um militar nem um mestiço.
Foi mais difícil convencer o próprio José Eduardo a aceitar, porque ele não queria.

Não houve outros países a dar palpites sobre a sucessão?
Que eu saiba, não, porque eram questões muito sensíveis.

Porquê excluir militares e mestiços?
Os militares era para passar uma mensagem para o exterior, que não se tratava de um regime militar, que apesar de estarmos em guerra a direção era política.
E os mestiços, é natural...

O militar era o Pedalé. E o mestiço?
Toda a gente pensava que, com a morte do Presidente, quem iria substituir era o Lúcio Lara.
Era lógico.
Mas o Lara nunca foi homem ligado a funções do Estado, sempre recusou ser ministro.
Era mais uma homem do partido.

Regressado ao Governo, foi a Havana tentar resolver o problema que levara Fidel a retirar quadros.
Eu e o camarada Lúcio Lara fomos a Havana, tentar clarificar as coisas.
Estivemos com o Raúl e depois com o Fidel.
Aquela areia e as suspeições que se meteram nas nossas relações foram ultrapassadas. 
Tudo isso foi antes da batalha do Cuito-Cuanavale.

Há três anos decidiu abandonar a política, com um discurso muito comentado na Assembleia Nacional. Foi um gesto pouco habitual na política africana.
Sim, mas já houve pessoas que o fizeram.
O presidente Senghor, do Senegal, abandonou o poder.
O mesmo fez o Presidente Nyerere, da Tanzânia, e podia ter lá ficado o tempo que quisesse.
Entrei para a política quando tinha 15 anos e sempre quis fazer outras coisas.
Procuro ser uma pessoa que faz as suas tarefas e cumpre as suas responsabilidades, mas quando acho que já as fiz, vou-me embora.
Costumo dizer que gosto de sair pelos meus pés.

Não acha que o Presidente Eduardo dos Santos está há demasiado tempo no poder?
Não. 
[silêncio]
Houve tempos e anos em que não era possível nem conveniente mudar de Presidente: durante a guerra não se muda de comandante!

Mas a guerra acabou há muitos anos.
Não!
Acabou em 2002

Há 13 anos!
Depois foi preciso estabilizar e acalmar o país.
O que me preocupa é a maneira como se gere e consegue criar a nação.
Nós em África temos um problema.
Uma coisa é o timing das eleições num país como Portugal, que tem séculos e séculos como nação, outra coisa é esse timing num país africano.

Mas foi você quem me deu o exemplo do Senghor e do Nyerere ... E podia acrescentar, os Presidentes Pedro Pires ou Joaquim Chissano...
Sim, mas Moçambique teve uma guerra menos intensa e menos fraturante do que Angola.
Se os moçambicanos acham que ao fim de quatro ou oito anos o Presidente pode dar por concluído o seu trabalho, isso é um problema de Moçambique.
Há um país para o qual olho com muita atenção, que é o Ruanda.
O trabalho que o Presidente Paul Kagame tem feito, de unidade e de criação da nação, depois dos problemas que houve, é um trabalho sólido.
Não podemos estar a copiar os ocidentais.
É o mesmo problema com a corrupção.
Sim, em África há muita corrupção.
Mas para haver corruptos tem de haver corruptores.

Angola é considerada um dos países do mundo onde a corrupção é maior.
Há corrupção em Angola, não digo que não.
Se é maior ou menor, não conheço a corrupção nos outros países.

Costuma dizer-se que a corrupção atravessa toda a sociedade, desde o cimo até...
É uma visão que alguns têm de Angola, de que a corrupção é transversal.
Mas a visão de que toda a população é corrupta é uma ofensa ao povo de Angola.

É também um dos países onde a distribuição de riqueza é mais injusta.
É um dos países em que isso acontece.
Que há pobreza, há.
Como há em várias partes do mundo.

Em, 1989, num texto que agora divulgou em livro ("Ideias que tinha..."), dizia que "um dos maiores defeitos" do MPLA é a intolerância, que tem provocado "ruturas cíclicas".
Foi um trabalho que fiz para o partido.
Se estudar a história do MPLA veria que houve muitas ruturas internas.
Não estou a dizer visões diferentes, mas sim ruturas.
Basta dar o exemplo do Viriato da Cruz, da rutura com o Mário Pinto de Andrade, da Revolta Ativa, ou da Revolta do Leste, do Chipenda.
Foram ruturas com gente que podia ter uma visão diferente.
Não as acompanhei, porque não estava próximo desses acontecimentos, mas era gente com capacidade.
Mesmo exprimindo visões diferentes, estávamos todos no mesmo barco.
Quase em cada cinco anos houve uma rutura no seio do partido - é o que eu chamo de ruturas cíclicas.
Felizmente que a partir de certa idade já acabaram.

Essa intolerância acabou?
Não estou a dizer que definitivamente, mas felizmente que já há alguns anos que não acontece.

Continua a definir-se como socialista?
De ideias socialistas.
Mas procuro ser cada vez mais pragmático.

Angola ainda é um país socialista?
Essa pergunta não é para mim, é para o MPLA.

jpcastanheira@expresso.impresa.pt

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