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sábado, 8 de agosto de 2015

A Europa segundo Merkel

Revista Expresso
Cristina Peres  -  8 agosto 2015

A Alemanha tem um lugar difícil na Europa desde o século XIX, porém a chanceler tem uma visão otimista relativamente à capacidade de os europeus se reinventarem. 
A saída passa pela reforma profunda das economias da zona euro e se não for de livre vontade ela será imposta. 
Os próximos tempos vão determinar o modo como Angela Merkel virá a ser lembrada, ela que deverá recandidatar-se em 2017 a um quarto mandato à frente do Governo alemão

A alteração de paradigma foi denunciada por Joschka Fischer há duas semanas. 
Ao dizer que a Alemanha pela primeira vez desde o final da II Guerra Mundial preferira “menos Europa” a “mais Europa”, o ex-vice-chanceler alemão do Governo Gerhard Schroder (1999-2005) referia o resultado da noite de 12 para 13 de julho, a mais tensa das negociações entre os negociadores europeus e a Grécia. 
A questão sobejamente conhecida e tratada pela opinião e pelos meios de comunicação mais plurais é descrita por Fischer num artigo que pergunta “O ‘alemão detestável’ está de volta?” (Project Syndicate, 23 de julho): Angela Merkel terá sido obrigada a usar a sua habilidade para retirar da mesa a opção lançada pelo seu ministro das Finanças. 
Naquela noite, Wolfgang Schauble exerceu enorme pressão para que um Estado-membro da União Europeia saísse “voluntariamente” da zona euro, defende o fundador do partido dos Verdes alemães, sublinhando a argumentação de jurista de Wolfgang Schauble ao afirmar que o alívio da dívida grega só seria “legalmente” possível fora da zona euro. 
Por outras palavras, o ministro das Finanças alemão apontava um Grexit “voluntário” em alternativa à aceitação por parte da Grécia de condições que transformam o país num “protetorado europeu”.

Acontece que não há registo objetivo da afirmação por parte do Governo alemão de que a Grécia deveria sair da zona euro. 
“Apenas chamámos a atenção para o facto de Atenas poder decidir fazer um intervalo”, disse Schauble em entrevista à revista “Der Spiegel” de 17 de julho, durante a qual esclarece que o alívio da dívida não é possível na moeda da União Europeia porque “Os Tratados europeus não o permitem”.

A chanceler alemã foi “mais política” e ficou abertamente do lado da argumentação defendida por França e Itália, as segunda e a terceira maiores economias europeias a seguir à Alemanha, excluindo a saída da Grécia da moeda única. 
Fosse em termos temporários ou definitivos. 

O gesto valeu a Angela Merkel uma avaliação à altura da sua famosa e consagrada prudência e ponderação. 
A precipitação dos acontecimentos naqueles dias do processo da negociação com a Grécia obrigou ambas as partes a maratonas de trabalhos e a tomadas de decisão no limite dos prazos. 
E das forças dos seus intervenientes. 
Se Angela Merkel tivesse podido, escolheria ter tido e ter podido dar uma respiração ampliada ao processo. 
Ou não fosse ela uma política pragmática concentrada, ponderada, metódica e rigorosa também preparada para ser flexível e dialogante. 
E não tivesse valido ao gesto político na maratona de 12/13 de julho para lhe granjear, ou confirmar, o reconhecimento da sua visão europeísta. 

Angela Merkel é acima de tudo, uma negociadora. 
“Ela aguarda e vê até onde pode ir.” 
“Merkel espera” porque os negociadores nunca tomam decisões no primeiro momento, comenta com o Expresso Mónica Dias. 
A professora do Instituto de Estudos Políticos (IEP) da Universidade Católica Portuguesa diz que, a ter havido precipitação por parte da chanceler, ela já tinha acontecido no passado, quando foi “demasiado determinada” a identificar o sucesso do euro com o sucesso da Europa. 
Com essa identificação, perdeu margem de manobra, admite Mónica Dias. 
Isso não era evidente quando, em 2012, as sondagens lhe reconheciam uma taxa de 70% de aprovação por parte de um eleitorado que a considerava a líder política europeia mais capaz de garantir o rumo certo à União e ao euro. 

Provável sinal do desconforto com a situação atual terá sido a ligeira irritação que a chanceler deixou transparecer ao responder aos entrevistadores da estação estatal ARD quando questionada sobre as fricções internas na coligação durante a entrevista de verão, feita logo no início da semana que se seguiu às negociações com a Grécia. 
A chanceler respondeu que não tinha recebido nenhum pedido de demissão [aludindo ao seu ministro das Finanças]. 
Ponto final no assunto.

POUCO ESPAÇO PARA SURPRESAS
Desista quem insistir em encontrar dissonâncias nucleares entre os parceiros da coligação que governa a Alemanha. 
Para começar, discrição oblige. 
Além disso, se há princípio daquele Governo que coincide com o modus operandi estrutural da União Europeia é a negociação e o compromisso. 
A Europa é também isso mesmo, negociação e compromisso, um modo de funcionamento que serve como uma luva ao sistema político alemão. 

Após o escrutínio das urnas nas últimas eleições legislativas de 22 de setembro de 2013, que deram quase uma maioria absoluta (41,5% dos votos) aos democratas-cristãos da CDU/CSU, só em 27 de novembro se alcançou o acordo de coligação que conciliava as propostas dos dois partidos que formam a atual grande coligação — a CDU/CSU com o social-democrata SPD. 
Dois meses e perto de duas centenas de páginas de acordo de coligação depois, o documento passou ainda pelo crivo da consulta ao partido social-democrata e só em dezembro estava o processo concluído para se formar governo. 
Três meses para garantir a coesão? 

O processo de decisão nacional é semelhante. 
Sessenta por cento das leis aprovadas no Parlamento (Bundestag) têm de passar pelo Parlamento dos Länder, ou estados federados (Bundesrat), o que pode ser resumido deste modo: sem a aprovação da Saxónia ou da Baviera, por exemplo, não há possibilidade de uma lei vir a ser aprovada. 
É provável que reste pouco espaço para surpresa na governação, porém, os pontos de fricção ficam entretanto potencialmente neutralizados. 

Num contexto com este funcionamento, não é realmente um espanto que a popularidade do responsável alemão pelas Finanças tenha alcançado os valores mais altos de sempre no início de julho. 
Schäuble tinha 70% de aceitação numa sondagem da ARD, ultrapassando em 3% a taxa de aceitação da chanceler, que se mantinha nuns muito confortáveis 67%. 
Se há aí dedo pesado da imprensa alemã — que os mais críticos desclassificam como sendo incapaz de exercer oposição e provocar debate —, a verdade é que a opinião pública alemã reconhece a boa forma do seu país e tem razões para reconhecer que o modelo praticado pelos governantes funcionou bem. 
Até aqui. 

Uma vez imposta a narrativa da “ Grécia preguiçosa” , muitos alemães não verão muito além de um certo sentido de injustiça relativamente ao modo como está construída a zona euro e que se encontra por vezes traduzida pela expressão redutora e inexata ‘uns trabalham e outros gastam’. 
Os tabloides, encabeçados pelo jornal de grande circulação alemão “Bild”, contribuem para a demonização dos “gastadores”, enviesando o debate com evidente eficácia. 
As repetidas histórias que o “Bild” publica sobre gregos reformados aos 55 anos que passam os seus dias na praia têm um impacto inevitavelmente negativo na opinião pública. 
E não só na Alemanha. 

“Penso que os alemães têm atualmente um grande medo de perder parte da sua prosperidade por causa de outros”, diz ao Expresso um alemão radicado em Portugal há cerca de 20 anos, que prefere manter o anonimato. 
E acrescenta o papel dos partidos de direita alemães na criação de um caldo de reatividade “irracional” por parte do eleitorado germânico, tornando-o alérgico a termos como ‘solidariedade’ ou ‘partilha de responsabilidades’. 
Para muitas dessas pessoas, a União Europeia está identificada com “a obrigação de pagar”.

DOIS DA MESMA ESPÉCIE
Angela Merkel e Wolfgang Schauble têm uma visão geral comum da União Europeia como uma união monetária na qual há que impor as regras que têm de ser respeitadas pelos Estados-membros. 
Ambos querem impedir que a zona euro se transforme numa zona de transferência onde o dinheiro fluiria do Norte rico para o Sul mais pobre. 
Além disso, os dois temem que o referendo grego de 5 de julho crie um precedente que seja seguido por outros Estados europeus, diz ao Expresso Adriano Bosoni, analista do think tank norte-americano Stratfor a partir de Frankfurt. 
Reconhecendo que ficaram à vista algumas diferenças de metodologia relativamente ao modo como lidar com a Grécia entre os dois líderes alemães, Bosoni chama a atenção, em contraponto, para a “visão mais geopolítica” de Angela Merkel, a qual leva a chanceler a dar prioridade à proteção do euro. 
Assim, defende o analista, Angela Merkel sabe que a União Europeia não pode dar-se a0 luxo de ver membros abandonarem o clube europeu. 
Neste raciocínio está considerada a posição geoestratégica da Grécia no Mediterrâneo oriental e está, por isso, implícito que a Alemanha quer que a Grécia permaneça na União mesmo na eventualidade de um Grexit da moeda única. 
E os Estados Unidos vão querer “manter a Grécia na NATO”, acrescenta Bosoni. 

Se a chanceler se recusa a comentar em entrevista à ARD uma possível demissão no seio do seu Governo, Wolfgang Schäuble responde à imprensa com assertividade semelhante. 
Para tal, lembra  o mote da campanha da CDU durante as eleições europeias de 1999, quando liderava a União Democrata Cristã e Merkel era a sua secretária-geral: “Nem sempre com a mesma opinião, mas no mesmo caminho.” 
Foi assim que prosseguiu a relação dos dois líderes políticos, segundo disse Schauble à revista “Spiegel”, aconselhando os jornalistas que o entrevistavam a não se preocuparem: “Sabemos que podemos confiar um no outro. 

É preciso procurar as prováveis diferenças entre Merkel e Schäuble noutros aspetos e para isso poderão servir as características próprias da história pessoal de cada um dos políticos. 
O estilo da chanceler é indissociável da sua vivência da Alemanha de Leste, para onde se mudou  ida de Hamburgo (Tremplin, região de Uckermui norte de Berlim Leste) com apenas seis semanas de vida, em 1954, acompanhando o destino da missão do pai, um pastor luterano. 

O estilo do ministro das Finanças será também ditado pela época — 1942, ainda durante a II Guerra Mundial — e pela zona onde nasceu, Freiburg im Breisgau, perto da fronteira com França. 
Há um episódio que ficou na história da sua actividade partidária entre os democratas-cristãos datado de 1994 que é particularmente e, ao que parece, inspirador no momento atual da União. 
Durante as jornadas da CDU, Wolfgang Schauble apresentou com o colega de partido Karl Lamers uma declaração feita pelos dois, que refletia sobre a diferença entre a União original a seis Estados-membros e a adaptação que os tratados teriam de sofrer já então a 12 membros, assim como perante futuras adesões. 
O traço federalista do atual ministro das Finanças era já evidente na defesa de uma Kerneuropa, ou Europa nuclear, que seria dirigida, na altura, a partir do núcleo do eixo franco-alemão ao mesmo tempo que integraria os outros Estados-membros. 
O conceito defendido na declaração abria portas a uma pluralidade de modelos – Europa a várias ou a duas velocidades, Europa de geometria variável ou Europa nuclear … - que foi então criticado por quem nele lia a “criação de um clube europeu com espectadores”, como lembra Mónica Dias. 
Contudo, ele é hoje em dia uma realidade, bastando pensar na zona euro e no espaço Schengen, ambos reunindo diferentes constelações de Estados-membros e não só. 
A verdade é que, para os alemães, a Europa federal “é muito positiva” significando “a autonomia de cada região e a soberania de cada nação”, explica a professora do IEP.

POSIÇÕES EXTREMADAS
A partir daqueles dias de meados de julho, as posições entre os Estados da União ficaram extremadas, disso não há dúvida. 
O título de uma coluna de opinião de Pedro Santos Guerreiro no Expresso Diário de 13 de julho, “O maior resgate de sempre? 
O maior perdão de sempre? 
A maior depressão de sempre?”, teve contraponto, no mesmo dia, na opinião de Barbara Wesel publicada na Deutsche Welle com o título “A vencedora é Angela Merkel!”. 
Santos Guerreiro defendia que a Alemanha não tinha salvo a Grécia nem a dívida nem o euro enquanto Wesel sublinhava que a chanceler alemã tinha levado as negociações com o primeiro-ministro grego Alexis Tsipras até aos limites da exaustão. 

A formulação de Joschka Fischer, dez dias mais tarde, não segue a tendência que parece ter vindo para ficar, abusando das generalizações e, desse modo, colocando no mesmo saco membros individuais dos governos, os próprios governos, populações inteiras, e até países... O ex-líder dos Verdes refere a posição de Wolfgang Schauble como sendo responsável pelo extremar da questão fundamental da relação entre o Norte e o Sul da Europa, ameaçando esta sua posição levar a zona euro ao ponto de rutura: “A crença de que o euro pode ser usado para fazer a ‘reeducação’ económica da Europa do Sul provará ser uma falácia perigosa”, argumenta Joschka Fischer, apoiando-se na opinião de que franceses e italianos bem sabem que tal visão dará cabo do projeto europeu que foi construído em nome da diversidade e da solidariedade. 

Muitas reações diferentes à atitude dos líderes alemães já vinham a ocupar espaço da opinião pública fora e dentro da Alemanha desde antes das negociações do terceiro pacote de resgate à Grécia. 
Em 30 de junho, o jornalista alemão freelance Raphael Thelen publica na sua página de Facebook uma carta aberta a Angela Merkel, Sigmar Gabriel e a Wolfgang Schauble dirigindo-se-lhes deste modo: “Excelências, estão a destruir a Europa, a vitimar a Grécia em vez de mudarem a vossa política errónea. 
Resgatam bancos e exterminam as perspetivas de milhões de jovens. 
Impõem a austeridade apesar de o resto do mundo gritar que isso é uma loucura. 
Fazem uma política pela qual a Alemanha cresce à custa do Sul da Europa. 
Nós não queremos isso... ” 
O texto deste alemão formado em Ciência Política pela Universidade de Bona pontua os sucessivos parágrafos com a recusa em aceitar uma política alemã contrária aos princípios de Helmut Kohl [que previa a intervenção financeira da Alemanha em caso de urgência para que se fizesse funcionar o projeto de paz europeu], a recusa de uma política que fomente o regresso do nacionalismo e da possibilidade de uma nova guerra na Europa com a declaração “Nós não queremos isso”. 
De caminho, exorta o Governo alemão a admitir os erros da sua política acusando-o de “ter conseguido” que a Alemanha “voltasse a ser odiada 70 anos após o fim da II Guerra Mundial”: “Nós não queremos isso”. 

Raphael Thelen disse ao Expresso acreditar que o ministro das Finanças alemão “tudo fez” durante as negociações “para sabotar Alexis Tsipras com o objetivo de travar uma possível viragem à esquerda” noutros países europeus, como Espanha. 
O autor da carta aberta saudou a decisão do primeiro-ministro grego em ter aceitado o acordo, considerando que “é este o caminho” que tornará possível “um clima mais positivo” no âmbito do qual outros governos europeus poderão mais tarde vir igualmente a “fazer infletir as políticas europeias num sentido mais social”. 
A Europa é negociação e compromisso, insiste Thelen, acrescentando que Angela Merkel está a “forçar políticas neoliberais” aplicando à Europa a receita da Agenda 2010 na Alemanha [a Agenda 2010 foi concebida e levada a cabo pelo Governo de coligação Schroder/Fiseher. 
As “políticas neoliberais” foram primeiro postas em prática pela coligação Rot/Griin, ou seja, social-democrata/verdes]: “O que o FMI fazia ao Terceiro Mundo está agora a ser feito na Europa”, incluindo a “destruição dos sindicatos, a flexibilização dos mercados de trabalho e a descida de impostos para empresas”. 
“Merkel está a destruir a União Europeia porque perdeu de vista aquilo que ela é: um projeto de paz e não um sistema de regras rígidas com o fim de controlar as economias”, disse ao Expresso.
Como chamou a atenção Miguel Monjardino, professor do IEP, o que torna Merkel e Schauble tão populares entre os eleitores alemães é exatamente este apego às regras desenhadas com base na experiência e na visão alemãs.

A EUROPA DAS FINANÇAS E DO EURO
A Europa mergulhada numa crise profunda deixa à vista fragilidades da zona euro, uma zona monetária supostamente bem desenhada e sólida. 
Realça também a rapidez com que os países vizinhos podem desentender-se, não permitindo deixar no passado o modo como os europeus se têm historicamente virado uns contra os outros. 

“Havia a ideia que, de repente, se tinha resolvido o problema com o Tratado de Maastricht. Espantoso seria se tivesse ficado resolvido, porque o nacionalismo está entranhado na psique europeia”, disse ao Expresso George Friedman, autor e fundador da Stratfor. 

Assim que, a partir de 2008, começou a decair a prosperidade nalgumas regiões da Europa, surgiram de imediato “questões com fronteiras e por aí adiante”, disse o analista de geopolítica norte-americano. 
Friedman sublinha a importância de a Europa estar dividida em mais de 50 Estados-nação que têm “muito más memórias uns dos outros”. 
Desenhada para ter paz e prosperidade, a União, sem elas, não verá passar muito tempo sem que surjam problemas graves, diz ao Expresso, lembrando que o Tratado de Maastricht não preparou as instituições para um tempo em que se vivam esses problemas graves. 
O problema, explica, é que os países abordam-nos enquanto Estados-nação: “O que se passa não é a Grécia a negociar com a União Europeia, mas a Grécia a negociar com a Alemanha sem que a Alemanha tenha instrumentos para manter a Europa unida”, conclui. 

Se o sucesso da Europa é o sucesso do euro, como pretendia Angela Merkel, na semana passada o futuro da moeda única sofreu um revés considerável quando a Polónia anunciou oficialmente que não vai aderir ao euro, como fazia parte do seu plano “e sonho”. 
Quem o diz exatamente assim ao Expresso é Bronislaw Misztal. 
O representante de Varsóvia em Portugal adianta que a Polónia “será um membro responsável da comunidade”, mas não aderirá até que a zona euro consiga resolver os seus problemas. 
“A maioria da população polaca não acredita hoje que aderir ao euro seja uma decisão política sensata, ao contrário de que pensava há seis anos”, diz o embaixador, lembrando que o sonho do euro “era não só financeiro mas de comércio livre também, para todos os atores económicos”. 

O embaixador evoca “o Estado social universal, a democracia e a liberdade de movimento” como “um sonho” que funcionou “por momentos”. 
Até que, nos anos 80/90 até 2000 se “pensou que a economia teria força para transformar a mentalidade das sociedades”. 
Só que agora, explica, “sabemos que a economia sozinha não consegue fazê-lo”. 

“Para uma pessoa da minha geração é difícil ver destruir o que foi construído”, diz o diplomata reforçando o “valor da livre circulação” para quem, como ele, foi obrigado, enquanto jovem, a provar possuir pelo menos 25 dólares por dia para gastar como condição para lhe ser permitido deslocar-se na Europa. 

A possibilidade de mobilidade livre era interessante, admitia-se a imigração sem fechar a porta, as pessoas podiam trabalhar temporariamente fora do seu país, recorda o embaixador, chamando a esse movimento “uma das grandes vitórias da nova Europa”. Agora, diz, estão a fechar-se várias portas por “desigualdade social”. 
“Não queremos os pobres que viajam”, acrescenta o diplomata, lembrando que, no futuro, “isso poderá acontecer aos polacos ou aos portugueses”. 
Fecham-se as portas ao trabalho no Reino Unido e na Suíça e amanhã podem fechar-se em França... 
“É muito importante que a Europa mantenha um denominador comum”, resume Bronislaw Misztal: “Temos de encontrar modelos comuns na cultura, no modo de pensamento, na filosofia de organização social e não só num imperativo financeiro. 
Não é fácil!”, admite.

A REGRA EUROPEIA DE MERKEL
A política de Angela Merkel para a zona euro é uma consequência direta do modo como ela olha para o mundo. 
Ao contrário de outros líderes europeus, a chanceler compara a Europa com a China, que conhece bem, e com a zona da Ásia-Pacífico, considerando-a, em resultado, uma competidora em declínio, explica Miguel Monjardino. 
E recorda ao Expresso a regra “7-20-50” que a chanceler alemã difundiu para descrever a União Europeia: 7% da população mundial, 20% do produto mundial e 50% de despesas sociais. 
Se esta já era um problema, no presente tornou-se insustentável “a não ser que os países procedam a uma reforma fundamental”, de modo a se tornarem mais competitivos a nível da inovação e da tecnologia. 

Angela Merkel é otimista relativamente à capacidade de os europeus se reinventarem, abrindo as suas economias à globalização, sustenta Monjardino, que é da opinião de que a dimensão externa da visão alemã não está a ser bem explicada na Europa. 
A Alemanha, diz, “olha para a crise com a dimensão do euro”, mas acrescenta a consciência de que as “circunstâncias externas”, ao abrigo das quais o euro foi criado, mudaram substancialmente. 
Isto implica para a Alemanha que a zona euro tenha de deixar de ser “tão introspetiva como até agora” e que as sociedades europeias tenham de ser capazes de “se reformular profundamente” se quiserem continuar a ter o mesmo tipo de “modelos sociais e políticos”, acrescenta. 

O professor do Instituto de Estudos Políticos da Católica acredita que só resta à Alemanha impor a sua visão a nível externo, chamando “tragédia” à incompreensão de que a posição alemã é objeto: “Os europeus acham que a Alemanha impõe a sua hegemonia e os alemães acham que a Alemanha está a ficar refém dos países que ao recusarem reformar-se arrastam a Europa para um beco sem saída”. 
Dito de outra maneira, Berlim acha que está a fazer um favor e os outros países europeus entendem que estão a ser tomados de assalto. 
No entanto, resume o professor, é do reequilíbrio dos termos da equação “7-20-50”, àqual se soma o endividamento privado e público, que depende o futuro da União Europeia. 

A solução passa por uma maior integração política na zona euro [como a defendida recentemente pela proposta do Presidente francês, François Hollande] e por conseguir criar mecanismos que gerem alguma capacidade orçamental para os países em dificuldades, adianta Monjardino. 
Se tal não acontecer, vão multiplicar-se as crises e as emergências na zona euro, prevê o professor. 
“Estamos a meio de um processo que não sabemos como acabará, mas cujo rumo determinará o modo como Merkel será lembrada”, afirma. 

Uma maior integração política, de acordo com a proposta que está neste momento em cima da mesa, implica que quem quiser fazer parte desse grupo de vanguarda política europeia “terá de aceitar fazer reformas profundas”, esclarece Miguel Monjardino. 
No caso de Portugal, indica, significa que “temos de ser capazes de fazer o que não fizemos até agora: demonstrar antecipadamente aos interessados que temos fôlego económico e político para o país continuar a mudar e adaptar-se”. 
Depende de uma questão de liderança política, resume Miguel Monjardino, admitindo que os alemães acabarão por aceitar, aprazo, fazer “algumas transferências de recursos” para as sociedades recetoras. 
Mas a condição inalienável será a execução das reformas, garante o professor, adiantando que será um processo de mudança longo, provavelmente “não agradável para ninguém”. 

Angela Merkel estará “numa posição muito difícil”, sustenta. 
“Ou se reforma por vontade própria ou por imposição externa (para cumprir as regras de Berlim)”, diz Monjardino, reconhecendo que a Alemanha se arrisca a ficar altamente impopular. 
Exatamente o contrário daquilo que propunha a criação da zona euro. 

Há dez anos, a Fundação Friedrich Ebert (Friedrich Ebert Stifftung, FES) lançou um projeto em parceria com o Goethe Institut que perguntava: Existe uma opinião pública europeia? 
Na altura, tinha-se a ideia de que ela não existia, conta ao Expresso Reinhard Naumann. 
O diretor da FES em Portugal acredita que hoje, depois da crise, já existe uma consciência mais profunda em todos os países da União Europeia de que fazemos parte de uma entidade comum. 
Ela é marcada pelas divergências de interesses que chegam a ser contraditórios, mas o ponto positivo é que há uma consciência mais clara da existência de uma união e de uma moeda comum... 
“Talvez esse despertar da consciência possa vir a ser a base de uma nova etapa em que a opinião pública europeia já exista com maior consistência”, conclui Naumann. 

Se recomeçasse a Europa, recomeçaria pela cultura, disse Robert Schuman. 
E agora? 

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